Desmaterialização dos títulos de crédito e a lesão à segurança jurídica

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3. DISCUSSÃO

3.1. Título de crédito eletrônico e a hermenêutica de Gadamer

Se outrora o juiz se subalternava à lei, vinculava-se a letra desta, seja qual fosse o seu significado enquanto fosse válida, considerada assim por sua simples existência formal; tendo o juiz uma opção acrítica e incondicionada. Na hermenêutica contemporânea, inaugurada por Gadamer, a validade trata-se de um atributo fortuito vinculado à coerência de seus significados, esta passível de discussão, e a todo o momento se sujeita a valorização do aplicador da lei; a aplicação da mesma reside em um juízo sobre ela (LOPES, 2000).

Nesse sentido, como traz Daniela Oliveira e Rafael Moura (2011), Hans-Georg se posiciona contra a hermenêutica tradicional de que toda verdade é uma consequência lógica da aplicação de um método científico, tendo em vista que, como preceitua Lopes (2000) através de Gadamer a hermenêutica não mais consiste em um método, mas em uma ontologia, “o modo de ser do homem”, indo de encontro à teoria positivista “derivada da rígida posição objetivista e absolutista da Ilustração, que eleva a razão a um status de inquestionabilidade e inatingibilidade” (LOPES, p.2, 2000).

Assim, surge uma hermenêutica com viés crítico, sendo essa um processo de interpretação vinculado à criação, de modo que o juiz é responsável, também, pela atualização permanente do Direito (RIBEIRO; BRAGA, 2008). Concebendo que entender e compreender um texto consiste em uma forma de colaboração à cultura da humanidade e até mesmo à autocompreensão do próprio indivíduo (LOPES, 2000).

Desse modo, a hermenêutica não mais se sustenta em princípios metodológicos que fazem a interpretação ser relativista e reduzida a um processo repetitivo de busca a um sentido verdadeiro, como na Clássica, de acordo com Fontana (2012). Visto que Gadamer explicita ser o meio incorreto para apreciar a verdade, tal método, na medida em que a obtenção da verdade absoluta consiste em algo inviável para o ser humano, do ponto de vista das ciências do espírito; sendo, pois, a verdade discutível (OLIVEIRA; MOURA, 2011). Diante disso, é possível perceber a inexistência, de uma verdade pronta e acabada pra Gadamer; pois de acordo com os ensinamentos, anteriormente abordados neste trabalho, do autor a sociedade é mutável e a verdade de uma lei no passado pode não ser a mesma para a sociedade atual, havendo necessidade de adequação da mesma ao caso concreto através de uma compreensão e interpretação. A lei precisa se adequar ao contexto social hodierno.

É o que vem ocorrendo em relação aos títulos de crédito. Este último surgiu na Idade Média com o fim de facilitar a circulação das riquezas e entre suas características a cartularidade sempre se fez presente. Contudo, esse instituto vem sofrendo transformações radicais, sobretudo, em virtude do desenvolvimento no final do século XX do computador que inevitavelmente atingiu a esfera comercial e, por conseguinte, o título de crédito. A sociedade se transformou e o computador devido a praticidade que o norteia está cada vez mais presente na vida dos indivíduos, pelo fato de que as atividades, da mais rudimentares à mais complexas, exigem certo contato do usuário com esse instrumento tecnológico. E o direito cambiário não ficou alheio a todo esse processo evolutivo, de modo que hoje o crédito pode fluir através da internet (REZENDE, 2003).

Ocorre que na medida em que a sociedade se transformou com o advento tecnológico abarcando, inclusive, os títulos de crédito a lei não a acompanhou. Hoje se faz pertinente a revisão de alguns conceitos básicos que ainda são aplicados, inclusive uma das características do título que é a sua cartularidade. A mudança que ocorreu na sociedade demanda a criação de uma norma específica no que tange aos títulos de crédito porque assim se garante maior segurança para a sociedade. Isto é, o título de crédito evoluiu, mas a disposição legal; não se conformizou ao contexto social hodierno deixando aquém a segurança jurídica daqueles que fazem uso dos mesmos.

3.2. Título de crédito virtual e a segurança jurídica do credor frente a desconstituição da forma original.

Notório é afirmar que o surgimento dos títulos de crédito apareceu no cenário histórico de forma a facilitar as práticas mercantis e garantir maior praticidade em meio as relações de negócio entre os sujeitos. Os costumes que a sociedade apresentava em suas práticas mercantis ensejaram na previsão legal de um dispositivo que assegurasse o direito que o credor possuía frente ao devedor. Dado as novas necessidades da coletividade de um instrumento que garantisse maior agilidade e rapidez nas transações negociais, surgiram os títulos de crédito eletrônicos em uma tentativa aprimorar a praticidade das relações (VALÉRIO; CAMPOS, 2011).

A partir da globalização e, principalmente, da Revolução Industrial, o surgimento de dispositivos os quais se adequem as relações que esses processos econômicos, sociais, culturais e políticos trouxeram, fazem-se essenciais para abarcar as demandas de uma sociedade mais avançada. Costumes que antes eram praticados, o Direito tratou de inserir em sua esfera de modo a garantir a proteção das relações privadas; diante do advento de uma sociedade que apresenta novos valores e necessidades, logicamente pode-se ponderar que o ordenamento tratou de inserir em sua esfera instrumentos modernos que a coletividade já havia criado como forma de satisfazer essas necessidades (BACELETE, 2011).

Os títulos de crédito virtual surgiram justamente para que os sujeitos possuíssem um manejo mais adequado a sociedade moderna, deixando os instrumentos antes mais utilizados e originais como dispositivos obsoletos. Certo é afirmar que a sociedade se torna hodierna juntamente com a era moderna, contudo o Direito havia estabelecido uma forma pela qual esses títulos devem observação e adequação; de modo que a nova perspectiva de títulos virtuais não trazem consigo, abrindo um porta para questionar se esses instrumentos facilitadores precisam, necessariamente, estar sob tal forma (VALÉRIO; CAMPOS, 2011).

A previsão jurídica acerca dos instrumentos utilizados nas relações comerciais é imprescindível para garantir a segurança entre elas. A tendência ao manejo de dispositivos que se fazem pouco inseridos no âmbito físico e mais presente na esfera virtual é o que se pode auferir a partir dessas novas práticas. O princípio da cartularidade, literalidade e até mesmo a autonomia são características ausentes e fragilizadas pela inovação dos títulos de crédito em sua forma virtual (BACELETE, 2011).

O uso de meios telemáticos para a formação das declarações de vontade de modo que a apresentação das cártulas, propriamente ditas, estão cada vez mais ausentes nessas relações. O princípio da cartularidade que diz respeito a necessidade de representação da operação em suporte físico, ou seja, em papel, mostra-se inexistente. A ideia de corporificação do título pelo título de crédito eletrônico se apresenta distante em relação ao instrumento original que considera essa característica essencial para, até mesmo, a nomeação dessa ação escritural como título de crédito. Do mesmo modo ocorre com a literalidade dessas declarações de vontade concretizadas em uma cártula. Só será válido aquilo que estiver escrito no título, de modo que a força da lei far-se-á a partir dessa visualização. Dessa forma, observa-se que as ações realizadas por meio eletrônico lesam características primordiais a nomeação destes por títulos de crédito, desmaterializando-os (BACELETE, 2011).

Dessa forma, a modernidade trouxe tanto benefícios quanto malefícios dado o advento da nova modalidade de títulos. A segurança jurídica, anteriormente proporcionada a partir da previsão legal em uma sociedade mais arcaica em virtude das necessidades serem menos flexíveis, apresenta-se na sociedade hodierna cada vez mais fragilizada devido a inovações mais radicais as quais as necessidades fazem manifestar. Sendo assim, a credibilidade do credor frente ao direito que possui a partir de um título, faz-se fragilizada, além da ausência de previsão legal acerca das ações via transmissão de dados, ou seja, por meio eletrônico, auxiliarem na falta de confiança por parte do credor.

3.3. Análise a respeito da modernização dos títulos de crédito e uma possível solução quanto a sua executividade

Bem como fora exposto anteriormente, pode-se perceber que o título de crédito, portanto, é uma ferramenta de idade bastante avançada e que, no entanto, até hoje se faz pertinente na conjuntura atual das relações econômicas ao redor do globo (REZENDE, 2003). O que aqui se intende aprofundar em discussão é a dificuldade que as estruturas sustentam esse instrumento têm de acompanhar esse processo (CARVALHO, 2017).

Muito se sabe – até mesmo como senso comum, hoje – sobre a morosidade da justiça e, especificamente no Brasil, no que tange também a seara legislativa. Não obstante, é exatamente nesse ponto que reside a problemática hoje existente quanto aos títulos de crédito. É impossível se falar em plena segurança jurídica de um mecanismo tão importante quanto o título de crédito eletrônico sem que haja firmeza na parte burocrática que o regra.

Outrora nesse trabalho, mostrou-se soluções que hoje já cercam o problema da segurança quanto a executividade do título de crédito na sua forma eletrônica, isso, pois, a dificuldade não se encontra nos títulos em si. Mas sim, como dito, no sistema que o cerca e sustenta as relações que o envolvem. Nesse caso, sendo essas estruturas as que impedem – hoje – o desenvolvimento mais célere desse recurso.

Essa contrariedade, no entanto, não tem barrado o avanço dos títulos de crédito no âmbito virtual, esses já são bastante utilizados para movimentar transações digitalmente (VALÉRIO; CAMPOS, 2011). Contudo, os títulos por natureza existem e se elevaram por serem facilitadores, principalmente no tocante a movimentação de grandes quantias pecuniárias (CARVALHO, 2017). Uma vez que não há como estar seguro de que aquela pecúnia pela qual se está pactuando tornar-se-á de fato um direito após a resolução do contrato obrigacional, o título futuramente passará a ser manchado pela insegurança e cairá em desuso.

Assim, para que não se perca uma ferramenta secular tão importante e útil ao dia-a-dia das relações econômicas desse país, é preciso acordar o legislador que permanece inerte quanto as questões aqui discutidas. O remanejo legislativo que aqui já fora citado já possui toda uma estrutura pronta e utilizada para com as duplicatas virtuais e que tem sua executividade e funcionamento em alto grau de eficácia (CARVALHO, 2017); só se faz necessário – reiterando – tornar burocrático aquilo que já se realiza empiricamente.


4. CONCLUSÃO

É possível perceber, dessa forma, que os títulos de crédito não possuem sua origem principiada na modernidade, ela surgiu a partir de uma necessidade mercantilista como forma de satisfazer e facilitar as práticas pecuniárias entre os indivíduos. Os alicerces dessa modalidade, juntamente com a globalização, ensejaram em uma modificação que forneça maior praticidade, devido a evolução da sociedade. Desse modo, os títulos de crédito eletrônico surgiram, porém o Direito não tem acompanhado as mudanças da sociedade e suas reais necessidades, deixando a desejar a segurança jurídica a qual preconizavam os credores.

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A perspectiva gadameriana é indispensável para o raciocínio de como o direito formal deve se adequar as necessidades e demandas do direito material a partir de uma interpretação realizada pela sociedade frente ao caso concreto; metaforicamente, é uma nova estrela que se constitui da matéria deixada por uma supernova a qual é uma estrela que brilha intensamente, mas que acaba por morrer finalmente; assim é o Direito. Ele deve nascer e aprimorar o conteúdo que possui de modo que abarque/ englobe em sua nova esfera as novas demandas da sociedade. A adequação torna-se imprescindível para que a sociedade disponha de confiança e a proteção que o Direito proporciona.

A partir de uma interpretação do caso concreto é que o direito formal irá se encaixar e incidir sobre o direito material, criando-se uma nova faceta da norma de modo que supra a lacuna jurídica por falta de previsão legal do dispositivo resultante da hodiernidade. Assim, os títulos de crédito eletrônico os quais surgiram em decorrência da globalização e das novas demandas da coletividade, uma vez que proporciona maior praticidade e agilidade, por outro lado, a segurança que antes o credor possuía, agora está em cheque, percebendo-se que características que constituem os títulos de crédito em sua modalidade original não se encontram presentes em sua modalidade moderna.

A previsão rasa do ordenamento acerca dos títulos de crédito virtual não é suficiente para que o credor tenha a segurança de que o instrumente que utiliza trará certamente o direito que busca constituir. Dessa forma, torna-se indispensável que haja uma previsão legal mais consistente a partir de uma legislação específica para que a segurança antes trazida pelos títulos de crédito em seu princípio incida sobre a nova espécie a qual a coletividade deu luz. Sendo assim, o direito formal terá finalmente se adequado ao direito material de modo que torne as relações entre os sujeitos mais seguras e obtenham maior confiança em sua utilização. O Direito não deve ser limitado a simples subsunção da norma ao caso concreto, ele deve inovar e sair desse ciclo apresentando um outro ângulo a partir da interpretação formada pelo conhecimento que obtém, dado o passado, juntamente com a nova perspectiva que a modernidade trás, de forma que a lesão jurídica seja cada vez mais reduzida e traga maior segurança a coletividade.


REFERÊNCIAS

BACELETE, Graziella Guerra. A SEGURANÇA JURÍDICA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO ELETRÔNICOS E O PROTESTO DA DUPLICATA VIRTUAL. 2011, 158 F. Dissertação.

DUTRA, Maristela Aparecida; LEMOS, Florence Diniz dos Santos. O TÍTULO DE CRÉDITO ELETRÔNICO NO DIREITO BRASILEIRO. Revista Jurídica UNIARAXÁ, v. 17, 2013.

CARVALHO, Gilvan Nogueira. A executividade dos títulos de crédito eletrônicos. 200-. Disponível em: <https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11342>. Acesso em: 28 ago. 2017.

JÚNIOR, Wilson Clemente. A CRÍTICA DE GADAMER E A SUBSUNÇÃO DO FATO À NORMA JURÍDICA. Sapere Aude-Revista de Filosofia, v. 6, n. 12, p. 841-851, 2016.

FONTANA, Eliane. Hermenêutica clássica versus hermenêutica filosófica: considerações relevantes acerca do processo interpretativo. Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, 2012

LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer. Revista de informação legislativa, n. 145, 2000.

OLIVEIRA, D. R.; MOURA, RSD. Apontamentos acerca da pré-compreensão e da compreensão nas Teorias Hermenêuticas de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer e suas implicações no ato de julgar. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca, Franca, v. 4, n. 1, p. 86-101, 2011.

REZENDE, José Carlos. Os títulos de crédito eletrônicos e a execução da duplicata virtual. 2003. 164. f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2003.

RIBEIRO, Fernando José A.; BRAGA, Barbara. A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Revista da Faculdade Mineira de Direito (PUCMG), v. 11, p. 121-143, 2008.

SANTOS, Lais Andrade da Silva. Títulos de crédito: uma análise sobre o princípio da cartularidade diante da desmaterialização dos títulos virtuais, 2012.

VALÉRIO, Marco Aurélio Gumieri; CAMPO, José Fernando dos Santos. Títulos de crédito eletrônico: a tecnologia a serviço do direito cambial. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 189, n. 48, p 189-209, jan./mar. 2011.

Sobre os autores
Raphael Felipe Machado Campos

Graduando do 7º período do curso de Direito da UNDB.

Laryssa Pereira dos Santos

Graduanda do 4º período do curso de Direito da UNDB.

Janna Coelho Mendonça

Graduanda do 4º período do curso de Direito da UNDB.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Paper apresentado à disciplina de Títulos de Crédito, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professora Especialista, Orientadora: Heliane Fernandes.

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