Uma breve análise acerca do efeito backlash

15/11/2020 às 21:10
Leia nesta página:

O efeito backlash consiste em fenômeno recente, intrinsecamente relacionado à revolução informacional proporcionada pelas inovações tecnológicas, mas deve ser objeto de reflexões, para que não seja utilizado como instrumento de retrocesso de direitos.

A modernidade aproximou os indivíduos das mais diversas formas, dentre elas, ganharam papel de destaque o implemento das tecnologias e mídias como instrumentos da construção dos novos paradigmas sociais.

Com o advento das inovações tecnológicas, encurtaram-se as distâncias, bem como passaram a ser propagados todos os tipos de informações, numa espécie de ágora moderna.

Nesse sentido, as ações do Poder Público e, principalmente, as decisões judiciais - antes desinteressantes para grande parte da população – sofreram as consequências desse novo processo e ganharam notoriedade no debate público.

Não é raro observar discussões calorosas sobre votos e posições jurídicas de Ministros do Supremo Tribunal Federal em botequins, restaurantes, consultórios médicos, dentre outros ambientes que, outrora, não estavam acostumados a se debruçar sobre a (in)constitucionalidade de determinado tema por seus frequentadores.

Destaca-se, por oportuno, que essa popularização das discussões acerca dos atos do Poder Público corrobora a noção de uma sociedade aberta de intérpretes, idealizada por Peter Habele, a partir da qual há um processo em que estão envolvidos os cidadãos e grupos sociais na construção de uma sociedade mais democrática.

No aspecto, é de se mencionar a lição de Lenza (2017, p. 180/181) acerca da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:

[...] Daí propor Haberle que se supere o modelo de interpretação de uma sociedade fechada (nas mãos de juízes e em procedimentos formalizados) para a ideia de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, vale dizer, uma interpretação pluralista e democrática.

Ao afirmar que a interpretação não mais deve ficar confinada dentro de uma sociedade fechada. Haberle propõe a ideia de que a interpretação não possa ficar restrita aos órgãos estatais, mas que deve ser aberta para todos os que “vivem” a norma (a Constituição), sendo, assim, esses destinatários, legítimos intérpretes, em um interessante processo de revisão da metodologia jurídica tradicional de interpretação.

Haberle observa que, dentro de um conceito mais amplo de hermenêutica, “cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública (...) representam forças produtivas de interpretação (...); eles são intérpretes constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes (...). Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação (...). Se se quiser, tem-se aqui uma democratização da interpretação constitucional”.

Nesse sentido, quanto mais pluralista for a sociedade, mais abertos serão os critérios de interpretação.

E certo é que uma das principais consequências da popularização das discussões acerca dos atos do Poder Público da consiste na possibilidade de ocorrência do chamado “efeito backlash.

Inicialmente, cumpre consignar o significado da expressão backlash. De acordo com o Dicionário de Cambrigde, a tradução literal seria um sentimento forte entre um grupo de pessoas em reação a uma mudança ou a um evento recente na sociedade ou na política.

A doutrina jurídica, por sua vez, também conceitua o presente fenômeno.

O Juiz Federal Marcio Cavalcante traz um conceito inicial, vejamos (2017, p. 1):

Em palavras muito simples, efeito backlash consiste em uma reação conservadora de parcela da sociedade ou das forças políticas (em geral, do parlamento) diante de uma decisão liberal do Poder Judiciário em um tema polêmico.

O constitucionalista George Marmelstein descreve, brevemente, como ocorre o fenômeno backlash:

O processo segue uma lógica que pode assim ser resumida.

(1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais.

(2) Como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com forte apelo emocional.

(3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população.

(4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões de votos.

(5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo.

(6) Como o poder político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre‑se um espaço para mudança de entendimento dentro do próprio poder judicial.

(7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão.

O jurista Samuel Sales Fonteles, em sentido complementar, amplia o conceito do presente fenômeno, não o restringindo a apenas um espectro político/ideológico, de modo a realizar a seguinte ponderação (2019, p. 36):

Infere-se que o vocábulo backlash tem sido empregado para designar reações contra leis, medidas de governo, decisões do Judiciário (juízes ou Tribunais), Cortes Constitucionais, Cortes de Direitos Humanos e até Tribunais Administrativos.

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Nesse contexto, a meu ver, o efeito backlash pode ser entendido como uma intensa reação social em face de determinado ato do Poder Público (não se restringindo, pois, a decisões do Poder Judiciário), sendo que tal reação social pode se revelar contrária a atos progressistas ou conservadores, mas, possuindo, em comum, o fato de criar desacordos morais intensos entre parcelas da sociedade e o Poder Público.

De forma ilustrativa, é de se observar que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu ser inconstitucional a Lei 15.299/2013, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado do Ceará, sob a seguinte ementa:

PROCESSO OBJETIVO – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ATUAÇÃO DO AGU. [...]. VAQUEJADA – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ANIMAIS – CRUELDADE MANIFESTA – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – INCONSTITUCIONALIDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada.

( ADI 4983, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 06/10/2016).

Como reação à referida decisão, o Poder Legislativo aprovou, em seguida, a Emenda Constitucional nº 96, que acrescentou o § 7º ao artigo 225 da Constituição Federal, com o seguinte teor:

Art. 225. [...]

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.

Observa-se, no presente caso, um flagrante exemplo do efeito backlash, na medida em que, após uma decisão do Poder Judiciário, houve uma intensa reação popular, mormente nas localidades em que havia a prática da vaquejada e de atividades similares, o que levou o Poder Legislativo a alterar o texto constitucional, assegurando a prática como espécie de manifestação cultural.

Outro exemplo prático ocorrido no Brasil se deu no episódio em que um indivíduo ejaculou no pescoço de uma passageira em um ônibus no Estado de São Paulo. Segundo Fonteles (2019, p. 35/36):

“[...] José Eugênio do Amaral Souza Neto, Juiz de Direito do Estado de São Paulo, afirmou não ter havido constrangimento na conduta do agente que ejaculou no pescoço de uma jovem, no interior de um ônibus, razão pela qual não valorou os atos como se eles traduzissem um estupro, mas sim uma importunação ofensiva ao pudor. [...]”

Após a decisão do magistrado, a sociedade, enojada com o comportamento do indivíduo, iniciou intensas manifestações nas redes sociais, apoiada por veículos midiáticos, o que culminou na edição da Lei 13.718/18, que acresceu o art. 215-A do Código Penal para tipificar o crime de importunação sexual, in verbis:

Importunação sexual

Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

Um terceiro exemplo, dessa vez não jurisdicional, ocorreu quando o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 175, que determinou aos cartórios que reconhecessem o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

À época, muitos oficiais de registro organizaram movimentos e se recusaram a acatar o teor da Resolução, em virtude de suas posições religiosas e morais, o que também pode ser entendido como manifestação do efeito backlash.

Percebe-se, portanto, que a atuação do Poder Público, por vezes, gera tamanha reação na sociedade que acaba culminando um efeito distinto daquele proposto no ato inicial.

No caso da vaquejada, por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal fez com que o legislador legitimasse a prática que fora considerada inconstitucional. Lado outro, a decisão do magistrado de São Paulo fez com que o legislador tipificasse uma conduta de maneira mais severa.

Diante do exposto, percebe-se que o tema é sensível e merece maiores reflexões, já que a “chegada” do efeito backlash em solo brasileiro consiste em realidade inexorável. Nesse sentido, devem ser encarados com seriedade os possíveis desacordos decorrentes dos atos do Poder Público, de modo a buscar a melhor solução, para que se evitem retrocessos nos direitos conquistados e para que o “instrumento” seja utilizado, na verdade, como forma de impulsão à progressividade dos direitos fundamentais.


Referências bibliográficas

https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/backlash Acesso em 14.11.2020.

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Sobre a autora
Iandra Salviano Araújo

Formada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. - Ex-servidora do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (assistente de Juiz do Trabalho). - Procuradora do Trabalho.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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