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Teria havido omissão de socorro?

20/11/2020 às 18:00
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O artigo discute a existência do crime de omissão de socorro a partir de fato concreto ocorrido em Porto Alegre.

Um homem negro foi espancado e morto por dois homens brancos em uma unidade do supermercado Carrefour no bairro Passo D'Areia, na zona norte de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, na noite de quinta-feira, 19, véspera do Dia da Consciência Negra. Informações preliminares apontam que um dos agressores é segurança do local e o outro é um policial militar temporário que fazia compras no local. A vítima, João Alberto Silveira Freitas, tinha 40 anos.

As pessoas que filmaram o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, em um supermercado Carrefour de Porto Alegre podem ser enquadradas no crime de omissão de socorro, com pena que pode chegar a 18 meses de prisão, segundo o artigo 135 do Código Penal.

O tipo penal erigido no artigo 135 do Código Penal revela o egoísmo erigido em delito e pode ser realizado por qualquer pessoa, não sendo necessário que haja precedente dever jurídico de assistência ou guarda em relação ao sujeito passivo, ao contrário do tipo penal de abandono. Há uma violação do dever moral de solidariedade e de assistência. A prestação de socorro a lesionados, sobre ser um dever moral de assistência e solidariedade, constitui um dever jurídico(JUTACRIM 49/190). O dever de assistência é, naturalmente, limitado pela possibilidade e capacidade individual, determinando-se estas diante das circunstâncias do caso concreto. O socorro a que está obrigado o sujeito é somente aquele que, por sua capacidade e as circunstâncias vigentes, lhe foi possível prestar. Não exige a lei que o sujeito pratique ato privativo de médico, por exemplo, pela morte se esta necessitava de tratamento especializado, impossível de ser ministrado no hospital onde trabalhava(RT 514/386). Mas o socorro há de ser imediato, pois a demora ou a dilação importa o descumprimento do dever imposto por lei(RT 541/426).

O sujeito ativo do crime previsto no artigo 135 do CP, como dito é qualquer pessoa. Por sua vez, o sujeito passivo pode ser: criança abandonada ou extraviada(menor que não seja capaz de autodefesa), pessoa inválida ou ferida, ao desamparo; qualquer pessoa, em grave ou iminente perigo. Pessoa inválida é a pessoa incapaz de prover à própria segurança e subsistência, em razão da idade ou ainda moléstia. Estará a vítima, nessas situações, em situação de desamparo, abandonada e sem cuidado. Para Júlio Fabbrini Mirabete(Manual de direito penal, volume III, pág. 111), criança é pessoa que não tem condições de autodefesa por imaturidade e pessoa inválida é aquela que “por condição pessoal, de ordem biológica, física ou psíquica, como doença, defeito orgânico, debilidade ou velhice, não dispõe de forças para dominar o perigo”.

Sendo assim é mister que a pessoa esteja ao desamparo, que “precisando de auxilio que a livre do perigo à incolumidade pessoal, é deixada entregue a si mesma, ao acaso”, ou em grave e eminente perigo, que é grave e iminente quando há ameaça à vítima de modo notável de um resultado lesivo que está para ocorrer, de risco imediato.

Elucidativa a conclusão de Damásio Evangelista de Jesus(Direito penal, volume ((, 4ª edição, pág. 111), para quem “a melhor interpretação do art. 135 do CP é aquela que indica qualquer pessoa em grave e iminente perigo como sujeito passivo de omissão de socorro, não se exigindo que seja inválida ou esteja ferida”. Outra é a posição de Aníbal Bruno(Crimes contra a pessoa, 3ª edição, pág. 121), que pondera que “mas por mais conforme que pareça essa conclusão com o espírito que inspira a atitude do Direito, na hipótese, a redação do dispositivo legal não permite esse entendimento. Ao desamparo e em grave e iminente perigo são condições que qualificam pessoa inválida ou ferida”.

O tipo objetivo envolve deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, ou em não pedir socorro à autoridade pública, ao deparar com a vítima.

Pressuposto de fato é a circunstância de encontrar o agente uma pessoa que se ache em situação indicada pela lei(criança extraviada ou abandonada, pessoa inválida ou ferida etc). Assim não há crime se o agente apenas tem conhecimento de que há uma pessoa em perigo, exigindo-se que esteja em presença da vítima, ou pelo menos no mesmo lugar em que ela se encontra, tomando conhecimento de sua situação de perigo com a vista ou o ouvido.  Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, parte especial – artigos 121 a 212 do CP, 1983, pág. 161) leciona que só excepcionalmente poderá admitir-se a existência do crime de omissão de socorro sem que esteja o agente na presença da vítima( absoluta necessidade de socorro por parte da pessoa a quem é solicitado, como no caso do médico; certeza ou verossimilhança da comunicação de que há pessoa em perigo). Em caso concreto, entendeu-se que aquele que após atropelar a vítima, deixa-a abandonada na via pública, em plena madrugada, fugindo à responsabilidade de assistência, desenvolve comportamento que se enquadra no tipo penal do artigo 135 do CP(RJD 2/106).

O crime é omissivo próprio, uma vez que haja uma violação de mandado ou uma ordem, que imponha uma conduta positiva. Isso porque a obrigação que a lei impõe é de prestar socorro, desde que possível fazê-lo sem risco pessoal ou dar aviso à autoridade. É crime omissivo próprio, envolvendo abster-se de atividade devida, imposta pela norma penal. Sua consumação se dá com a omissão da atividade imposta, alternativamente, pela lei, no momento em que tal atividade era oportuna, independentemente da superveniência de qualquer dano ou que desapareça o perigo. Mas, limita-se a lei a excluir o dever de assistência quando se tratar de risco pessoal, persistindo o dever de agir no caso de risco a outro bem jurídico(patrimonial, moral etc). Trata-se de delito instantâneo e não se elide pelo retorno do autor ao local, onde, de começo, ficara a vítima ao desamparo(JTACrSP 56/201). Para Euclides C. da Silveira(Crimes contra a pessoa, pág. 193) o delito pode ser eventualmente permanente, como nos seguintes casos: a) a mãe deixa de alimentar o filho ate matá-lo de inanição, sem que a empregada, que vive na mesma casa, tome as providências cabíveis; b) habitando num único quarto duas pessoas, uma delas contrai gravíssima enfermidade, que a prende ao leito, durante dias seguidos, enquanto o seu companheiro a deixa desamparada, sem se dar ao trabalho de prestar-lhe o menor auxílio; c) o caçador, em plena floresta, ouve, durante toda uma noite, uma criança chorar, à porta de sua cabana, enquanto ele se mantém impassivelmente deitado”. Como crime omissivo próprio não comporta tentativa, pois, como ensinou Magalhães Noronha(obra citada, pág. 107): ou o agente não socorre e dar-se a consumação, ou pode ainda socorrer e se caracteriza a execução parcial do tipo.

Estando a vítima em perigo surge o dever jurídico de assistência que pode ser pessoal e direta ou através de autoridade pública(policia, juiz ou curador de menores etc). Tanto faz que haja pedido de socorro por parte da vítima. Só está obrigado ao socorro direto quem puder prestá-lo sem risco para a própria incolumidade pessoal(não patrimonial ou moral). Na lição de Nelson Hungria(Comentários ao código penal, volume V, 427) esta fórmula desobriga do socorro pessoal mesmo quem tem o dever legal de enfrentar o perigo, aqueles que não podem alegar o estado de necessidade e cuja profissão ou atividade esteja de forma íntima ligada ao risco e ao perigo como bombeiros, guarda-vidas, por exemplo. Mas entende-se que não exige a lei que o sujeito arrisque a própria vida ou integridade corporal a fim de auxiliar a vítima, podendo escusar-se aquele que comprovar que, no caso de agir, sofreria risco pessoal. Para Júlio Fabbrini Mirabete(obra citada, pág. 112) não deixa de ser um caso de estado de necessidade inserido como elemento normativo do tipo. Já se julgou, porém, que o risco, como que por vezes corre o motorista que, tendo atropelado a vítima sem culpa, teme represálias, deve ser justificado e demonstrado(JTACrSP 40/329).

Ensina ainda Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 162) que o crime pode ser praticado também se o agente, deixando de prestar assistência diretamente, não pede socorro da autoridade pública. Somente é outorgada ao agente a faculdade de pedir socorro da autoridade pública, eximindo-se de prestá-lo pessoalmente, quando seja possível obtê-lo em tempo oportuno. Mas a alternatividade não fica ao alvedrio da pessoa que encontra o periclitante. Pode o agente deixar de prestar assistência pessoal, para pedir socorro à autoridade, somente no caso em que a vítima não esteja em perigo direto e iminente, que somente seria afastável pela imediata ação pessoal. Estudando a segunda conduta omissiva que é de não pedir o socorro da autoridade pública, disse Júlio Fabbrini Mirabete(Manual de direito penal, volume III, 25ª edição, pág. 112) que não se trata de equivalente ou alternativa à primeira figura. Para isso ensinou Magalhães Noronha(Direito penal, volume II, pág. 106, que “o comportamento do agente é ditado pelas circunstâncias. Há casos em que o pedido de socorro à autoridade é absolutamente inócuo e, em tal hipótese, se ele podia prestar assistência, cometerá o crime, não obstante o apelo de socorro”.

A origem do perigo e irrelevante. Pode ele ter sido sido causado pelo próprio periclitante. Pode ainda ser causado pelo próprio agente, sem culpa. Já se entendeu que o motorista que, sem culpa, atropela o pedestre e o deixa ao desamparo, pratica o crime de omissão de socorro, como deixou consignado Heleno Cláudio Fragoso(Jurisprudência criminal, nº 372). Ainda se decidiu que o delito do artigo 135 do CP exige, como um dos elementos formadores da omissão de socorro, que o autor da situação de perigo não seja o próprio causador das lesões(JUTACRIM 47/232). Ainda se concluiu que responde por omissão de socorro o médico que, embora solicitado, deixa de atender de imediato a paciente que, em tese, corra risco de vida, omitindo-se no seu dever de facultativo(JUTACRIM 47/223).

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O evento de perigo é presumido juris et de iure se o sujeito passivo for criança abandonada ou extraviada, ou pessoa inválida ou ferida, ao desamparo, não aproveitando ao agente a prova de que in concreto inexistia, nesses casos, perigo para a liberdade pessoal, como se vê da lição de Nelson Hungria(obra citada, pág. 427). Assim somente se exige o perigo concreto na hipótese de ser a vítima pessoa em grave e iminente perigo. Por sua vez, João Bernardino Gonzaga(O crime de omissão de socorro, 1957, 103) afirma ser sempre necessário, para a existência do crime, a efetiva superveniência do perigo para a vida ou a saúde. De toda sorte, exige-se o maior rigor na apreciação da probabilidade de dano e sua maior extensão, como ainda ensina Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 163).

A doutrina entende, em sua maioria, como relatam Celso Delmanto, Roberto Delmanto e outros(Código penal comentado, 6ª edição, pag. 289), que há caso de crime de perigo concreto na hipótese de pessoa em grave e iminente perigo e presumido nos demais. Ainda para a doutrina a forma alternativa com que se redigiu o artigo 135 do CP não permite a livre escolha de comportamento. Se o agente pode prestar assistência pessoal, sem risco não basta que peça o socorro, quando este for insuficiente para afastar o perigo. Para Nelson Hungria(obra citada, pág. 443) o pedido de socorro não excluiria o delito quando pudesse tempestivamente conjurar o pedido.

O perigo a que a lei se refere é o que recai sobre a pessoa física do ofendido – sua vida ou saúde, não se caracterizando o delito se há periclitação ao patrimônio. Se trata-se de liberdade não se exclui esse crime, como no caso de quem pode auxiliar a vítima, no cárcere privado a safar-se e não o faz.

Para o caso deverá haver a devida apuração no sentido de saber se há materialidade do delito e se seus supostos autores agirem com o dolo exigido pelo tipo penal.

As gravações, como prova documental, indicam que a vítima foi objeto de violenta agressão por parte dos seus homicidas.

Pergunta-se: Esse grau de violência poderia levar as pessoas a não darem assistência à vítima? Poderiam essas pessoas não ter agido por entender que estariam sob risco pessoal? Seria esse pedido de socorro absolutamente inócuo diante da situação envolvida? Por que essas pessoas envolvidas não apresentaram um pedido de socorro a quem de direito? Esse pedido de socorro poderia ser feito a tempo de conjurar o perigo?

Tudo isso deve ser respondido no inquérito policial para tanto aberto.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Teria havido omissão de socorro?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6351, 20 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86913. Acesso em: 22 dez. 2024.

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