Sumário: Introdução. Capítulo I – Da sucessão hereditária e testamentária. 1.1. Da Sucessão Legítima. 1.2. Dos Herdeiros Necessários.1.3. Dos Herdeiros legítimos. 1.4. Dos Herdeiros Facultativos. Capítulo II - Do testamento e da restrição do direito de testar. 2.1. Das Cláusulas Restritivas no testamento. 2.2. Da restrição à liberdade de testar. Capítulo III – Autonomia privada e sua origem. 3.1. Relativização do princípio da autonomia privada em relação ao direito de testar. 3.2. Países que admitem o direito à liberdade de testar. 3.3. Necessidade de repensar os limites para testar no Brasil. 3.4. Fundamentos: necessidade da reforma da legítima. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Tema de grande dogma no direito das sucessões é a limitação legal do direito de testar.
Ao longo dos tempos, essa limitação sempre foi usada para assegurar, em caso de morte, os familiares do de cujus.
Contudo, no atual desenho de família moderna, em que há independência econômica entre pais e filhos, sobretudo, há ainda amparo social para se manter a vedação de se testar cem por cento de seu patrimônio?
Não se pode olvidar que a vedação legal de não poder o testamentário dispor de seus bens para uma determinada pessoa, fere em direito personalíssimo e vai além do ato que advém da vontade própria de uma pessoa de poder escolher a quem deixar os seus bens e direitos.
Sob esse problema que se propõe a análise do presente artigo, ou seja, tratará a respeito da vedação legal do testador dispor de cem por cento de seus bens. Para tanto, serão apresentados conceitos inerentes ao direito sucessório com base em pesquisas bibliográficas e legais, para que este artigo seja de bom entendimento para todos.
Ainda, o artigo abordará de início a forma como a legislação trata a sucessão hereditária e testamentária. Posteriormente, será tratada a autonomia privada e sua origem. Ao final, com análise do direito comparado, será criticada a limitação ao direito de testar no Brasil.
1. DA SUCESSÃO HEREDITÁRIA E TESTAMENTÁRIA
Ante de se adentrar ao cerne do presente trabalho, que diz respeito ao limite de testar, necessária a abordagem de aspectos do direito sucessório inerentes ao tema sob debate, notadamente quanto aos sucessores hereditários e os testementários, o que far-se-á neste capítulo.
1.1. Da Sucessão Legítima
A sucessão legítima ou legal dá-se em observância a ordem de vocação hereditária e aos parâmetros estabelecidos na legislação.
Ao se analisar a legítima, nota-se que seria uma forma de sucessão em casos mais excepcionais, isto é, quando não houve testamento. Ocorre que, a preferência legal pela sucessão legítima retrata a realidade social da população brasileira, entretanto, o testamento ainda é utilizado, porém, com menos frequência.
E, além disso, a sucessão legítima também será aplicada caso algum bem, seja deixado de fora do testamento, ou até mesmo, se houver algum vício no testamento.
“Pela sucessão legítima, a lei determinará quem serão herdeiros, a ordem de vocação hereditária, bem como a parcela dos bens que caberá a cada um. Na ausência de disposição de vontade por parte do sujeito, por meio do testamento, a lei é aplicada como critério sucessório.” (DANTAS, 2015, p. 22)
Portanto, a legítima tem um papel importante para o direito das sucessões, posto que incide com bastante frequência, e podemos dizer que, o modelo de sucessão legítima é melhor aceito pela população brasileira.
1.2. Dos Herdeiros Necessários
Lôbo (2020, p. 79), em sua obra, explica que “Entre os herdeiros legítimos há os que o direito tutela de modo especial, garantindo-lhes uma parte intangível da herança, denominada legítima. São os herdeiros necessários”. Ou seja, para os herdeiros legítimos, também denominado herdeiros necessários, já há uma parte garantida na herança, assim dizendo, uma parte intocável, denominado legítima.
A sucessão legítima necessária, também chamados de sucessão legitimaria, advém de uma primitiva e antiga civilização, onde o patrimônio teria que ficar, como regra, no círculo estreito da comunidade familiar.
Porém, somente com o advento do Código Civil de 2002, os herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes, o cônjuge sobrevivente ou o companheiro sobrevivente passaram a ser classificados como herdeiros necessários. Entretanto, na legislação anterior, no Código Civil de 1916, o cônjuge sobrevivente não era considerado como herdeiro necessário.
Como bem explicado pelo autor Paulo Lôbo, o intuito do legislador em denominar a qualificação legal dos herdeiros necessários, entre os herdeiros legítimos, é apenas para a proteção, para resguardar a parte da herança que não pode ser passada a outros parentes ou a estranhos, por meio de atos de liberalidade, como por exemplo, doação, até mesmo, pelo testamento, denominada legítima ou parte indisponível.
Por outro lado, o Código Civil de 2002 também inclui-o a concorrência sucessória obrigatória do cônjuge e do companheiro com os descendentes ou ascendentes do testador, tornando-os herdeiros necessários, sendo assim, compartilham a parte legítima ou indisponível da herança.
Como se percebe, a inclusão do cônjuge e do companheiro, como herdeiros necessários concorrentes dos descendentes, atende ao cenário atual onde a garantia de tutela dos integrantes mais próximos excluem os de graus mais distantes.
1.3. Dos Herdeiros legítimos
Os herdeiros legítimos estão indicados no art.1.829 como sucessores legais, aqueles a quem se transmite a herança em sua totalidade.
Quando se tem os herdeiros legítimos o testador não pode dispor da totalidade dos bens que constituem a legítima. Sendo eles os descendentes, os ascendentes o cônjuge sobrevivente e o companheiro, conforme estão dispostos nos arts. 1.846. e 1.829 do Código Civil.
Na falta dos herdeiros necessários os facultativos serão chamados a suceder. No entanto, caso o testador queira exclui-los da sucessão é necessário apenas que disponha dos bens sem os contempla-los.
1.4. Dos Herdeiros Facultativos
Já os facultativos são os herdeiros chamados a suceder em dois momentos diferentes:
quando seu nome consta incluído no testamento, como disposição de última vontade (também sendo considerados como herdeiros testamentários); ou
quando não houver herdeiros necessários, sendo chamados para receber a herança (artigos 1.838 e 1.839 do Código Civil).
Sendo assim, os herdeiros facultativos não têm proteção da lei para que sua inclusão na herança ocorra, no entanto, são chamados a suceder em algumas situações. Os herdeiros facultativos irão suceder então quando o testador assim escolher ou na ausência dos herdeiros necessários.
2. Do testamento e da restrição do direito de testar
O testamento é a manifestação da última vontade do “de cujus”, ou seja, após a morte do testador, todo ou uma parte do seu patrimônio, será transmitido aos seus sucessores indicados. Porém, no período clássico do direito romano entre os séculos II a.C. até o século III d.C., neste período, o testamento era desconhecido.
Nesta época os costumes eram quase que exclusivamente a única fonte de direito, portanto, aqueles que não obedeciam aos costumes, a própria lei, e instituíam herdeiros sem o consentimento, eram punidos.
Carlos Roberto Gonçalves disciplina que:
O testamento, ao menos como ato de última vontade como o compreendiam os romanos, no período clássico de seu direito, era desconhecido no direito primitivo. Nem sempre a lei e os costumes o admitiam, havendo legislações pelas quais eram punidos aqueles que pretendiam instituir herdeiros ao arrepio da lei. (GONÇALVES, 2020, p. 231-232)
De acordo com Carlos Roberto Gonçalves, (2020, p. 232) “coube aos romanos a criação do testamento, instituição que, depois do contrato, exerceu a maior influência na transformação das sociedades humanas”. Podemos dizer então, que o testamento é uma invenção dos Romanos.
Assim, antes da Lei das XII Tábuas, surgiram os primeiros tipos de testamentos, denominados em duas espécies, sendo o primeiro, chamado “in calatis comitês” testamento realizado em tempo de paz, diante de comícios que se reuniam duas vezes por ano, e o segundo denominado “in procinctu” realizado em tempo de guerra, realizado com o povo reunido em ordem de batalha.
A permissão para dispor de bens, por morte, ou seja, sem a intervenção do povo, foi estabelecida pela Lei das XII Tábuas. A forma instituída era emancipação, denominada “per aes et libram”, isto é, por dinheiro e peso, era uma venda fictícia realizada pelo testador ao futuro herdeiro, diante de um oficial e cinco testemunhas.
No direito clássico romano, eram admitidos como testamento válido, aquele apresentado por testemunhas, sendo sete testemunhas para válida o ato. Porém, apenas no Baixo Império e no período pós-clássico, vão surgir, os tipos de testamentos que hoje fazem parte no nosso ordenamento jurídico.
Assim, desde os romanos, testamento é a última vontade declaração do autor, que após sua morte, seus bens sejam transmitidos na totalidade ou em parte aos seus sucessores indicados. Como diz Carlos Roberto Gonçalves:
A clássica definição de MODESTINO, proveniente do direito antigo, tem perdurado através dos séculos: “Testamentum est voluntatis nostrae justa sententia, de eo, quod quis pos mortem suam fieri velit” (Testamento é a justa manifestação de nossa vontade sobre aquilo que queremos que se faça depois da morte). (GONÇALVES, 2020, p. 233)
Por sua vez, a doutrina majoritária enumera como características do testamento como, um negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável, gratuito, solene e revogável, e além disso, o testador pode fazer disposições de caráter patrimonial ou extrapatrimonial como reconhecer uma paternidade.
Quanto as formas testamentarias, tem-se o testamento público (arts. 1.864. a 1.867 do CC), cerrado (art. 1.868. do CC) e particular (art. 1.876. do CC).
Todavia, os requisitos do testamento são essenciais para sua validação, como no testamento particular, que deve ser redigido de próprio punho pelo testador, e na frente de três testemunhas e ele deve ser lido e assinado pelas mesmas.
Logo, em que pese o testamento ser a manifestação da vontade do testador, deve-se observar as formalidades legais. No entanto, sempre buscando respeitar a última vontade do testador, tanto que há previsão legal de que o testamento deve ser interpretado sempre buscando harmonizar com a vontade manifestada pelo testador, de acordo art. 1.899. do Código Civil.
Apesar do testamento ser uma prática bastante utilizada em outros países, lamentavelmente não é uma pratica muito comum na cultura brasileira. Sílvio Venosa, cita alguns motivos que talvez justifique a não utilização desse instrumento sucessório:
“[...] ao lado das causas que comumente se apontam, tais como a excelência da sucessão legítima, como tendência natural dos titulares de patrimônio, ou o apego à vida, porque testar é se lembrar da morte, há o fato de que o excesso de solenidades do testamento, com risco sempre latente de o ato poder sofrer ataques de anulação após a morte, afugenta os menos esclarecidos e mesmo aqueles que, por comodismo, ou receio de ferir suscetibilidades, não se abalam em pensar em disposições de última vontade.” (VENOSA, 2017, p. 193)
Além do mais, o ordenamento jurídico brasileiro preza pela proteção do patrimônio, por isso, existem formas de se anular um testamento. Além disso, para considerado válido, o testamento tem que cumprir os requisitos e formalidades legais, especialmente o testamento particular, pois e realizado sem a presença de uma autoridade pública.
2.1. Das Cláusulas Restritivas no testamento
Apesar da legítima ser uma regra no Direito Sucessório, e uma prática muito mais comum em nosso ordenamento jurídico que o testamento, lamentavelmente, detém formas de limitação, com a imposição de cláusulas restritivas da legítima.
Todavia, a clausulação é a oportunidade do testador de inserir em testamento cláusulas que delimitam a legítima, são elas a incomunicabilidade, a impenhorabilidade e a inalienabilidade. No entanto, o testador deve justificar o motivo de tal conduta.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2020, p. 219) a “Cláusula de incomunicabilidade é disposição pela qual o testador determina que a legítima do herdeiro necessário, qualquer que seja o regime de bens convencionado, não entrará na comunhão, em virtude de casamento”.
A cláusula de incomunicabilidade é uma disposição imposto pelo de cujus como forma de impedir que os bens recebidos em doação, herança ou legado não seja incluído no patrimônio do casal, para que o bem não se comunique com o do cônjuge (meação), ou seja, permanecerá somente no patrimônio da pessoa beneficiada.
A cláusula de impenhorabilidade imposta pelo testador, implica que os bens da legítima, recebida em testamento ou por doação, seja alienado, ou seja, visa impedir a sua constrição judicial, isto é, a penhora, entre outros, por dívidas contraídas do seu proprietário, restringindo assim a atuação dos credores.
Já a cláusula de inalienabilidade, tem o objetivo de impedir a alienação de algum bem, sendo comumente instituída para evitar que o beneficiário disponha do bem de maneira abusiva, dilacerando patrimônio, por incompetência administrativa, inexperiência ou outros.
A imposição das cláusulas restritas, que restringem a legítima é considerada uma proteção ao núcleo familiar pelo ordenamento jurídico, uma vez que, o testador não pode inseri-las ao seu arbítrio, e também tem os herdeiros necessários.
Outra restrição à legítima é a deserdação, no qual é aplicado quando o testador por algum motivo priva um herdeiro necessário de seus bens, ou seja, quando os herdeiros cometem algum erro contra o autor, como uma ofensa física, injúria e desamparo. Caso isso ocorra, o de cujus poderá deserdar seus herdeiros, desde que justifique tal conduta.
2.2. Da restrição à liberdade de testar.
Como dito acima, no presente trabalho, aos herdeiros necessários a lei assegura o direito à legítima, nos casos em que o regime do casamento a instituir.
Ainda, há de se destacar a porção ou quota disponível, que pode ser deixada livremente pelo testador. Não havendo descendente, ascendente ou cônjuge, o testador desfruta de plena liberdade, podendo transmitir todo o seu patrimônio (que nesse caso, não será divido em legítima e porção disponível) a quem desejar, salvo às pessoas não legitimadas a adquirir por testamento (art. 1.798. e 1.801).
A norma acima citada coloca restrições à liberdade de testar e de doar, com a intenção de proteger o direito dos herdeiros e lhes dando devida importância e proteção, sob o prisma do princípio da isonomia entre os sucessores.
Logo, esse ato de última vontade não é pleno, pois a lei propõe restrições no caso de o testador ter herdeiros necessários, sendo que estes por determinação do art.1.846 do Código Civil terão direito a metade dos bens, sobrando então a outra metade que poderá o testador dispor livremente.
Art. 1846 CC: “Pertence aos herdeiros necessários de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima. ” (BRASIL, 2002)
Assim, o testador terá total liberdade para dispor de todo o seu patrimônio caso não haja, descendentes, cônjuge e/ou ascendentes.
Em havendo herdeiros necessários, não pode o disponente testar ou legar parte dos bens que invada a legítima (art. 1857, parágrafo primeiro, do CC). Caso o testamento abarque a legítima, poderemos estar diante de redução das disposições testamentárias, ou de rompimento de testamento. (TARTUCE, 2015, p.558)
Ressalta-se que, não somente a limitação a liberdade de testar, a lei propõe que a pessoa respeite o princípio da indisponibilidade da legítima, em casos de doação, sob pena dessa doação tornar-se inoficiosa.
Com isso, a doação inoficiosa é aquela que contém mais de cinquenta por cento do patrimônio deixado pelo doador, ferindo de forma antecipada a legítima. O art.549 do Código Civil, traz em sua redação que a doação quando feita o que exceder a parte em que o doador possa dispor livremente será nula.
Estando vivo o testador e não havendo uma ação para a redução, quando este vier a morrer haverá a redução da liberalidade, caso contrário há o dever de colacionar. Destaca-se, por oportuno, que colação é a obrigação dos descendentes, para que possa igualar as legítimas e declararem o valor das doações que receberam do ascendente em vida. Os descendentes que receberam algum tipo de doação do testador em vida, deverá apresenta-las sob pena de sonegação, quando estes concorrerem com ascendentes do testador, de acordo com o art. 2002. do Código Civil.
Como dispõe a Maria Helena Diniz, “o pai poderá fazer doação a seus filhos, que importará em adiantamento da legítima, devendo ser por isso conferida no inventário do doador, por meio de colação”. (DINIZ, 2006, p. 510)
Também dispõe o doutrinador Silvio de Salvo Venosa:
“Toda doação feita em vida pelo autor da herança a um de seus filhos presume-se como um adiantamento de herança. Nossa lei impõe aos descendentes sucessíveis o dever de colacionar”. (VENOSA, 2017, p.432)
Deste modo, entende-se que toda e qualquer doação que o testador fizer a seus descendentes será considerada uma forma de burlar o instituto do testamento, e assim adiantar parte do mesmo da herança. Todavia os herdeiros a que foi conferido toda e/ou qualquer tipo de doação deverá ser constada no inventario do doador.
Vê-se, pelos pontos até aqui apresentados, que há uma limitação ao testador, adentrando, desta feita, o legislador em sua autonomia privada, o que torna necessária sua abordagem, como se fará no capítulo adiante.
3. AUTONOMIA PRIVADA E SUA ORIGEM
O princípio da autonomia privada destaca a vontade objetiva, que resulta da manifestação da vontade, fonte de efeitos jurídicos, isto é, significa a liberdade que é garantida ao homem de atuar de acordo com suas vontades e desejos, por si mesmo.
A autonomia privada é habilidade dos sujeitos privados de criarem normas, ou seja, de auto regulamentarem as suas relações jurídicas. “Etimologicamente, o termo autonomia tem origem no grego autós, que significa próprio, a si mesmo, e nomos, que significa norma, lei, ou seja, significa sob esse aspecto, autogoverno ou o direito de criar as suas próprias normas.” (BORGES, 2007, p. 60)
Ana Carolina Lobo Gluck Paul, define a autonomia privada:
“A liberdade é talvez um dos direitos mais antigos reconhecidos à pessoa, ainda quem em dados momentos históricos os destinatários da liberdade tenham ficados restritos a determinados grupos. Por isso mesmo é, também, inexoravelmente, um dos direitos que historicamente mais sofreu evolução e redimensionamento em seu conteúdo, tanto que a liberdade está pulverizada em praticamente todas as relações jurídicas, sejam elas de natureza pública ou privada.” (PAUL, 2008, p.14)
Para conceituar “autonomia privada”, teremos que tratar da sua relação com a autonomia da vontade, uma vez que, a mudança na estrutura estatal, transformou o conceito de autonomia, tornando-o bastante diverso. Assinala Bruno Torquato de Oliveira Naves que:
Para alguns, autonomia da vontade seria o gênero, do qual se constituiriam espécies a autonomia pública e a autonomia privada. Seriam variações em razão do sujeito que assume o poder de determinar o ato, se ente particular ou ente público. Entretanto, ambas vincular-se-iam diretamente à vontade.” (NAVES, 2014, p. 83)
Para alguns doutrinadores, existe uma distinção entre os dois institutos jurídicos, no entanto, para outros autores, a diferença entre as duas autonomias não existe, como Carlos Alberto Mota Pinto, que instrui:
O negócio jurídico é uma manifestação do princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade, subjacente a todo o direito privado. A autonomia da vontade ou autonomia privada consiste no poder reconhecido aos particulares de auto-regulamentação dos seus interesses, de autogoverno da sua esfera jurídica. Significa tal princípio que os particulares podem, no domínio da sua convivência com os outros sujeitos jurídico-privados, estabelecer a ordenação das respectivas relações jurídicas. Esta ordenação das suas relações jurídicas, este autogoverno da sua esfera jurídica, manifesta-se, desde logo, na realização de negócios jurídicos, de actos pelos quais os particulares ditam a regulamentação das suas relações, constituindo-as, modificando-as, extinguindo-as e determinando o seu conteúdo. (PINTO, 2005, p. 102)
Nota-se que não existe unanimidade quando o assunto é a possível distinção entre as definições autonomia da vontade e autonomia privada.
Além disso, pode-se observar que apesar do conflito entre autonomia privada e autonomia da vontade, verifica-se que ambos os institutos asseguram ao cidadão a liberdade da regulamentação dos próprios interesses, sem as restrições e intervenções do Estado. Como arremata Marcos Jorge Catalan, “a autonomia privada autoriza ao indivíduo a criar normas jurídicas, detentoras de eficácia plena no ordenamento, atando os particulares que a elas se obrigarem.” (CATALAN, 2002, p. 435)
Assim, chega-se à conclusão que o princípio da autonomia privada, é um poder jurídico conferido ao cidadão para manifestar a sua vontade, e regular suas próprias normas.
3.1. Relativização do princípio da autonomia privada em relação ao direito de testar
O princípio da autonomia privada, está intimamente ligado com o direito sucessório, à medida que a disposição testamentária, inevitavelmente encontrasse resguardado nos 50% (cinquenta por cento) total do patrimônio, que possa ser testado aos legitimados, isto é, de modo que não depende da vontade do de cujus.
O poder jurídico do princípio da autonomia privada, assim como qualquer outro poder ou direito, não é absoluto, ou seja, possuem limites legislativos, como na hipótese do direito sucessório. Diante disso, resta claramente demonstrado que há a necessidade de alterar a regra legislativa em relação ao direito sucessório, pois, o que deve ser levado em conta é a autonomia privada do testador, ou seja, o seu último desejo.
Vale ressaltar, como expõe Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2005, p.58) a autonomia privada, como no caso, seria de eficácia plena dentro da sua parcialidade autônoma e legal. Logo, a autonomia privada é limitada aos limites legais estabelecidos pelos legisladores, não podendo ultrapassar tais limites.
Nos dizeres de Ana Luiza Maia Nevares (2016, p.12), “o planejamento sucessório consiste em um conjunto de medidas executadas com o objetivo de definir a transmissão hereditária de bens e direitos de uma pessoa previamente ao seu falecimento”. Ou seja, o planejamento sucessório, é um instrumento preventivo eficiente para tentar evitar conflitos entre herdeiros, e um meio vantajoso para respeitar a sua autonomia privada, isto é, a sua última vontade.
A limitação à autonomia privada funda-se na sucessão testamentária, visto que, a manifestação do testador se encontra através do testamento. Nos dizeres de Tartuce (2020, p. 395) “o testamento como um negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou extrapatrimonial, para depois de sua morte”.
Neste mesmo sentido, Tartuce (2020, p. 395) “trata-se do ato sucessório de exercício da autonomia privada por excelência”. Desse modo, o testamento é um meio necessário para expressa a última vontade do testador, e deve-se atentar as exigências do testamento, isto é, a tríplice função, para se evitar a nulidade do testamento.
Gomes (1995, p.92) explica a necessidade da tríplice função testamentária:
A sucessão testamentária exige, do seu instrumento, a observância de formalidades numerosas, que desempenham tríplice função: preventiva, precatória e executiva. Os elementos formais do testamento têm por fim assegurar a livre e consciente manifestação da vontade do testador, atestar a veracidade das disposições de última vontade e fornecer aos interessados um título eficaz para obter o reconhecimento dos seus direitos.
Assim, o testamento é um ato jurídico unilateral, pois constitui exclusivamente o último desejo do testador, e não depende da concordância dos sucessores.
Em se tratando de negócio jurídico o testamento pode ser considerado como uma espécie de negócio jurídico gratuito não gerador de vantagem ao autor da herança. Assim, Tartuce (2019, p.2293) dispõe que não há qualquer forma de contraprestação para que os bens sejam adquiridos ou qualquer direito advindo de um testamento.
Antes mesmo que o testador morra o testamento é válido, mas ineficaz, por se tratar de um negócio mortis causa seus efeitos só serão validos após a morte do testador. Caso o testador faça qualquer disposição para além da legítima, só será valido oque corresponder cinquenta por cento, que é a quantidade que o mesmo pode dispor livremente. Os cinquentas por cento restantes pertencem correspondem a parte dos herdeiros necessários.
O artigo 1.857 do Código Civil, que dispõe sobre a sucessão testamentária, aponta que toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade de seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte. É possível notar a ampla atuação da autonomia privada, quando o testador supostamente poderia testar livremente sobre seus bens, sem qualquer limitação.
No §1º do mesmo artigo estão presentes as limitações da autonomia privada, que o mesmo dispositivo legal em outra oportunidade prevê, quando dispõe que o testador não poderá dispor para além da legítima dos herdeiros.
Assim, a garantia dada pelo caput do artigo 1.857 do Código Civil é impreterivelmente limitado pela redação do mesmo artigo. Ocorrendo então a limitação da autonomia privada no negócio jurídico que foi realizado. Deste modo o instituto da legítima, limita a sucessão testamentaria não respeitando a última vontade do autor da herança.
Carminate (2014, p.59) afirma que “para que se possa legitimamente restringir a liberdade de dispor, tem de se verificar, no caso concreto, as reais necessidades do parente supostamente protegido pela legítima e, além disso, se de fato havia relação familiar entre autor da herança e herdeiro necessário”.
Deste modo é perceptível que a lei limita a autonomia privada na sucessão testamentaria fazendo com que o autor da herança não possa testar livremente sobre seus bens. O obrigando a respeitar o instituto da legítima e assim resguardar os herdeiros necessários com a quota a que lhes cabe de cinquenta por cento da herança.
3.2. Países que admitem o direito à liberdade de testar
Na atual conjuntura legislativa a respeito da legítima não é possível que seja respeitada a última vontade do testador, não sendo a favor da liberdade de testar.
A grande maioria dos países estrangeiros não existem regras em seu sistema que limite a liberdade de testar, não existe a “reserva legal” que deve ser deixada aos herdeiros necessários do testador.
No direito romano essa liberdade constituiu a expressão de individualismo. Os mesmos possuíam pavor a morte sem testamento. Para esta nenhuma desgraça era superior à de falecer ab intestato; era como se fosse alguma maldição, era tratado como vergonha.
Assim no atual ordenamento jurídico brasileiro, o patrimônio do de cujus será dividido em duas partes iguais: a legítima, que cabe aos herdeiros necessários, a menos que sejam deserdados conforme art. 1.961, e a porção disponível, da qual pode livremente dispor, feitas as exceções dos artigos 1.801 e 1.802, ambos do Código Civil, concernentes à incapacidade testamentária passiva (BRASIL, 2002).
Assim, conforme Diniz (2018), “A porção disponível é fixa, compreendendo a metade dos bens do testador, qualquer que seja o número e a qualidade dos herdeiros”.
Existe ainda alguns países que reconhecem o direito à liberdade de testar, tradicionalmente, correspondem àqueles de Direito Anglo-saxão, decorrentes da formação da common law onde a liberdade de testar é absoluta.
Deste modo, os países que da mesma linha social que o Brasil, delimitam a liberdade absoluta de testar a tão somente uma contraprestação de auxílio.
Como exemplo temos o México que em seu Código Civil adota o sistema, permitindo a liberdade de testar, apenas obrigando o testador a deixar uma pensão alimentícia ao cônjuge, aos descendentes, e ao companheiro, caso estes não possam por algum motivo prover seu próprio sustento e este auxílio será interrompido quando os mesmos se tornarem autossuficientes. Ou caso contraía novo casamento sendo o caso do companheiro.
Existem países que têm o sistema intermediário, que os herdeiros necessários só têm direito à legítima em caso de necessidade. Sendo, assim a legítima teria então caráter de assistência.
Na Estônia se prevê (§104 da Lei sobre Herança) que:
Se o falecido em um testamento ou contrato sucessório deserdar um ascendente, um filho ou cônjuge que estejam incapacitados para o trabalho, ou tiver reduzido seus quinhões hereditários em comparação com a quota que lhes corresponderiam na sucessão legítima, esses parentes e cônjuges têm direito a reivindicar a legítima. (FERNÁNDEZ-HIERRO, 2010, p. 26-27)
De modo contrário, existe a Alemanha que traz em sua Carta Magna, a liberdade de testar como uma garantia fundamental e inviolável:
O artigo 14 da Constituição (GG) garante a liberdade de testar juntamente com o direito de propriedade como direito fundamental e individual do falecido e seus sucessores, e como uma instituição de direito privado” (EN ALEMANIA, 2010, p.: 49 – 50).
Já o direito Americano em sua formação é relativo a matéria acima demonstrada como matéria de competência estadual. Em regra, busca respeitar a vontade do testador.
Um grande feito liberal tem ocorrido nos requisitos formais da vontade de um testamento efetivo. Não se deve haver dúvidas sendo decisiva, a aplicação da vontade do testador, mesmo que o testamento não cumpra os requisitos formais, se a intenção do testador puder ser conferida de forma segura e sem suspeita de atividades adulteradas (SCALISE JR, v. 54, 2006, p. 110).
Aceitando à vontade do testador sob de modo que seu último desejo seja manifestado em testamento, serão postos de lado os requisitos formais e atendidos seus desejos. Isto é, o que a maior parte dos tribunais dos estados americanos tem decidido acerca da matéria.
Deste modo, pode-se afirmar que o testamento no direito internacional, considerando a manifestação de ato de uma última vontade, da qual o testador dispõe, após a morte, de todos os seus bens, de forma não estando ligados a regulamentos e/ou imposições de lei. Estando ligado diretamente ao fato de livre manifestação da vontade, o testamento será tratado como negócio jurídico, pois gera efeitos jurídicos e deve, portanto, ser respeitado.
Por fim, a intenção do testador é validar os efeitos de sua disposição de última vontade. Tal disposição pode ser patrimonial ou extrapatrimonial ou ainda as duas espécies de disposições sem que, para isso, o testamento não produza alguns efeitos ou dependa de algumas das formas previstas na lei. Sendo ato de liberalidade e, por este modo, deve permitir que o testador disponha sobre seus bens e interesses de maneira que lhe melhor agradar.
3.3. Necessidade de repensar os limites para testar no Brasil
O instituto da família sempre esteve dentro de uma espécie de núcleo de proteção, deste modo seus descendentes possuíam direitos já garantidos pelo cuidado patriarcal, sendo este embasado em uma formação agraria onde a família trabalhava unida para ter o sustento.
Assim era formado uma relação, onde o sustento era dividido e assim perdurar, de forma que os sucessores entendessem esse meio de sobrevivência que era advindo de seus antecessores.
Sucessão, esta palavra é usada com muita frequência como significado de herança, o que necessariamente precisa ser mudado. Sucessão se trata do ato de suceder, que pode ser por ato ou fato, na morte ou ainda em vida.
Segundo o Código Civil, os herdeiros necessários, descendentes ou ascendentes são aqueles que reduzem o direito do indivíduo de dispor integralmente de seus bens no Brasil. Previsto no art.1846 do Código Civil, aos herdeiros necessários a lei garante direito pleno a legítima que corresponderá a metade da herança. Ou ainda a metade de sua meação em casos que o regime de bens do casamento instituiu. Somente a quota disponível, pode ser disposta livremente.
Em caso de o testador ter disposto para além do cinquenta por cento livremente, esta doação é chamada inoficiosa e será nula em todo o que ultrapassar os cinquentas por cento da legítima.
Conforme dispõe o artigo 1.845, do Código Civil, são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Todos os outros herdeiros como companheiro e colaterais são os chamados herdeiros facultativos.
A exclusão de um herdeiro necessário, só ocorrerá em casos previstos em lei como indignidade, aquele que seja autor ou participe de homicídio ou tentativa deste contra a pessoa autora da sucessão após decisão judicial transitada em julgada, deserdação.
Assim qualquer descendente tem essa qualificação de descendente seja ele filho, neto e bisneto. Seja por meio biológico ou efetivo, deste modo o herdeiro necessário terá em cada uma delas o seu direito garantido ao quinhão que lhe corresponder.
3.4. Fundamentos: necessidade da reforma da legítima
As novas formas de família estão focadas para o crescimento do indivíduo que compõe o núcleo familiar. Estes possuem uma forma de interpretar e analisar os institutos vigentes de forma inovadora, que conforme os anos passaram foram tornadas impossíveis.
Partindo de uma lei que determina em via de regra que o testador não poderá através do testamento expressar sua última vontade dispondo de seus bens livremente como lhe bem convir. Deste modo, esta lei que estabelece que metade de sua herança necessita ser revista, para que que haja um novo olhar.
Em busca de que caia por terra as normas que estão em vigor nos dias atuais e que mantem a legítima, faria com que os herdeiros fossem em busca dos seus próprios bens e não que aguarde ou ainda vire brigas judiciais que se arrastam no sistema por herança deixada, nessa mesma vertente Tartuce diz:
A liberdade de testar desenvolve a iniciativa individual, porque quando o sujeito sabe que não pode contar com a herança, procura desempenhar atividades para lhe dar o devido sustento. De outra forma, haveria um efeito no inconsciente coletivo pela necessidade do trabalho e da labuta diária. (TARTUCE. 2020. p.36)
Contudo, não existe razão na atual conjuntura do direito das sucessões e social que resguarde a legítima, acerca de seu objetivo que sempre foi a proteção do instituto patriarcal familiar, e este é falho, ao passo que de forma excessiva sufoca o direito e a autonomia da liberdade de testar, viabilizando que o mesmo disponha apenas sobre metade de sua herança livremente, se ainda existir herdeiros.
Por fim, o testamento é a forma mais pratica de respeitar e tornar concreto o ato de última vontade do testador.
Sendo então este ato limitado pela legítima, mesmo quando não há necessidade de prestação solidaria a família como prevê a Constituição.
A herança passará a ser uma forma de enriquecimento para os herdeiros necessários, que por sua vez aguardam ansiosamente para o recebimento de tais bens que aumentaram seu patrimônio, mesmo que não tenham contribuído em sua construção juntamente com o de cujos.
Caso a família não seja autossuficiente e precise deste auxílio, para sustento da mesma, poderá ser adotado um dos modelos sucessórios internacionais como inspiração, pois respeitam o ato de ultima vontade do de cujus a liberdade de testar sobre seus bens.
Assim aos familiares próximos que necessitarem, poderão ser agraciados com uma prestação de alimentos.