Os direitos das mulheres em face do estudo do tipo do homicídio passional

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27/11/2020 às 08:11
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Monografia apresentada à Coordenação do Curso de Direito da Universidade Regional do Cariri (URCA), Unidade Descentralizada de Iguatu (UDI), como requisito parcial da Disciplina de Monografia II. Orientadora: Prof. Esp. Patrícia Gomes Sampaio.

RESUMO

Diante da crescente violência contra a mulher, dos tempos mais remotos aos atuais, somos convidados a refletir acerca dos motivos e das consequências da problemática para a sociedade como um todo, que vitimiza todos os dias mães, esposas, companheiras, namoradas e amantes. O homicídio passional é um crime peculiar, pois envolve pessoas que têm ou já tiveram um relacionamento amoroso, afetivo ou sexual e que se desentenderam a partir de um determinado momento da vida em comum, culminando o relacionamento com a morte de um dos indivíduos, geralmente a mulher, reiterando o pensamento machista/opressor existente em nossa sociedade, que viola direitos seus fundamentais, como o direito à liberdade sexual, intelectual, cultural e, sobretudo, o direito à vida. O trabalho desmistifica a figura do homicida passional, uma vez que a tese defendida pelo mesmo de que matou sua mulher por “amá-la” de maneira incondicional é inaceitável e desqualificada, pois o direito à liberdade e à dignidade sexual de se relacionar com quem quiser, é um direito de todos, sem distinções de gêneros. Nesta pesquisa bibliográfica, utilizou-se o método indutivo e numa análise quali-quantitativa concluiu-se que a atitude homicida passional não é benevolente ou amável, mas sim torpe, com requintes de crueldade e aniquila a vida de mulheres, mães e filhas todos os dias.

Palavras-chave: Violência Doméstica; Mulher; Homicídio passional; Crimes Passionais; Direitos Fundamentais; Liberdade Sexual.

ABSTRACT

Faced with the growing violence against women, from times remote to today, we are invited to reflect on the motives and consequences of the problem for society as a whole, which victimizes every day mothers, wives, partners, girlfriends and lovers. Passion-seeking homicide is a peculiar crime because it involves people who have or have had a loving, affective or sexual relationship and who have disagreed from a certain point in life in common, culminating in the relationship with the death of one of the individuals, usually The woman reiterating the macho / oppressive thinking in our society that violates fundamental rights, such as the right to sexual, intellectual, cultural freedom and, above all, the right to life. The work demystifies the figure of the homicidal passion, since the thesis defended by the same that he killed his wife by "loving her" unconditionally is unacceptable and disqualified, because the right to freedom and sexual dignity to relate to who It is a right of all, regardless of gender. In this bibliographical research, the inductive method was used and in a qualitative-quantitative analysis it was concluded that the homicidal attitude of passion is not benevolent or amiable, but rather clumsy, with cruelties and annihilates the life of women, mothers and daughters all Days.

Key words: Domestic Violence; Woman; Passionate homicide; Passion Crimes; Fundamental rights; Sexual Freedom.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 DOS CRIMES PASSIONAIS

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS DOS CRIMES E DO HOMICÍDIO PASSIONAL

   2.2 O PERFIL DO AGRESSOR E DA VÍTIMA

   2.3 OS SENTIMENTOS QUE MOTIVAM O HOMICÍDIO PASSIONAL

2.3.1      PAIXÃO

2.3.2      CIÚME

2.3.3      HONRA

2.4 A FORMA PREMEDITADA DO HOMICÍDIO PASSIONAL

3         LEGISLAÇÃO VIGENTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

3.1      A QUEBRA DA ALEGAÇÃO DA LEGÍTMA DEFESA DA HONRA E DO CRIME PRIVILEGIADO

4 QUATRO CASOS DE GRANDE REPERCUSSÃO NACIONAL E SUAS TESES DE DEFESA E ACUSAÇÃO

   4.1 ANGELA DINIZ E DOCA STREET

   4.2 DANIELLA PEREZ, GUILHERME DE PÁDUA E PAULA TOMAZ

   4.3 SANDRA GOMIDE E ANTONIO MARCOS PIMENTA

   4.4 ELOÁ CRISTINA PIMENTEL E LINDEMBERG ALVES FERNANDES

5 DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E SEU CERCEAMENTO

6     CONSIDERAÇÕES FINAIS.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1    INTRODUÇÃO

O crime passional é um fenômeno histórico desde os tempos mais remotos aos dias atuais.

O homicídio passional e/ou conjugal, objeto de estudo do trabalho, encontra-se enraizado em nossa sociedade, sendo bastante comum ouvir falar de maridos ou companheiros ou ex companheiros, namorados e ex namorados, que mataram suas esposas, companheiras ou ex companheiras, namoradas ou ex namoradas, motivados por ciúmes, por uma paixão desenfreada ou simplesmente por não aceitarem o fim do relacionamento.

A conduta soa de maneira romantizada em nossos ouvidos, afinal matar por amor é uma atitude tida como nobre, é uma verdadeira “prova de amor”. Esta justificativa foi disseminada por séculos em nossa sociedade e reflete até hoje nos casos de violência contra a mulher, despertando assim um maior interesse a respeito do estudo dos crimes tidos como “passionais”.

Mas isso nada tem a ver com o amor nobre e puro. O comportamento demonstrado pelo homicida passional é de um ser humano egoísta, frio e narcisista, que enxerga sua “amada” como mero objeto, que ele usa e descarta quando quer.

O criminoso passional retira todo e qualquer tipo de direito inerente à sua amada, seja qual for - direito à liberdade sexual, ao convívio social e em família, o próprio direito à vida - no momento em que assassina sua vítima.

 É de suma importância entendermos que não se trata de uma atitude nobre e benevolente usurpar a vida de outrem em razão de sentimentos egoístas e doentios. Uma punição mais severa e a desmistificação romantizada do homicídio passional se faz mister em razão de todos os direitos conquistados pela mulher na sociedade, bem como pela não aceitação do discurso ultrapassado que o homem assassino, cruel e covarde matou sua mulher por amá-la de maneira incondicional.

Não podemos olvidar que as mulheres, através de muitas lutas, conquistaram o direito de igualdade frente ao homem, sendo estabelecido no texto legal da Constituição Federal Brasileira de 1988 a igualdade entre homens e mulheres e o direito de liberdade de ambos, independente de gênero, raça ou etnia.

Porém, o que se observa é que esta igualdade e liberdade está apenas no plano normativo e não no material, sendo noticiado todos os dias barbáries cometidas por maridos, companheiros, ex companheiros e namorados em face de suas “amadas”.

O homicídio passional é uma conduta criminosa rodeada de sentimentos mesquinhos e vis. O principal interesse desse trabalho é buscar uma reflexão sobre os direitos das mulheres cerceados em face do tipo do homicídio passional e quais as suas implicações para a sociedade.

Se faz mister entender as consequências disso para a vida dos filhos frutos da união anteriormente mantida entre a vítima e seu algoz. O homem que mata a mãe dos seus filhos demonstra tamanho egoísmo, reiterando a crueldade de sua conduta, pois o autor da empreitada não pensa no futuro de sua prole e no quanto será prejudicado o desenvolvimento dos herdeiros enquanto pessoas e cidadãos imersos no meio social em que habitam.

Pelos estudos realizados constatou-se o desejo e a necessidade do criminoso passional de assumir a autoria do crime, haja vista que o mesmo o fez para “lavar sua honra”. Este desejo vil prevalece diante do “amor” sentido pelos filhos. Os criminosos torturam e matam suas vítimas sem oferecer qualquer possibilidade de defesa para as mesmas, demonstrando ainda mais o teor covarde empregado por aquele indivíduo no momento da execução do delito.

Na metodologia do trabalho foi utilizada uma pesquisa bibliográfica, tendo como fontes livros literários, doutrinários, monografias, artigos científicos, documentários, revistas online, dentre outros documentos. O método aplicado foi o indutivo, partindo da análise de quatro casos concretos à premissa maior, qual seja, a desqualificação do homicídio passional, uma vez que tal classificação soa de maneira romantizada, induzindo, inclusive, os operadores do direito ao erro na hora de aplicar a lei penal, uma vez que o homicida passional ainda é bem visto na cultura machista enraizada em nossa sociedade.

A presente pesquisa demonstra que a atitude homicida não é benevolente ou amável, mas sim um crime torpe, com requintes de crueldade, que aniquila a vida de mulheres, mães e filhas todos os dias em nossa sociedade.

2    DOS CRIMES PASSIONAIS

 

2.1   CONSIDERAÇÕES INICIAIS DOS CRIMES E DO HOMICÍDIO PASSIONAL

A palavra crime, originária da língua latina, tem em sua etimologia crimen ou delito significa qualquer violação muito grave de ordem moral, religiosa ou civil, punida pelas leis. Ou seja, crime é a violação e/ou maculação de um bem jurídico tutelado por lei. É uma conduta tida como depravada e que merece ser repreendida pelo Estado.

A doutrina penalista vigente conceitua crime em três acepções: Conceito material, formal e conceito analítico. No tocante ao conceito material, Edgard Magalhães Noronha leciona que “Crime é a conduta humana que lesa ou expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei penal.”[1]

Por sua vez, Giuseppe Bettiol também define: “Crime é qualquer fato do homem, lesivo de um interesse, que possa comprometer as condições de existência, de conservação e de desenvolvimento da sociedade.”[2]

Numa abordagem forma, o crime é um fato humano que viola a lei penal incriminadora vigente no Ordenamento Jurídico de determinada sociedade. Para que haja a punição adequada para o indivíduo, o legislador deverá se valer obrigatoriamente dos textos legais.

Desse modo Giuseppe Maggiore define: “Crime é qualquer ação punível.”[3] Para Manoel Pedro Pimentel “Crime é uma conduta (ação ou omissão) contrária ao Direito, a que a lei atribui pena.”[4].

O conceito analítico (ou estratificado) gera bastante controvérsias entre os doutrinadores penalistas, pois os conceitos elencados anteriormente não definem com clareza o conceito de crime. Em virtude disso notou-se a necessidade de se criar um conceito analítico de crime, que objetiva analisar seus caracteres e elementos. A respeito desse conceito e o histórico de seus caracteres, preleciona Luiz Régis Prado:

A ação, como primeiro requisito do delito, só aparecera com Berner em 1857, sendo que a ideia de ilicitude, desenvolvida por Rudolf von Lhering em 1867 para área civil, fora introduzida no Direito Penal por obra de Franz von Liszt e Beling em 1881, e a culpabilidade, com origem em Merkel, desenvolvera-se pelos estudos de Binding em 1877. Posteriormente, no início do século XX, graças a Beling em 1906, surgira a ideia de tipicidade.[5]

A seu turno, a concepção bipartida reza que para que haja crime deverá ocorrer um “fato típico e ilícito”, excluindo assim a figura da culpabilidade do conceito analítico de crime, vindo esta culpabilidade ser utilizada apenas como um pressuposto para a aplicação da pena. Esta teoria adotada é por grandes nomes da doutrina penalista, como Damásio de Jesus, Celso Delmanto, Fernando Capez, Renê Ariel Dotti, entre outros.

Alguns doutrinadores são contrários a esta teoria. Segundo eles o conceito analítico de crime continuaria incompleto, sendo mais aceita a concepção tripartida, que é mais completa, visto que engloba a culpabilidade como mais um elemento formador do conceito de crime.

Luís Augusto Freire Teotônio elenca que:

Não é correta a afirmação de alguns doutrinadores de que o finalismo apenas se afina com a corrente bipartida, que considera a culpabilidade como mero pressuposto de aplicação da pena. Welzel, considerado pai do finalismo, seus discípulos, bem assim os autores que introduziram a doutrina no Brasil, João Mestieri, Heleno Fragoso e Assis Toledo, entre outros, nunca disseram que o crime formava-se apenas pelo fato típico e ilícito, considerando sempre a culpabilidade como um dos seus elementos ou requisitos.[6]

Consoante esse entendimento segue alguns autores da seara penal como Cezar Bitencourt, Edgard Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, Aníbal Bruno, Nelson Hungria, Juarez Tavares, Guilherme Nucci, Luís Régis Prado, Rogério Greco, Fernando Galvão, Hans Wlezel.

Importante salientar que a teoria tripartida foi adotada pelo nosso Código Penal vigente pela sua clareza na hora de elencar os elementos formadores do conceito de crime.

A título de curiosidade, outras teorias também foram desenvolvidas no mundo penalista, mas não lograram êxito. São elas: concepção tetrapartida, que elenca que o crime é todo fato “típico, ilícito, culpável e punível”, a concepção pentapartida defendida por Franceso Carnelut também não foi aceita no mundo penalista em virtude da falta de clareza existente entre os requisitos da figura do delito em si e a figura do negócio jurídico. 

Superada a parte conceitual do que seria a figura do crime e suas principais teorias presentes nas doutrinas penalistas, passaremos a tratar dos crimes passionais de um modo geral e do homicídio passional, objeto de estudo do presente trabalho.

O termo passional, por sua vez, deriva do latim passionalis e significa “paixão”. Destarte podemos classificar como sendo um sentimento intenso, tão forte quanto o amor, porém efêmero e impulsivo. Assim sendo, o homicídio passional e/ou conjugal é uma conduta resultante da violação de um bem jurídico - no caso a vida - instigado por uma paixão impulsiva que na maioria das vezes está ligada a sentimentos negativos como o ciúme descontrolado, o ódio, o rancor, o desejo de vingança resultante de uma traição ou simplesmente pela falta de aceitação por parte do criminoso passional com o fim do relacionamento (e outras atitudes).

Para Luiza Nagib Eluf: “Crimes passionais são aqueles que envolvem pessoas que tem ou já tiveram um relacionamento amoroso, afetivo ou sexual e que se desentenderam a partir de determinado momento da vida em comum”.[7]

Tomando como base o conceito de crime passional supracitado podemos afirmar com propriedade que este é um fenômeno histórico desde os tempos mais remotos aos dias atuais.

Os crimes passionais de maneira geral derivam de inúmeras situações recorrentes em nossa sociedade. O gênero - crime passional - engloba várias espécies de crimes tais como: lesões corporais, violências psicológicas e sexuais, até a culminação trágica desses fatos com a morte da vítima, configurando assim o delito do homicídio passional, objeto de estudo da presente pesquisa. 

Diante dessa realidade é bastante comum ouvir falar de maridos ou companheiros que mataram suas esposas, ou companheiras, motivados por ciúmes, por uma paixão desenfreada ou simplesmente por não aceitarem o fim do relacionamento. Esta conduta soa de maneira romantizada em nossos ouvidos, afinal matar por amor é uma atitude tida como nobre, é uma verdadeira “prova de amor”.

Luiza Nagib Eluf defende que tal conduta é própria do homem, que enxerga sua “amada” como sendo um mero objeto no qual ele é único e soberano, com direito de vida e morte sobre a mesma. No decorrer de nossa história pouco se ouviu falar de mulheres que vieram a matar seus maridos ou amantes por se sentirem traídas ou abandonadas. De acordo com o senso comum, “essa conduta é tipicamente masculina”. Partindo dos conceitos acima podemos afirmar que existem características típicas condicio sine qua non para que haja o delito desta natureza, a saber: a relação afetiva entre as partes, que pode vir a ser sexual ou não, e a forte emoção (entendida como paixão) que liga os indivíduos envolvidos neste relacionamento.      

A Escola Positiva antiga enxergava o sicário passional com bons olhos, o assassino da própria companheira era visto com benevolência, enternecimento. Tratava-se de uma prova de amor aceita socialmente, porém, bastante distorcida, a ponto de matar sua amada afim de que o relacionamento dos dois - vítima e assassino - se eternizasse para sempre na história. Importante ressaltar que em alguns casos, os homicidas passionais foram absolvidos ao serem julgados pelo Tribunal do Júri (como sabemos, é competência deste Tribunal julgar os crimes dolosos contra a vida). Com base nos direitos soberanos do homem sobre a mulher, esses indivíduos saiam pela porta da frente, ou seja, livres (reiterando o pensamento machista e opressor ainda vigente em nossa sociedade).

O nosso Código Penal antigo em alguns de seus dispositivos legais elencou a figura da “Mulher honesta”. O art. 216 que tratava de atentado violento ao pudor mediante fraude, trazia: “Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal.” O artigo 219 também apontava, in verbis:

Rapto violento ou mediante fraude

Art. 219 – Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso;

Pena – reclusão, de dois a quatro anos. (Grifo nosso).

O texto legal exposto não definiu o que seria a figura da Mulher Honesta, cabendo assim a doutrina e a jurisprudência da época da lei defini-la. Nelson Hungria esclarece o termo, dizendo:

Como tal se entende, não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o mínimo de decência exigida pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente desregrada, aquela que inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação (cum vel sine pecúnia accepta).[8]

O significado da palavra honesto/honesta para o Dicionário Aurélio faz alusão há algo casto, virtuoso, honrado, probo. Essa ideia de mulher casta e/ou honesta liga-se diretamente ao comportamento sexual praticado pela mulher e sua postura sexual diante de outros homens. Diferentemente do que ocorre quando se atribui o termo “homem honesto”. Neste caso, estamos diante da ideia de um homem bom, fiel aos seus compromissos enquanto provedor daquela família na qual ele chefia, um bom cidadão que paga todos os seus impostos e contribui para o desenvolvimento socioeconômico. Ou seja, quando se emprega o termo honesto para a mulher, o que ocorre é uma espécie de erotização do conceito de justiça e de moral, reiterando o pensamento machista enraizado em nossa sociedade inclusive na hora de elaborar as leis.

Diante dos fatos expostos, podemos notar o tom discriminatório e machista presentes no bojo legal do artigo do 219, pois o caráter da mulher deveria ser julgado e avaliado pelo seu pudor quanto à sexualidade. A mulher “desonesta" não é “limpa” e não merece respeito segundo o texto legal do artigo supra.

Em virtude de tantas violações sofridas pela mulher e o crescente machismo cada vez mais enraizado em nossa sociedade, até a década de 70 o homicídio passional era tido como um direito concedido ao homem, se traído, de reaver ou lavar sua honra ferida, ou por simplesmente ter o “direito” de matar por amor. A sociedade era munida por um sentimento patriarcalista que enxergava o homem como uma figura social central e a figura feminina como subordinada à vontade masculina. Diante disso, a infidelidade conjugal da mulher era uma afronta ao homem soberano socialmente. Esse sentimento de menosprezo contra a mulher acabava por refletir nos tribunais na hora de julgar crimes da seara passional, sendo bastante comum o homicida ser absolvido pelos jurados.

Diante de todas as injustiças, fruto de uma realidade social específica, e, diante da atual e crescente, violência contra mulher, nasceu uma organização feminista intitulada SOS Mulher que passou a desenvolver meios de repreender e combater este tipo criminal tendo como destaque a ideia: ‘Quem ama não mata’.

A organização era baseada em trabalhos desenvolvidos na área jurídica, social e psicológica com o objetivo de amparar e minimizar a crescente violência instaurada em nosso país.

Em decorrência do movimento ativista feminista na década de 80, que tinha como objeto de luta, a denúncia da impunidade da violência sofrida contra mulheres fazendo surgir assim a primeira Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), no estado de São Paulo mais precisamente em 1985.

De maneira antagônica ao que prega à citada organização, o agressor usa a justificativa que mata sua vítima por “amá-la” de maneira exacerbada ao ponto de não conseguir dar prosseguimento à sua vida longe de seu affair. Essa justificativa absurda foi disseminada por séculos em nossa sociedade e reflete até hoje nos casos de violência contra a mulher.

A Constituição Federal de 1988 em seu bojo jurídico reconhece pela primeira vez de maneira expressa a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres. Porém, somente 17 anos mais tarde, foi aprovada e sancionada a Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005 que alterou o título presente no Código Penal referente aos Crimes contra os costumes, passando a receber o título de Crimes contra a Dignidade Sexual.  

Com o advento desta lei foram excluídos do nosso Código Penal a figura da Mulher Honesta, já comentado anteriormente no presente capítulo. Podemos notar que a antiga redação que tinha como título - Crimes contra os costumes - embasa a ideia de que na verdade quem estaria sendo ofendido era o homem ou a sociedade como um todo, não a mulher, não a vítima, gerando assim uma revitimização.

Em virtude das mudanças sociais e do reconhecimento da dignidade sexual independentemente do sujeito passivo (no caso a vítima) ser homem ou mulher, merecendo respeito, cabe ao Estado enquanto provedor do bem comum e da paz social oferecer mecanismos suficientes para assegurar a liberdade e a dignidade sexual de todos os indivíduos, sem que haja qualquer tipo de discriminação.

Para a antiga redação de alguns artigos do Código Penal, a mulher para ser protegida pela lei nos casos de crimes sexuais deveria conter “requisitos” no que tange ao seu comportamento sexual, requisitos de cunho subjetivo, reiterando a forma opressora existente no texto legal.

De tal maneira, muitas vezes as vítimas se viam obrigadas a se casarem com seus agressores para manter sua honra ilibada e longe do tratamento vexatório e humilhante presentes em alguns artigos. 

Entendemos que atualmente ainda é bastante comum se ouvir falar do termo “mulher honesta” na hora de avaliar um possível caso de violência sexual. Em razão disso nos deparamos com a cultura negativa do estupro.

A “mulher da rua” ainda é vista como um mero objeto e que não faz jus a tutela estatal nos casos de crimes contra a dignidade sexual, visto que estas mulheres não se encaixariam nos modelos de mulher honesta, fiel e proba presentes ainda no imaginário social.

A “mulher de casa”, mãe de família, quando é violentada sexualmente causa impacto e indignação social muito grandes, pela postura idealizada no meio em que a mesma vive, pois se trata de uma mulher casada, fiel ao seu marido e que também é mãe. Porém a “mulher da rua”, segundo o cultura do estupro, condicionou para que a violência sexual acontecesse, seja pelo fato desta mulher viver na rua, não ter um marido ou família, ou pelo simples fato da mesma estar usando uma roupa tida como “inadequada”, por ter uma vida fora dos padrões impostos.[9]

Esta ideia ultrapassada e machista mata e violenta todos os dias novas vítimas e livra assassinos, estupradores/abusadores, reforçando a cultura do estupro enraizado em nossa sociedade.

Nos casos do homicídio passional, a conduta praticada pelo agente delituoso pouco tem a ver com o amor nobre e puro. O comportamento demonstrado pelo homicida passional é de um ser humano egoísta, frio e narcisista, que enxerga sua “amada” como mero objeto no qual ele disfruta e dispõem na hora que deseja.

O criminoso passional retira todo e qualquer tipo de direito inerente a sua amada, sejam estes o direito à liberdade sexual, intelectual, cultural e, sobretudo, o direito à vida no momento em que assassinam suas vítimas.

2.2 O PERFIL DO AGRESSOR E DA VÍTIMA

Todos os dias somos surpreendidos com notícias estampadas nas grandes mídias sociais acerca de crimes cometidos contra a mulher e em função de sua condição feminina.

Diante disso é bastante comum ouvir ou ler notícias que tem como assunto principal a história de maridos, companheiros, ex companheiros que mataram suas esposas, ou companheiras, motivados por ciúmes, por uma paixão desenfreada ou simplesmente por não aceitarem o fim do relacionamento.

Não se pode olvidar que a mulher nas últimas décadas vem conquistando seu espaço frente a sociedade de maneira assídua, deixando de ser vista simplesmente como a “dona do lar” que tem como obrigações essenciais dar assistência afetiva e educacional para os filhos e cuidar do marido ou companheiro zelando pela estrutura familiar e sendo esta responsável exclusivamente pela boa convivência e harmonia entre os participantes daquela família.

A mulher passou a atuar além das obrigações domésticas, ganhando espaço no mercado de trabalho e atuando diretamente na economia do país como contribuinte ativa no mercado de produção e consumo, assumindo assim um papel primordial para o desenvolvimento socioeconômico.

A figura feminina deixou de ser vista como mero objeto destinada ao desfrute masculino, assumindo assim a identidade enquanto pessoa sujeita de direitos e deveres.

Como dito anteriormente, as mulheres vêm ocupando espaços cada vez mais relevantes na vida social. Porém, tal reconhecimento igualitário não é absoluto reforçando assim a luta diária travada pela mulher em face do machismo exacerbado e do patriarcalismo engessado, tendo como resultado de tais atitudes negativas disseminadas em nossa sociedade a crescente violência contra a mulher.

O agressor é ou já foi alguém presente no círculo afetivo da vítima. Trata-se de alguém no qual a vítima mantinha contato e se relacionava diretamente, seja esta relação afetiva ou sexual.

O criminoso passional dificilmente comete o assassinato de sua mulher ou companheira de plano, ou seja, de imediato. Este, na maioria dos casos, inicia sua conduta criminosa com a produção de palavras de baixo calão direcionadas à vítima, humilhando e expondo sua “amada” a situações vexatórias que acabam acarretando um sofrimento psíquico muito intenso.

Tal agressão é conhecida no mundo da psicologia jurídica como sendo a chamada violência psicológica, que pode vir a desenvolver um efeito perturbador na vítima, gerando algumas doenças como a depressão, a síndrome do pânico, a ansiedade entre outras.

Em virtude da fragilidade apresentada pela vítima frente a tortura psicológica empregada pelo autor do crime, o mesmo - não se contentando com o sofrimento por ele gerado - passa também a agredir fisicamente sua companheira.

 Com bases nos relatos policiais colhidos a partir de jornais, revistas, documentários policiais entre outras fontes utilizadas para a devida elaboração da presente pesquisa, as agressões se iniciam com beliscões, puxões de cabelo, lesões corporais de natureza leve ou até grave e por fim culminando com o assassinato da vítima.

O homicídio passional é um delito bastante peculiar no que tange a figura da vítima, pois este é praticado em diferentes ambientes sociais independente da condição econômica, nível de escolaridade, raça ou etnia apresentado pela mesma. No quarto capítulo será feita a explanação de quatro casos concretos de grande repercussão midiática ocorridos em nosso país, reitera tudo o que já fora exposto.

Na maioria dos casos, as vítimas deste crime são dependentes economicamente de seus maridos ou companheiros, e em virtude de tal condição, as esposas ou companheiras como tratadas como meros objetos, tendo o autor da empreitada criminal o direito de vida e de morte sobre sua mulher.

 Como já dito anteriormente, a conduta homicida-passional se desenrola a partir de uma ruptura em um dado momento de uma relação afetiva/sexual mantida pela vítima e seu algoz. A partir do momento que a vítima rompe o círculo de dependência existente entre ela e o autor, dependência esta afetiva/sexual ou econômica, e esta mulher passa a se auto-afirmar frente ao seu ex, o mesmo entende de maneira irracional que está perdendo a posse em relação ao seu objeto de prazer e assim é tomado pela possessão e pelo ódio de se ver rejeitado pela mulher desejada e/ou amada, gerando uma série de “prevaricações” no relacionamento, culminando no homicídio passional.

Os homicidas conjugais, em alguns casos concretos, afirmam que mesmo após o assassinato de suas vítimas continuam as amando independente do resultado morte praticados por eles. Afirmam ainda que gostariam de tê-las de volta para darem continuidade ao relacionamento. Mas existem réus passionais que reconhecem que não existia mais amor no relacionamento e que o ciúme e a possessão de ambos, vítima e assassino, foram os principais ingredientes para o fim trágico da relação a dois.

2.3  OS SENTIMENTOS QUE MOTIVAM O HOMICÍDIO PASSIONAL

O homicídio passional é formado por elementos de natureza subjetiva, ou seja, resultantes da conduta e da personalidade do sujeito ativo que pratica o crime. Na generalidade dos casos, o delito é cometido por motivos que nem mesmo o agente delituoso sabe explicar.

O criminoso passional, ao ser confrontado com uma situação antagônica a sua vontade, seu desejo, como por exemplo a descoberta de uma traição por parte de sua amada ou uma possível divergência com a pessoa com a qual este indivíduo se relacione amorosamente ou sexualmente, acaba por mobilizar sentimentos relacionados ao ciúme, a rejeição, a vingança e ao ódio, vindo assim a cometer crimes que abrangem desde a agressão física, a violência psicológica até o homicídio.

2.3.1    PAIXÃO

 

A paixão, sentimento este inerente da personalidade humana em sua etimologia originária do latim Passio, “sofrimento, ato de suportar”, de PATI, “sofrer, aguentar”, do Grego PATHE, “sentir (originalmente, tanto coisas boas como ruins)”.

O indivíduo apaixonado enxerga o outro como algo exclusivo, que somente ele enquanto apaixonado poderá desfrutar. Esta paixão também pode não vir a ser correspondida, tento como acepção uma paixão unilateral. Ambas as condições de exclusividade e unilateralidade podem ser decisivas para a prática da conduta criminosa, visto que o indivíduo não aceita que sua companheira pertença a outro homem ou se apaixone por outro que não seja ele, prefere assim ver sua amada morta do que suportar essas condições. A paixão tem o condão de entorpecer o lado racional do indivíduo, facilitando assim, a perda da ética e da moral, impossibilitando-o de reconhecer tudo o que está ligado ao mundo exterior.

Georg Hegel, em uma de suas lições elencou a seguinte frase: “Nada de grande se realizou no mundo sem paixão”. Porém a paixão destrutiva, desenfreada, egoísta e covarde presente no crime em comento não pode ser comparada com a paixão sublime abordada em nossa literatura clássica e nos mais belos poemas de amor.

Importante ressaltar que nem todo indivíduo apaixonado poderá vir a ser autor de um homicídio de cunho passional.

2.3.2    CIÚME

 

O ciúme é um sentimento característico da natureza humana, que se encontra presente em quase todas as relações, sejam estas amorosas ou simplesmente nas relações de amizade e/ou familiar. Porém, o ciúme analisado no caso dos crimes passionais é um sentimento patológico, mesquinho, vil. Este sentimento acaba por ser um fator potencial na hora de executar a vítima.

Não podemos olvidar que o ciúme pode se fazer presente em qualquer tipo de relação. Nas relações mais simples o ciúme pode estar presente, por exemplo: Os amigos que sentem ciúmes uns dos outros, os próprios familiares sentem ciúmes, as crianças que na plenitude de sua inocência sentem ciúmes dos pais. Embora todos os ciúmes possuam a mesma característica do ciúme sexual, se apresentam de maneira diferenciada quanto a suas formas e consequências. O amor conjugado ao sentimento sexual-possessivo pode condicionar diretamente a um sentimento tipicamente violento, podendo gerar confusões, e até mesmo, o crime de homicídio. O ciumento possessivo tem atitudes desproporcionais a realidade, uma vez que enxerga a pessoa desejada como um mero objeto, sobre o qual se tem total posse.

O ciúme patológico, o medo de uma possível traição por parte da companheira, o sentimento de abandono, a baixa autoestima são os principais ingredientes para culminação dos chamados crimes passionais. Essa conduta egoísta praticada pelo indivíduo é uma forma de impedir que o companheiro se liberte e siga sua vida de maneira independente.

A nossa literatura é marcada por histórias de personagens que mataram suas amadas em decorrência do ciúme exacerbado.

Uma dessas histórias é a famosa obra de Shakespeare, Otelo - na qual o personagem principal, possuído por um ciúme doentio, mata sua esposa, Desdêmona, acometido por fortes suspeitas de que sua amada estaria lhe traindo.

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Tal obra desencadeou para o mundo da Medicina Legal e para a área da Psicologia em geral a chamada Síndrome de Otelo. Para estas ciências, o indivíduo que sofre desta Síndrome é acometido por um ciúme de cunho patológico, diferentemente do ciúme natural presente em todas as pessoas, inclusive nas crianças com sua mais pura ingenuidade.

O ciúme fere, agride, acusa e tortura. Fere porque não permite que o outro seja visto a não saber sob suspeita, agride porque não lhe concede ser diferente, acusa e já condena, tortura porque não há ser humano que ame verdadeiramente, e resista a tudo isso, vindo da pessoa a quem mais se quer.

Há evidentemente situações difíceis nos relacionamentos afetivos, como a infidelidade, mas não é o ciúme que vai poupar o amor entre ambos os indivíduos de passar por situações desta natureza.

Alguns indivíduos ainda sustentam a tese de que não existe amor sem ciúmes, porém é preciso entender que o amor puro e sereno é diferente do amor possessivo.

2.3.3    HONRA

 

A honra, direito tutelado por nosso Ordenamento Jurídico, é tido como algo inerente a personalidade, e foi inserida no Artigo 5°, inciso X da Constituição Federal de 1988 como um direito e garantia fundamental. No Código Penal vigente, a ofensa à honra foi tipificada como crime no Capítulo V, nos casos de calúnia, difamação e injúria, condutas previstas nos artigos 138, 139 e 140, respectivamente. 

A honra, segundo a doutrina penalista majoritária, está relacionada diretamente com a autoestima e o reconhecimento social do indivíduo enquanto pessoa perante a sociedade. Qualquer lesão a essa figura social apresentada pelo agente passional poderá ensejar em atitudes descontroladas, como já citado anteriormente o exemplo da descoberta de uma possível traição da vítima. Caso esta traição não viesse à tona dificilmente o criminoso passional cometeria algum ato violento contra sua amada.

O criminoso passional busca lavar sua honra com o sangue da “traidora” para demonstrar assim a sua superioridade perante a sociedade.

Por muito tempo ouviu-se falar em Legítima Defesa da Honra alegada pelos advogados de defesa dos homicidas passionais como forma de atenuar a pena destes. Em momento oportuno retornaremos para esta discussão abordando também a desmistificação desta tese perante os tribunais penais atuais.

Diante de todo o exposto, reiteramos o pensamento que crime nenhum pode ter como pano de fundo o amor e/ou paixão. O criminoso passional pôde muitas vezes ser socialmente compreendido, seu ato expõe uma tentativa de excluir a ilicitude de sua ação na busca do convencimento social de que não poderia mais viver sem sua companheira que passa ser vítima dessa gama de sentimentos egoístas desenfreados. Para Enrico Ferri, o delinquente passional:

[...] é aquele, antes de tudo, movido por uma paixão social. Para construir essa figura de delinquente concorre a sua personalidade, de precedentes ilibados, com os sintomas físicos – entre outros – da idade jovem, do motivo proporcionado, da execução em estado de comoção, ao ar livre, sem cúmplices, com espontânea apresentação a autoridade e com remorso sincero do mal feito, que frequentemente se exprime com o imediato suicídio ou tentativa séria de suicídio.[10]

O crime passional vai além das leis e dos códigos presentes em nosso arcabouço jurídico. É algo sui generis presente em nosso Ordenamento e por se tratar de um crime de extrema complexidade merece um olhar mais atento por parte do legislador e do aplicador do direito. Uma conduta criminosa pautada em sentimentos profundos inerentes ao ser humano não poderá ser julgada e punida apenas tendo como base textos legais e seus respectivos dispositivos. O Direito como sendo uma ciência social aplicada deverá a depender do caso concreto contar com a ajuda de outros ramos científicos sejam estes a psicologia, a criminologia, a medicina legal por exemplo para a elucidação dos fatos de maneira nobre e justa.

2.4 A FORMA PREMEDITADA DO HOMICÍDIO PASSIONAL

 

A conduta descrita para o tipo criminal do homicídio encontra-se elencada no Artigo 121 do Código Penal Brasileiro. Este crime tem como verbo nuclear o termo “matar” alguém, acarretando assim para quem cometa esta ação delitiva uma pena de reclusão de seis a vinte anos, caso o homicídio seja praticado em sua modalidade simples como bem esclarece o caput.

O presente trabalho tem como análise basilar o homicídio passional, um homicídio na modalidade qualificada, presente no Artigo 121, § 2° do Código Penal, caracterizado pelas circunstâncias existentes nos incisos deste parágrafo. Trata­-se de uma qualificadora, em que irá avultar o motivo pelo qual o agente praticou a conduta, e/ou a forma empregada para aniquilar a vida alheia. O homicídio na modalidade qualificada o indivíduo estará sujeito a uma pena que vai de 12 a 30 anos de reclusão.

Não podemos deixar de ressaltar que o crime em estudo também é considerado como um crime hediondo com base no Artigo 1°, inciso I, da Lei 8.072/90, que trata exclusivamente dos Crimes Hediondos.

A qualificadora aplicada nos casos passionais é o motivo torpe, qualificadora esta de natureza subjetiva. As razões e “justificativas” que levam o agente a matar causam repugnância, nojo, perante a sociedade.

De acordo com a doutrina majoritária, um indivíduo não poderá alegar como forma de se isentar de sua conduta criminosa a justificativa que matou sua vítima por estar acometido por fortes crises de ciúme, tampouco por estar envaidecido por um sentimento intenso e “irresistível”.

É importante salutar que dependendo do caso concreto o crime passional poderá ser penalizado com outras qualificadoras presentes no dispositivo supracitado, como por exemplo a qualificadora da traição ou da surpresa, qualificadoras estas de natureza objetiva segundo a doutrina penalista vigente. O indivíduo abusa da confiança depositada pela vítima.

A vítima acredita fielmente que estará protegida estando na companhia de tal indivíduo, porém a mesma é surpreendida por uma atitude covarde praticada por seu “amado”, que passa a configurar como seu algoz, alguém no qual até momentos antes era visto e considerado como um “porto seguro”.

  Em razão da classificação do homicídio passional como sendo um crime qualificado e automaticamente hediondo, estamos diante de um crime com circunstâncias bastante peculiares nas quais revelam por parte do agente um caráter pervertido, cruel e desumano para com suas vítimas.

O homicídio por si só, independentemente de sua modalidade (seja esta simples ou qualificada), causa um sentimento de repugnância por parte da sociedade de maneira geral, por se tratar de um crime covarde e vil. A conduta homicida fere o maior bem tutelado pela humanidade, a vida. A prática delitiva desta natureza mostra um total desrespeito a existência do indivíduo enquanto pessoa.

 Diante da necessidade de garantir a existência humana, a preservação da vida é o bem mais protegido pelo nosso Ordenamento Jurídico pátrio, como destaca o caput do Artigo  da Constituição Federal de 1988, onde todos são iguais perante a lei. O direito à vida é tido como pedra angular dos demais princípios, aplicando-se de maneira repreensiva o Direito Penal como forma de criminalizar e/ou responsabilizar o indivíduo acusado de ceifar a vida outrem.

O homicídio, por se tratar de um tipo penal aberto, não exige do sujeito ativo (autor) ou do sujeito passivo (vítima) qualquer característica específica ou condicionante para que tal conduta ocorra. Porém nos casos de crimes e/ou homicídios passionais é necessário que haja algum tipo de relação entre a vítima e o assassino, relação esta que envolva algum tipo de sentimento de ordem amorosa ou sexual.

A grande maioria dos homicídios conjugais estão ligados à premeditação. O algoz passional pensa repetidamente sobre as condutas “negativas” que ele acredita cegamente estarem sendo praticadas por sua vítima.

O autor da empreitada criminosa não enxerga outra saída a não ser eliminação de sua “amada”. O delinquente nesses casos é regido por pensamentos e sentimentos absurdos que tendem a julgar a todo momento o comportamento da vítima, com desconfianças, insultos, agressões, etc. Ele cria falsas situações para justificar seu ciúme exacerbado ou um futuro assassinato da companheira.

Podemos notar claramente a figura da premeditação, visto que o agressor, em tese, parte de pequenas “prevaricações” como agressões verbais, morais, lesões corporais de natureza leve até a culminação dos atos criminosos com o assassinato da vítima. Assim constatamos que o delito passional não se configura como um crime de oportunidade ou circunstanciado por uma situação fática isolada, o autor passional calcula friamente todas as suas ações e o iter crimines a ser seguido, planejando com riqueza de detalhes o futuro assassinato de sua vítima, reiterando assim a perversidade empregada pelo agente e seus requintes de crueldade.

Importante salientar que em alguns casos o homicídio conjugal poderá enroupar algumas peculiaridades do crime privilegiado, mas é necessário que tais peculiaridades se façam presentes de maneira soberana de acordo as condições elencadas no §1° do art. 121 do CP. 

Exemplo bastante comum utilizado pela doutrina penalista é o fato do marido que flagra sua esposa com o amante e, dominado por violenta emoção, efetua logo em seguida vários disparos de arma de fogo contra eles. Nesse caso o agente poderá responder pelo homicídio privilegiado, desde que presentes condições muito especiais dispostas no texto do Código Penal.

O crime privilegiado por muito tempo serviu como uma verdadeira “carta na manga” utilizada pela defesa do réu na hora de seu julgamento como forma de livrá-lo da pena restritiva de liberdade. Em alguns casos o réu saía pela porta da frente e totalmente isento de sua culpa em decorrência da utilização do instituto do crime privilegiado. Porém, veremos em momento oportuno, no capítulo seguinte, que esta tese defensiva utilizada para os homicídios passionais foi desmistificada perante os tribunais nos últimos anos, exigindo agora do sujeito ativo do homicídio em estudo os requisitos legais postos em nosso Ordenamento.

3             LEGISLAÇÃO VIGENTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

 

Em decorrência da violência sofrida pela mulher em nossa sociedade, o Estado, como ente soberano e responsável pela tutela do bem comum entre os indivíduos, passou implementar mecanismos legais para minimizar a violência diária sofrida pela mulher em virtude da conduta machista/opressora, e em alguns casos, como demonstra a presente pesquisa, a prática do homicídio passional intentado pelo o homem em face da mulher.

Tal conduta criminosa reitera a urgência da criação de outros meios mais eficazes afim de evitarem, ataques covardes e misóginos, ou seja, ataques desencadeados pelo desprezo ou ódio contra as mulheres.

A misoginia é encarada cientificamente e socialmente como uma aversão mórbida e patológica ao sexo feminino, e diante disso faz ligação direta com a violência praticada contra a mulher.

Diante desta realidade, da crescente violência e do massacre cotidiano enfrentado pela classe feminina, no ano de 2006 foi criada a Lei 11.340 conhecida popularmente como Lei Maria da Penha.

A lei tem como objetivo principal a criação mecanismos suficientes ou pelo menos aptos para coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher. Com o advento desta lei, o legislador entendeu que a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher seria uma forma de ajudar significativamente as vítimas da violência em comento em virtude de todos os abusos sofridos, sua fragilidade e a violação de seus direitos fundamentais tolhidos diariamente durante todo esse tempo como demonstra as tristes páginas de nossa história.

A lei ainda previu a alteração do Código de Processo Penal, do Código Penal e da Lei de Execução Penal para adequar os respectivos diplomas legais a nova realidade trazida pela Lei Maria da Penha. 

A lei 11.340/06 foi intitulada de Lei Maria da Penha em virtude da figura de uma mulher que foi vítima de violência doméstica durante 23 anos, a senhora Maria da Penha Maia Fernandes. As agressões e inclusive as duas tentativas de homicídio sofridas pela vítima foram praticadas por seu marido a época dos fatos.

Um indivíduo frio e cruel que no ano de 1993, por duas vezes, atentou contra a vida de Maria da Penha. Na primeira tentativa, o marido da vítima efetuou contra a mesma, disparos de arma de fogo, resultando na deficiência física permanente dos membros inferiores da vítima.

Na segunda tentativa inconformado com o fato da vítima ainda está viva, o marido decidiu por eletrocutá-la em seguida afoga-la. As condutas narradas anteriormente demonstram a frieza e a desumanidade do algoz para com Maria da Penha. Podemos notar os requintes de crueldade empregados pelo autor reiterando que em momento algum o mesmo poupou a vítima do sofrimento.

Após a culminação da segunda tentativa de homicídio, Maria da Penha foi invadida pela coragem de denunciar seu algoz para as autoridades competentes.

Porém, com base nos relatos policiais a época dos fatos, o marido de Maria da Penha só foi punido depois de 19 anos após a finalização de seu julgamento e ficou somente dois anos em regime fechado demonstrando uma verdadeira impunidade diante do caso.

Em razão desta gravíssima violação aos direitos humanos sofridos por Maria da Penha, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional e o Comitê Latino - Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), juntamente com a vítima, oficializaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, circunstância esta em que o Brasil foi condenado por não possuir mecanismos aceitáveis e capazes de banir ou pelo menos minimizar a prática de violência doméstica contra a mulher.

Maria da Penha de mais uma vítima passou a ser um ícone da luta feminina contra a violência doméstica no Brasil e no mundo. Mulher esta que sofreu todos os tipos de violações possíveis e que com muita luta e muita força de vontade venceu sua triste história de abusos e passou a servir de referência para outras mulheres buscarem a Justiça e lutar pela punição de seus agressores.

Em 2005, foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM), com o objetivo de orientar e esclarecer acerca dos direitos e serviços públicos destinados ao público feminino de todo o país, através do – Ligue 180.[11]

Buscando mais um mecanismo para combater a violência contra a mulher e amparar as vítimas de todo o país, em março de 2014, o Ligue 180, foi transformado em um disque denúncia, com capacidade de envio de denúncias para a Segurança Pública com cópia para o Ministério Público de cada estado. Para isso, conta com apoio financeiro do programa ‘Mulher, Viver sem Violência’, propiciando-lhe agilidade no atendimento, inovações tecnológicas, sistematização de dados e divulgação.[12] 

Esta central de acesso a informação aos serviços que integram a rede nacional de enfrentamento à violência contra a mulher, sob amparo da Lei Maria da Penha, e base de dados privilegiada para a formulação das políticas do governo federal nessa área.

Através dos dados apurados por este sistema – Ligue 180 - as denúncias se tratando de violência doméstica chegam na faixa dos 70%, indicando a porcentagem de mulheres que sofreram ou ainda sofrem violência doméstica praticada em seus lares.  

Uma violência empregada justamente em um ambiente que deveria ser visto como acolhedor, como algo afetivo e amoroso por se tratar de um ambiente de convivência familiar. Porém, o que se ver e se escuta todos os dias nas grandes mídias sociais é o elevado índice deste tipo de violência, demonstrando assim uma crise de valores morais, sociais e por que não dizer religiosos, por parte da nossa sociedade em geral.

Mais uma vez o legislador percebendo a crescente violência em face da mulher e em face simplesmente da sua condição de mulher e da crescente violência de gênero criou no dia 09 de março a Lei 13.104/2015 que inseriu em nosso Código Penal vigente mais uma qualificadora para o crime de homicídio, o feminicídio.

O feminicídio prevê o aumento de pena para os crimes cometidos contra mulher em decorrência (pura e simples) da sua condição de mulher, ou seja, é uma qualificadora baseada no gênero feminino.

Em razão da mudança penal, a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1992) também sofreu mudanças em seu artigo 1°, inciso I, englobando mais uma modalidade qualificada para o homicídio, o já mencionado feminicídio.

Com o advento desta lei surgiu no meio jurídico uma polêmica acerca do sujeito passivo – vítima – nos casos do crime de feminicídio. A dúvida entre gira em torna da (im)possibilidade de figurar pessoa transexual como vítima de feminicídio. A doutrina elenca 3 quesitos para a definição de “mulher” quando da aplicação da qualificadora do feminicídio[13]:

a) Critério psicológico: embora a vítima tenha nascido homem, não aceita essa condição no plano psicológico, se identificando, portanto, como mulher.

b) Critério biológico: a vítima é geneticamente mulher.

c) Critério jurídico: basta ser a vítima identificada como mulher juridicamente, com o seu registro civil modificado para o sexo feminino conforme decisão judicial, bem como já possua características físicas do sexo feminino (cirurgia de mudança de sexo), condição já praticada por transexuais.

As doutrinas no que tange ao assunto por hora exposto se dividem em duas correntes bem distintas. A mais conservadora prega que o transexual não se encaixaria no perfil da vítima do feminicídio, haja vista, pelo fato do transexual não ter nascido mulher. Tal entendimento se baseia no critério biológico já citado.[14]

A corrente considerada como moderna, entende que basta a vítima ter feito a mudança de sexo de maneira através da cirurgia, com efeitos permanentes, bem como a mudança em seu registro civil, autorizado pela jurisprudência atual reconhecendo assim a identificação do transexual como sendo do sexo feminino. De acordo com a corrente moderna, são levados em conta para o reconhecimento do transexual como vítima de feminicídio, os critérios biológico e jurídico.[15]

Consoante entendimento ao que prega a corrente moderna, a jurisprudência vem decidindo acerca da matéria. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já aplicou em seus julgados a Lei Maria da Penha para transexuais:

Para a configuração da violência doméstica não é necessário que as partes sejam marido e mulher, nem que estejam ou tenham sido casados, já que a união estável também se encontra sob o manto protetivo da lei. Admite-se que o sujeito ativo seja tanto homem quanto mulher, bastando a existência de relação familiar ou de afetividade, não importando o gênero do agressor, já que a norma visa tão somente à repressão e prevenção da violência doméstica contra a mulher. Quanto ao sujeito passivo abarcado pela lei, exige-se uma qualidade especial: ser mulher, compreendidas como tal as lésbicas, os transgêneros, as transexuais e as travestis, que tenham identidade com o sexo feminino. Ademais, não só as esposas, companheiras, namoradas ou amantes estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica como sujeitos passivos. Também as filhas e netas do agressor como sua mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que mantém vínculo familiar com ele podem integrar o polo passivo da ação delituosa.[16]

Diante da exposição concluímos que o reconhecimento da vítima transexual nos casos de crimes de feminicídio é possível, em razão da vítima se enquadrar nos critérios no que tange a conceituação de mulher, elencado anteriormente, obedecendo ao critério biológico – mudança de sexo permanente por meio de cirurgia – e ao critério jurídico - a mudança no registro civil.  Importante salientar que o entendimento por hora exposto não abrange as travestis, em decorrência do não cumprimento do requisito biológico citado anteriormente.

Faz mister dizer que não é todo e qualquer crime praticado contra a mulher que será considerada homicídio qualificado na modalidade feminicídio.

Crime praticado contra mulher em sua acepção geral, no sentido amplo da palavra, o agente incorrerá no delito de femicídio, e assim não será contemplado pela qualificadora do Art. 121, § 2°, inciso VI.

Segundo o entendimento de Rogério Sanches femicídio seria: “Matar mulher, na unidade doméstica e familiar (ou em qualquer ambiente ou relação), sem menosprezo ou discriminação à condição de mulher”[17].

Ainda é importante ressaltar que a pena poderá ser aumentada no delito de feminicídio se a conduta do agente se adequar a condição prevista no Art.121, § 7°. De acordo com o dispositivo legal, in verbis:

§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;

II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;

III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

Ainda de acordo com as lições de Rogério Sanches:

Antes da Lei 13.104/15 essa forma do crime já qualificava o homicídio, mas pela torpeza, sendo igualmente rotulada como hedionda. A mudança, portanto, foi meramente topográfica, migrando o comportamento delituoso do art. 121, § 2°, I, para o mesmo parágrafo, mas inc. VI. A virtude dessa alteração está na simbologia, isto é, no alerta que se faz da existência e necessidade de se coibir com mais rigor a violência contra a mulher em razão da condição do sexo feminino” (grifo do autor).[18]

Após as explanações podemos destacar a urgência da promulgação de uma qualificadora específica para os casos de violência contra a mulher por sua razão de ser. Como bem leciona Rogério Sanches (2017), existe a necessidade de se coibir a prática reiterada de crimes de cunho misóginos, ou seja, crimes que tenham como motivação a eliminação do sexo feminino. O agente delituoso de maneira torpe mata seu semelhante enquanto pessoa simplesmente por não aceitar sua existência enquanto indivíduo pertencente ao sexo feminino, demonstrando o caráter de urgência de uma medida impeditiva e punitiva no que tange a violência contra a mulher.

3.1 A QUEBRA DA ALEGAÇÃO DA LEGÍTMA DEFESA DA HONRA E DO CRIME PRIVILEGIADO

No decorrer de nossa história muito se ouviu falar em Legítima Defesa da Honra alegada pelos advogados de defesa dos homicidas passionais como forma de atenuar a pena destes.

A tese era embasada no fato de que o autor do delito matou sua vítima pelo fato da mesma está lhe traindo ou simplesmente pelo fato de não aceitar o fim do relacionamento.

Como já dito, o homem era soberano, a educação patriarcal aplicada o permitia que este agisse dessa maneira e em momento algum sendo contrariado ou reprimido, pelo contrário, a mulher não poderia em hipótese alguma envergonhar seu marido pois esta seria punida de maneira severa e na maioria das vezes pagaria com a própria vida. 

A palavra honra nesse contexto é utilizada para demonstrar que o homem não admite ser traído e que dessa forma ele detinha todos os poderes sobre a mulher. É uma maneira de auto afirmar a sua condição de homem, de líder e principalmente de dono da vítima perante a sociedade.

Porém, alguns autores como Beraldo Junior (2004) defendem que esta ideia ainda deve ser usada, posto que a própria Constituição Federal, em seu Art. 5º, inciso X, fala sobre a proteção da honra. Segundo o autor:

Ainda segundo Beraldo Junior (2004), para que se caracterize a legítima defesa o autor do delito deverá utilizar-se dos meios necessários e se o ofendido (autor do delito) entendia no momento de sua exaltação emocional e psicológica ser aquele o meio necessário para a repulsa da ofensa e não conseguia discernir se aquela repulsa era necessária ou se a melhor saída seria uma separação litigiosa ou consensual, por exemplo, não há que se desclassificar a legitima defesa e puni-lo por homicídio quali­ficado, ou na melhor das hipóteses no homicídio privilegiado. Para ele o núcleo do tipo penal deve ser analisado caracterizando a repulsa à injusta agressão a honra, e, portanto, caracterizando a legítima defesa.[19]

Por outro lado, um forte argumento dos que defendem a inaplicabilidade da tese de Legítima Defesa da Honra é o reconhecimento da equidade entre os direitos de homens e mulheres, presente de maneira clara na Constituição Federal em seu Art. 5°, caput quando elenca que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Ainda no mesmo artigo, o inciso I reitera que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Com base no argumento de que seria cabível a Legítima Defesa da Honra, aplicar esta tese ao caso concreto seria inconstitucional.

Para Luísa Nagib Eluf:

A tese de legítima defesa da honra, que levou à absolvição ou à condenação a penas muito peque­nas de autores de crimes passionais, já não é mais aceita em nossos tribunais. A honra do homem não é portada pela mulher. Honra, cada um tem a sua. Aquele que age de forma indigna deve arcar pessoalmente com as consequências de seus atos. Sua conduta não contamina o cônjuge [...] A tese de legítima defesa da honra é inconstitucional, em face da igualdade dos direitos entre homens e mulheres assegurada na Constituição Federal de 1988 – art. 5 º – e não pode mais ser alegada em plenário do júri, sob pena de incitação à discriminação do gênero. [...] No entanto, sempre esteve claro que a legítima defesa da honra foi um artifício. Os advogados sabiam, perfeitamente, que lei nenhuma no Brasil falava nessa modalidade de legítima defesa, mas os jurados, leigos que são, não iriam decidir com base no texto expresso de lei, mas de acordo com seus valores culturais.[20]

Diante do exposto, podemos compreender que a tese sustentada por décadas no plenário do júri, alegada pelos advogados de defesa que seus clientes mataram suas vítimas com o objetivo de lavar sua honra, foi desmistificada e considerada como uma alegação de natureza criminosa, por incitar a violência e a discriminação de gênero.

Outra tese bastante utilizada nas sustentações dos tribunais brasileiros e estrangeiros é a do Homicídio Privilegiado, no qual a defesa alega que o agente ativo do homicídio passional cometeu o crime impelido por relevante valor social ou moral, sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima. Esta tese diferentemente da Legítima Defesa da Honra, tem validade no ordenamento jurídico pátrio e, desde que o condenado cumpra os requisitos legais exigidos para o beneficiamento, poderá lograr as vantagens desta atenuante penal.

Com base no texto legal do artigo 121, § 1º, do Código Penal vigente:

Matar alguém: [...]

§1º- Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.[21]

Nesse sentido, escreveu Luiza Nagib Eluf:

Disse o Promotor de Justiça Alcides Amaral Salles, por ocasião de recurso da pronúncia, citando Nelson Hungria: ‘O marido que surpreende a mulher e o tertius em flagrante e, em desvario de cólera, elimina a vida de uma ou de outro, ou de ambos, pode invocar a violenta emoção, mas aquele que, por simples ciúme ou meras suspeitas, repete o gesto bárbaro e estúpido de Othelo terá de sofrer a pena inteira dos homicidas vulgares.[22]

A defesa do sicário passional enxerga a alegação do homicídio privilegiado como maneira legal de livrar o assassino da aplicação de uma pena mais dura de acordo com o caso concreto.

Diante da exposição em tela, entendemos a necessidade de um estudo mais aprofundado por parte de nossos legisladores em face do crime do passional. Por se tratar de um crime complexo em razão dos motivos e o que leva um indivíduo a matar outrem tendo como justificativa do ato criminoso, o amor ou uma paixão irresistível.

Em virtude da deficiência apresentada por nossos legisladores em face do crime passional e de suas inúmeras peculiaridades somos convidados a pensar na criação de um possível tipo penal para o crime em estudo.

Algozes e vítimas se misturam no cenário social. O machismo engessado ainda tenta justificar a conduta do homicida como algo benevolente e aceitável procurando esclarecer a situação fatídica partindo da premissa que a culpa da tragédia passional foi da vítima por esta não ter correspondido devidamente o amor oferecido por seu “admirador”.

A dupla vitimização da mulher em face do crime sofrido, a constante busca social de justificar os atos hediondos praticados pelo autor da barbárie passional como sendo atos meramente reflexivos da postura e do comportamento apresentado pela mulher reiteram a importância da desmistificação dessa conduta fria e covarde tão presente em nosso meio social.

Uma sociedade opressora que respira ainda ares patriarcalistas mesmo diante do crescente desenvolvimento e empoderamento feminino reafirmam a importância da criação de um tipo próprio para o crime conjugal e/ou passional.

 

4     QUATRO CASOS DE GRANDE REPERCUSSÃO NACIONAL E SUAS TESES DE DEFESA E ACUSAÇÃO

 

O Brasil se destaca de maneira negativa como sendo o quinto país num ranking mundial que mais mata mulheres.[23] Em virtude disso, o Brasil foi palco de grandes tragédias, que destruiu famílias inteiras e envergonhou nossa história com crimes bárbaros.

A história do crime passional em nosso país vitimou e vitimiza até hoje mulheres famosas e anônimas, revelando assim que o crime em comento não escolhe suas “presas” em face de suas condições sociais ou intelectuais, tendo como prerrogativa apenas que a vítima mantenha algum tipo de relacionamento maculado pelo ciúme doentio, pelo ódio, pelo rancor entre outros sentimentos negativos abordados no presente estudo.

4.1 ÂNGELA DINIZ E DOCA STREET

Em 30 de dezembro de 1976, Ângela Diniz, conhecida socialmente como a “Pantera de Minas” foi assassinada por seu companheiro com quem já se relacionava aproximadamente quatro meses, o paulistano Raul Fernandes do Amaral Street, conhecido socialmente por Doca Street.[24]

Ângela foi alvejada com quatro disparos de arma de fogo, sendo que três acertaram seu belo rosto e o ultimo acertou sua nuca, não dando chance alguma de defesa à vítima.

Doca alegou em depoimento que matou a companheira por ciúmes, após descobrir que a vítima estaria tendo um suposto relacionamento com a alemã Gabrielle Dayer. Esta era artesã e fabricava bolsas, porém na época do fato corria rumores que a alemã consumia e traficava drogas.

Pouco tempo depois da morte de Ângela, a mulher misteriosa - Gabrielle Dayer - desapareceu, sendo dada como morta. Segundo os relatórios policiais da época a mesma teria caído de algumas pedras ao tentar atravessar o espaço de oito metros entre as praias dos Amores e Serradurinha e seu corpo não foi encontrado.

O assassinato de Ângela Diniz foi presenciado pela empregada da vítima em Búzios, a senhora Maria José de Oliveira. Segundo a empregada, após uma discussão acalorada entre a vítima e seu algoz, este saiu da residência. Porém, pouco tempo depois retornou a casa efetuando quatro disparos de arma de fogo contra Ângela, que veio a óbito no local do fato.

A tese de defesa apresentada pelo advogado de Doca Street foi que o agente teria agido impelido de violenta emoção, logo em seguida da injusta provocação da vítima. Porém, Doca foi examinado por dois peritos contratados pela defesa afim de atestar o estado psíquico que o autor do crime se encontrava, mas não lograram êxito.

Segundo os peritos, Doca não estava conturbado, tampouco traumatizado pela morte da companheira, mas mostrava-se indiferente. Diante disso não houve o convencimento dos peritos quanto a seu estado emocional, não havendo na ocasião a produção de laudo algum.

Após o fracasso na tentativa de livrar Doca do crime através do laudo pericial, a defesa passou a investigar a vida pregressa da vítima afim de justificar a conduta praticada pelo autor do crime.

Doca Street foi julgado duas vezes. No primeiro julgamento, o autor do crime foi apenado em dois anos de reclusão com sursis - suspensão condicional da pena. O assassino de Ângela praticamente fora absolvido.

A defesa passou a usar a tese da legítima defesa da honra, com excesso culposo. O julgamento resultou num verdadeiro sucesso para a defesa do assassino de Ângela.

Luiza Nagib Eluf em sua obra A paixão no banco dos réus relata as palavras proferidas por Evandro Lins, advogado de Doca Street, após o término do julgamento:

Foi um júri sensacional. O julgamento permitiu que eu aparecesse como o advogado que era antes. E enfrentando a impopularidade, enfrentando os movimentos feministas, que, na época, tinham uma força muito grande e eram muito atuantes. Mas eles não tinham razão, porque evidentemente eu não estava defendendo nada contra as mulheres...Era um episódio individual, de um casal que se desajustou e que chegou até a desgraça de um crime [25]

Diante da condenação de apenas dois anos de reclusão, a acusação não se conformou com o resultado e dois anos depois, em novembro de 1981, Street foi levado a júri novamente. Segundo Eluf: “Desta segunda e última vez, Doca foi condenado, por homicídio qualificado, a quinze anos de reclusão. O Júri entendeu, por 5 votos a 2, que ele não agiu em legítima defesa de direito algum, muito menos de sua honra ferida.”[26]

Para a autora, a condenação de Doca foi um verdadeiro marco na história da luta das mulheres por direitos iguais frente aos homens.

4.2  DANIELLA PEREZ, GUILHERME DE PÁDUA E PAULA TOMAZ

Mais tarde, no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca, o país seria surpreendido por um dos crimes mais bárbaros de nossa história policial.

A atriz Daniella Perez, filha de uma escritora renomada, Glória Perez, foi brutalmente assassinada com golpes de tesoura. Segundo relata Eluf:

Na noite de 28 de dezembro de 1992, a atriz Daniella Perez, de 22 anos, foi morta com dezoito golpes de tesoura, em um matagal existente na Rua Cândido Portinari, próximo do condomínio Rio-Shopping, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. O corpo foi abandonado no local do crime e, de início, a autoria era desconhecida. No entanto, a Polícia identificou os culpados em menos de quarenta e oito horas, graças às informações recebidas de um advogado, Hugo da Silveira, que estava hospedado no condomínio e anotou a placa de dois carros estacionados de forma suspeita, próximos do lugar onde o corpo foi encontrado. [...] A revelação da autoria chocou ainda mais a família e a sociedade brasileira: Daniella havia sido assassinada pelo ator Guilherme de Pádua, de 23 anos, que contracenava com ela na novela De Corpo e Alma, da Rede Globo de Televisão, e pela mulher dele, Paula Almeida Thomaz, de 19 anos, que estava grávida de quatro meses. Os dois suspeitos logo confessaram a prática do crime. (Grifo nosso) [27]

Um crime rodeado de muito mistério e diversos conflitos entre as partes acusadas, Paula e Guilherme. Os acusados a todo momento mudavam a narrativa do ocorrido, muitas vezes caindo em contradições absurdas a respeito da realidade dos fatos apresentados no dia do crime.

Em uma de suas versões, Guilherme afirmou que matou a jovem atriz em virtude dos assédios que sofreu por parte dela. Segundo seu depoimento, Daniella exigia que Guilherme abandonasse Paula, sua atual esposa, para viver um romance com a vítima.

Porém esta versão logo foi desqualificada por familiares e amigos da atriz. Daniella era casada com o também ator Raul Gazolla e não demonstrava interesse algum em relação a Guilherme.

Ambos os assassinos demonstravam um comportamento bem peculiar, sendo cogitada inclusive a existência de um pacto entre eles. Paula Tomaz aparentava sentir bastante ciúmes de Pádua, ciúme este de natureza doentia, que se agrava a cada dia em virtude de cenas amorosas contracenadas entre Pádua e Daniella.

Amigos e atores que contracenavam com a vítima e o acusado em algumas oportunidades relataram que Guilherme poderia ter “misturado” o personagem com a vida real.

Ainda conforme a obra de Luiza Nagib Eluf:

Paula Thomaz, em suas primeiras declarações informais, confessou ter dado o primeiro golpe em Daniella. Segundo relatou, estava escondida dentro do Santana do marido e ouviu a conversa dele com a atriz. Não suportando as “investidas” da moça em Guilherme, saiu do veículo, arrastou a vítima para fora e deferiu-lhe um golpe com uma chave de fenda. Nesse momento, Guilherme teria dado uma “gravata” na atriz, que desmaiou. Em seguida, ele foi até o carro, pegou a tesoura, voltou, arrastou Daniella para o matagal e a matou.[28]

Diante da história de horror reportada por todos os jornais da época, Guilherme e Paula foram levados a júri popular, como narra Eluf em sua obra:

                                

Paula e Guilherme foram levados a Júri por homicídio duplamente qualificado: motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima. O rapaz foi julgado primeiro, em face de desmembramento do processo, e condenado a dezenove anos de reclusão, em 15 de janeiro de 1997, em sessão que durou sessenta e seis horas, um dos júris mais longos da história do Judiciário fluminense. Guilherme já havia cumprido mais de quatro anos de pena, sendo que, em breve, poderia progredir para o regime prisional semiaberto. [29]

Não faltavam elementos concretos para a acusação no caso em comento. A defesa, por sua vez, tentou sustentar a tese que primava pela negativa de autoria, porém não logrou êxito na fase do júri.

Com base nos relatos explanados por Luiza Nagib, ficou claro que nem a defesa tão pouco a acusação se conformaram com a pena aplicada ao casal Guilherme e Paula. Como podemos ver:

Houve recurso da defesa e da acusação, tanto com relação a Paula quanto a Guilherme. A defesa, no intuito de anular o julgamento; a acusação, para aumentar a pena imposta. Os recursos não foram providos, a não ser parcialmente com relação a Paula, que teve reduzida sua pena para quinze anos de reclusão. Os desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro consideraram necessário diminuir a pena de Paula por ela ser menor de 21 anos à época do crime e ter tido uma participação menos importante no episódio. A pena de Guilherme foi mantida em dezenove anos.[30]

Em virtude de um movimento liderado pela mãe da jovem atriz assassinada, a escritora Glória Perez, após colher 1,3 milhões de assinaturas para a criação de um projeto de lei que tinha como previsão a inserção do crime de homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos, previstos na Lei 8.072/90, vindo a ser posteriormente votado e aprovado pelo Senado, respectivamente.[31]

4.3     SANDRA GOMIDE E ANTÔNIO MARCOS PIMENTA NEVES

Sandra Gomide, 32 anos, jornalista, foi alvejada com dois disparos de arma de fogo em um haras localizado no município de Ibiúna, em São Paulo. O autor do crime e ex namorado da vítima, Antônio Marcos Pimenta Neves, de 63 anos, diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo.[32]

Segundo foi relatado pelos amigos de Pimenta Neves, ele era um homem metódico, bastante sério. Por possuir uma condição financeira superior ao da vítima, era bastante comum presenteá-la com joias, roupas de grife. Porém, a cada discussão ou rompimento da relação entre o casal, Pimenta exigia que Sandra devolvesse tudo o que ele havia lhe dado, reforçando assim o seu ar de superioridade frente a vítima.

De acordo com as informações policiais levantadas na época dos fatos, Pimenta a todo momento inferiorizava Sandra em virtude de sua humilde origem e por esta ser filha de um simples mecânico.

A vítima e seu algoz pertenciam a “mundos diferentes”. Ele, um homem poderoso, arrogante e muito conhecido pelo trabalho que desempenhava na área jornalística. Ela, uma moça de origem humilde que lutava para sobreviver e enxergava o jornalismo como um meio para mudar de vida.

A diferença de idade entre eles era de 32 anos, fato este que pesava para Pimenta Neves, como assevera Luiza Nagib Eluf a respeito:

Devido à diferença de idade, ele ficava extremamente enciumado quando Sandra se aproximava de algum colega de sua geração e tinha rompantes assustadores. Contratava motoristas para seguir os passos da namorada, tendo chegado ao cúmulo de alugar um apartamento em frente ao dela apenas no intuito de vigiá-la.[33]

Em razão das reiteradas brigas, Sandra acabou por romper de maneira definitiva com Pimenta Neves.  O jornalista não aceitou a decisão da moça e passou a importuná-la a fim de reatar o namoro, porém Sandra não cedeu aos pedidos do seu ex.

Em uma de suas viagens à trabalho, cujo destino foi Quito, capital do Equador, Sandra conheceu outro homem. Tratava-se de Jayme Mantilla Anderson, proprietário do jornal Hoy. O assunto de um possível novo amor chegou aos ouvidos de Pimenta deixando-o mais furioso e enciumado, pois via a cada dia Sandra se desvencilhar de sua teia de sentimentos negativos. A vítima era fascinada por cavalos e frequentava na época o Haras Setti, em Ibiúna, São Paulo.

Em uma de suas idas ao referido haras, Sandra foi abordada por Pimenta. Segundo foi relatado pelo próprio assassino em seu depoimento, no dia do homicídio os dois começaram a discutir por causa de algumas perguntas feitas por Pimenta confrontando Sandra a respeito de fatos ocorridos no período do término do casal.[34]

Ao tentar intimidar a moça, forçando-a a entrar em seu carro, a mesma conseguiu se desvencilhar de Pimenta, mas não foi suficiente, sendo nesse momento alvejada à queima roupa por dois disparos de arma de fogo efetuados por seu ex, vindo a vítima cair no chão já sem vida.

Em depoimento, o autor do crime negou que quisesse atirar em Sandra e que teria sacado a arma apenas para intimidá-la a entrar em seu carro. O autor ainda afirmou que era um indivíduo racional, porém no momento do crime se encontrava em um estado emocional bastante desequilibrado, incapaz assim de entender sua atitude delituosa.

Luiza Nagib Eluf escreve:

Antônio Marcos Pimenta Neves confessou detalhadamente o crime. Esteve preso, em razão de prisão preventiva, até 23 de março de 2001, quando um habeas corpus, impetrado pelo advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, foi-lhe concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Por decisão do Ministro Celso de Mello, Pimenta foi solto e aguardou o julgamento em liberdade. Pimenta foi julgado pelo Tribunal do Júri somente em 3 de maio de 2006, ou seja, seis anos após a data do crime. Sua defesa fez o possível para adiar o julgamento e, como se vê, obteve sucesso, mas não conseguiu absolvê-lo. [35]

O caso em tela até hoje causa revolta por conta da morosidade na aplicação da pena, por mais que o réu tenha confessado que matou Sandra, Pimenta Neves foi condenado a uma pena de dezenove anos, dois meses e doze dias de reclusão, em regime fechado, por se tratar de homicídio duplamente qualificado e possuir natureza hedionda.[36]

O autor de mais um crime passional da história de nosso país saiu livre e pela porta da frente do Tribunal do Júri de Ibiúna, São Paulo, e se dirigiu tranquilamente para sua residência deixando uma sensação de impunidade em todos os espectadores que acompanharam a história lamentável de mais uma mulher que perdeu a vida em virtude do ciúme, da posse e do egoísmo de um ex namorado frio e calculista.

Segundo os relatos jornalísticos, em setembro de 2008, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou recurso que buscava a anulação da condenação, manteve a decisão, mas com redução da pena para 14 anos, dez meses e três dias. No dia 24 de maio de 2011, Pimenta Neves se entregou à polícia após o Supremo negar todos os recursos apresentados pela defesa e desde então cumpre a pena na P2 em Tremembé.[37]

4.4 ELOÁ CRISTINA PIMENTEL E LINDEMBERG ALVES FERNANDES

O caso em tela trata de Eloá Cristina Pimentel, 15 anos, morta por seu ex namorado Lindemberg Alves Fernandes, de 22 anos.

Em Santo André, no ABC Paulista, Eloá foi surpreendida em sua residência por seu ex no dia 13 de outubro de 2008, por volta das 13 horas. Na ocasião a moça encontrava-se com mais três colegas de escola que estavam fazendo um trabalho escolar. Foram interrompidos de maneira abrupta e sorrateira por Lindemberg Alves, que invadiu o apartamento portando uma arma de fogo e um saco cheio de balas. O rapaz, inconformado com o fim do relacionamento com Eloá, pretendia reatar a todo custo o namoro com a vítima.

Segundo relatos da família e amigos da vítima e do autor, o namoro do casal era pautado em muitas discussões e crises de ciúmes por parte de Lindemberg. Ele possuía um temperamento bastante controlador e imprevisível. Em algumas ocasiões o rapaz impedia a adolescente de sair de casa afim de mantê-la sob seu controle, reafirmando assim sua superioridade, se demonstrando como verdadeiro “dono” da vítima.

Como se apurou ao longo do caso, o namoro entre os dois teria iniciado quando Eloá tinha apenas 12 anos de idade e ele 19, vindo a durar dois anos e sete meses. A disparidade de idade entre ambos era um dos motivos da insegurança apresentada por Lindemberg.[38]

Corriqueiramente, o rapaz rompia o namoro e depois de um dado momento procurava a ex afim de reatar. Como é sabido, foi o próprio criminoso que quis mais uma vez o fim do namoro e quando se arrependeu novamente se viu rejeitado, pois a vítima não concordou mais em manter a relação conturbada com seu malfeitor.

Como já foi dito anteriormente, a vítima estava com três colegas de escola em seu apartamento, e dentre eles estava Nayara Rodrigues da Silva, melhor amiga de Eloá na época.[39]

Nayara foi feita refém por Lindemberg. A moça foi liberada no dia seguinte após a entrada do assassino no apartamento, porém, em uma atitude inesperada, a moça retornou para o cativeiro com o intuito de ajudar nas negociações afim de garantir que sua melhor amiga fosse libertada.

O caso de Eloá Cristina Pimentel tomou uma proporção gigantesca e passou a ser assistido por todo o país, ganhando a atenção de grandes emissoras de televisão em seus horários nobres.

Tratava-se da história de mais uma mulher que estava sendo vítima de um ex namorado enciumado e bastante “apaixonado” como foi relatado pelas mídias sociais.

Segundo o depoimento de Nayara, vítima sobrevivente do caso em comento, Lindemberg se vangloriava a todo momento, proferindo palavras de superioridade. Conforme relatou a adolescente, ele estava se sentindo o mais novo protagonista da televisão brasileira.[40]

O fato da mídia social ter proporcionado uma abertura gigantesca ao autor do crime em rede nacional o encorajou frente as vítimas e frente à própria polícia que estava fazendo as negociações. A maneira como a situação fática foi abordada pela a mídia era de um verdadeiro filme de ação, usurpando o real sentido do caso concreto.

Depois de 100 horas de cárcere privado o desfecho do sequestro de Eloá e Nayara não foi satisfatório como acreditava a polícia e todos os espectadores que ali assistiam o fato, seja da janela de suas casas no conjunto habitacional onde a vítima morava, seja por suas televisões.[41]

Após a invasão da polícia no dia 17 de outubro de 2008, exatamente cinco dias depois de iniciado o cárcere, Lindemberg atira em Eloá alvejando a moça com um tiro na virilha e outro na cabeça, e atira em Nayara alvejando-a com um tiro na boca.[42]

Eloá ainda chegou a ser socorrida, mas não resistiu aos ferimentos e morreu no hospital. Nayara também foi socorrida e não corria risco de vida.

A ação da polícia foi bastante questionada em virtude de sucessivos erros cometidos pelas autoridades responsáveis pela segurança do local, porém as autoridades afirmaram que fizeram tudo o que foi possível para salvaguardar a vida das vítimas e inclusive a do próprio assassino de Eloá.

Em 16 de fevereiro de 2012, quatro anos depois do fato lamentável, Lindemberg Alves foi condenado a 98 anos e dez meses de prisão pelos 12 crimes pelos quais foi julgado.

Em síntese Lindemberg foi condenado pelos delitos de: homicídio qualificado pelo motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima (Eloá Pimentel), homicídio tentado qualificado pelo motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima (Nayara), homicídio qualificado tentado (vítima Atos Valeriano), cinco crimes de cárcere privado e quatro crimes de disparo de arma de fogo.[43]

5   DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E SEU CERCEAMENTO

 

Em decorrência do surgimento de grandes guerras e da crescente instabilidade no que tange a paz mundial, notou-se a urgência da criação e afirmação de novos modelos referentes a convivência e o respeito entre os povos. A violação e os abusos cometidos em virtude do desregramento instaurado oriundos da instabilidade mundial e da violação de direitos inerentes a pessoa humana embasaram a criação dos chamados direitos humanos fundamentais.

Segundo a definição de Dallari[44] “direitos humanos representam uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são fundamentais porque sem eles o ser humano não conseguirá existir ou não será capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida social e política.”

Concordando com a evolução histórica dos direitos humanos e com a necessidade de definição de sua essência/conteúdo, Peres Luño[45] conceitua direitos humanos como sendo o “conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional”.

Como é sabido foi a Organização das Nações Unidas (ONU) a entidade responsável por proclamar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, fato ocorrido no século XX, no ano de 1948 como retrata as páginas de nossa história.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem como prerrogativa principal e fruto de sua luta, a ideia de que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e de consciência, e devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

A ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos com o objetivo de evitar guerras, promover a paz mundial e de fortalecer os direitos humanitários diante de todas as barbáries que assolaram todo o mundo durante séculos (e ainda assolam).

A referida Declaração tem visibilidade mundial e restringe a violação dos direitos inerentes a pessoa humana independentemente de qualquer formalidade ou vontade, seja por parte de qualquer indivíduo, seja por parte do Estado ou do governo. Após a breve explanação sobre o conceito geral de Direitos Humanos, somos indagados a saber o porquê de se falar em Direitos Humanos das Mulheres já que o texto normativo da Declaração em comento é bastante claro quando elenca em suas linhas que todos os seres humanos possuem direitos e liberdades básicas sem qualquer tipo de distinção.

Diante da realidade fática detalhada ao longo do trabalho, somos convidados a problematizarmos a crescente violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres na sociedade atual. Tais direitos são o resultado de lutas e embates políticos que se arrastaram por séculos e ainda hoje estão sujeitos a avanços e retrocessos. Sendo assim, há a necessidade de redefinição do conceito desses direitos, tendo em vista tantas discriminações sofridas pelas mulheres ao longo do tempo.

Nota-se que as mulheres têm sido desprovidas do exercício pleno de seus direitos, sendo subjugadas e vitimadas diariamente com abusos e violências, tanto em cenários de guerra, como no contexto da vida familiar e doméstica.

 Não podemos olvidar que as mulheres e suas constantes lutas têm tido um papel de grande magnitude na ampliação do alcance dos direitos humanos. Contrariedades que sempre fizeram parte das suas vidas, como a violência doméstica, os direitos sexuais e reprodutivos, direitos sociais específicos à mulher, a maculação de suas plenitudes físicas, entre outras matérias atinentes, todas as violações de direitos são levantadas por movimentos feministas, nacional e internacionalmente.

No ponto de vista internacional, o principal mecanismo de direitos humanos que dispõem sobre as mulheres é a Convenção contra Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), do ano de 1979.

Trazendo esta realidade para nosso país, no que se refere aos direitos humanos das mulheres, no Brasil a Constituição Federal de 1988, estabelece uma referência fundamental pois resultou em uma verdadeira mudança de modelo do direito brasileiro no que se refere à igualdade de gênero, visto que, o Brasil trouxe de maneira expressa pela primeira vez a expressão “igualdade” em seu texto constitucional.

Importante salientar que a igualdade e/ou isonomia elencada em nosso arcabouço jurídico só será efetivada se atingir todas as camadas sociais de acordo com suas necessidades, uma vez que, a figura da igualdade, ícone da Constituição de 1988 se desenvolve a partir de duas vertentes.

A igualdade formal afirmada na Revolução Francesa, defendia que todos são sempre iguais em todas as situações, todavia, cada indivíduo em si mesmo ou como parte de um grupo especifico (criança, mulher, idoso, consumidor) tem urgências diferentes e necessitam ser preservados, ou pelo menos assegurados seus direitos próprios em virtude de suas condições especificas.[46] A igualdade matéria idealiza tratar os iguais na medida de sua igualdade, e os desiguais na medida de suas desigualdades. Assim, a letra da lei deve ser lida e interpretada dessa maneira: todos são iguais desde que respeitados os direitos e garantias próprios da sua especificidade individual ou do grupo onde está inserido.[47]

A situação encarada pela classe feminina revela a necessidade da efetivação da referida igualdade material. Como demonstra os dados no assunto, as mulheres compõem mais da metade do eleitorado do país, porém, estas não representam nem 10% das cadeiras ocupadas no Congresso Nacional[48]. Demonstrando a ideia machista e desqualificada de que “mulher não serve para política.”

No plano econômico, o Brasil se destaca negativamente como sendo o 79ª na posição dentre 187 países do ranking do índice que se refere a desigualdade de gênero do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que tem por critérios avaliativos os fatores como o acesso à educação e saúde materna como uma forma de conjecturar as diferenças das condições materiais da vida de homens e mulheres.[49]

O direito à liberdade tido como cláusula pétrea em nosso texto constitucional, é violado no momento em que uma mulher é estuprada e morta pelo simples fato de andar sozinha pela rua. Esta realidade nos direciona a problematizar acerca da real igualdade material e se de fato ela existe para a classe feminina.

Uma sociedade que ainda bebe da água brotada na fonte do machismo/opressor, que ainda enxerga a mulher como sendo um ser inferior ao homem, que ainda viola direitos fundamentais da livre escolha quanto a reprodução, obrigando todos os dias mulheres a cometerem abortos em clínicas clandestinas por não garantir os direitos reprodutivos de forma integral, que ainda mata e potencializa a impunidade de maridos, companheiros ou amantes pelo simples fato de não aceitarem o fim de um relacionamento, que ainda prega a cultura do estupro, versando que mulher “direita” é aquela que casa, têm filhos e cuida do marido, sendo a mulher “solteira” vista como puta ou indigna de receber a tutela estatal em virtude de sua vida “desregrada” aos olhos do machismo engessado, afirmando constantemente que se a “mulher da rua” for abusada ou tiver alguns de seus direitos fundamentais tolhidos foi por que ela condicionou para isso, reiterando assim a cultura do estupro que tem como prerrogativa principal culpar a vítima pelos abusos sofridos e nunca o agressor, o real culpado.

Os crimes passionais, de maneira geral, todos os dias retiram direitos fundamentais inerentes as suas vítimas. Diante deste cenário de horrores a mulher não possui “legitimidade” suficiente para decidir pelo fim de um relacionamento ou para iniciar outro. Caso esta mulher decida por não seguir os ditames sociais de “boa mulher, digna e proba”, acaba por ser torturada e na maioria das vezes morta pelas mãos de seu marido, companheiro, namorado ou ex.

O homicídio passional viola o bem maior inerente ao ser humano, o direito à vida. Esta conduta fria e egoísta destrói sonhos, famílias inteiras e algumas vezes o futuro dos filhos, frutos daquela relação. Em razão desta realidade se faz mister falar de direitos fundamentais das mulheres, pela falha dos instrumentos e mecanismos de direitos humanos, considerados insuficientes e inadequados para as necessidades e demandas femininas.

A criação de novos mecanismos específicos em relação à mulher - como a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação à Mulher, em 1967, e a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, em 1979, assinadas por grande número de países – tem minimizado, mas não superou totalmente o problema da excludência feminina no que diz respeito aos direitos humanos.[50]

Conforme elenca CLADEM:

Justifica-se, assim, a necessidade de redefinição do conceito de direitos humanos sob uma perspectiva de gênero, a partir de uma leitura da realidade que torne visível a complexidade das relações entre homens e mulheres, revelando as causas e efeitos das distintas formas em que se manifestam estereótipos e discriminações.[51]

A ideia inicial quando se escuta falar em Direitos Humanos, nos reporta a figura de alguns homens brancos, heterossexuais e principalmente com recursos econômicos da Europa e dos EUA, reiterando o egocentrismo presentes nos princípios. Desse modo, esta realidade reforça a necessidade e o caráter de urgência acerca de uma redefinição que possa incorporar o princípio da pluralidade e abordar a universalidade das diferenças humanas, sejam elas no que se refere a raça, etnia, orientação sexual e gênero.[52]

Em nosso país é inquestionável a participação do movimento de mulheres que, em conjunto com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) desenvolveram uma histórica e bem realizada campanha nomeada de "Constituinte pra Valer Tem que ter Direitos da Mulher" e interviram diretamente junto ao Congresso Nacional em um movimento conhecido como Lobby do Batom, com o propósito de elaborar uma nova proposta de lei para reprimir e/ou frear a violência sofrida pela mulher, tomando como base a Convenção de Belém do Pará, o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos relativo ao Caso 12.051, que tem como personagens principais Maria da Penha Maia Fernandes X República Federativa do Brasil, da data de 4 de abril de 2001, caso este já comentado na presente pesquisa.

Porém, a figura do paradigma masculino humano legitima a hegemonia do poder patriarcal, que se manifesta não só na linguagem, mas também no invisível exercício cotidiano do poder de opressão sobre as mulheres e na sutil aceitação cultural da subordinação.[53]

Para que haja a mudança almejada pelas mulheres de um modo geral é necessário a participação da classe feminina na discussão de assuntos referentes as reais necessidades e violações sofridas por estas mulheres, para que sejam traçados mecanismos que visem minimizar a violação desses direitos fundamentais da mulher.

Assuntos referentes a violência doméstica/familiar, violência sexual e de gênero, bem como as violações a liberdade individual da mulher, o direito a saúde e a liberdade reprodutiva, visto que o papel da mulher na sociedade não se destina apenas para fins “pro-criativos”, o direito ao trabalho digno com remunerações dignas e uniforme em relação as demais classes trabalhadoras, sendo respeitadas os limites da jornada de trabalho e todos os direitos já adquiridos. Importante salientar ainda, no que tange ao trabalho exercido pela mulher na sociedade, a grande maioria das atividades desenvolvidas são vistas como “extensões do lar”, exemplo disso, o serviço doméstico remunerado, sendo o líder quando se trata de trabalho feminino.[54]

A reeducação familiar desenvolvida em nossa sociedade poderá interferir diretamente na produção de resultados positivos e na conscientização e respeito entre os indivíduos independente de gênero, raça e sexo.

Educar as novas gerações é uma forma de evitar futuros assassinatos e futuras punições para os indivíduos de uma sociedade de um modo geral. A igualdade e o respeito de gênero é uma tecla que ainda precisa ser bastante batida no ambiente familiar, nas escolas, na vizinhança, nas igrejas, etc.

A conscientização de que os direitos da mulher estão acima dos sentimentos egoístas presentes nas relações mitigadas pelo ciúme e pela posse é uma forma de garantir uma relação saudável entre os indivíduos.

A quebra do paradigma da dupla vitimização se faz extremamente necessária, assim como também um desenvolvimento mais sensível por parte dos profissionais do direito ao se depararem com casos de violência contra mulher e outras violências afins do assunto em comento.

A vítima quando sobrevive aos atos de violência praticados por seu companheiro, marido ou namorado de fato já se encontra bastante fragilizada necessitando de um maior acolhimento por parte do Judiciário, já que o Estado falhou e não garantiu meios suficientes para que aquela mulher, esposa, mãe de família, pudesse ter uma vida digna sem sofrer o cerceamento de seus direitos fundamentais como por exemplo o direito à liberdade sexual e na maioria das vezes a perda do direito à vida. 

A sociedade de um modo geral não pode se contentar diante desta violência. Não necessariamente precisa ser mulher para lutar contra o abuso e as violações sofridas por nós mulheres, quer seja no ambiente doméstico/familiar, no ambiente de trabalho e nas ruas.

Ensinar as crianças o respeito e a conscientização de que ser mulher não significa sinônimo de fraqueza ou subordinação por parte da classe masculina, e que não existe sexo frágil ou sexo forte/dominador é uma das saídas sociais para mudar a realidade observada no presente trabalho.

O apoio estatal para as vítimas dos crimes passionais de modo geral e as vítimas de violência doméstica/familiar é mais um mecanismo para minimizar a crescente violência, visto que na maioria dos casos as vítimas escondem os abusos sofridos por não possuírem condições econômicas, psicológicas, suficientes para buscar uma nova vida sem abusos e com as garantias a elas inerentes.

A construção de centros de apoio e casas de acolhimento com o trabalho conjunto de profissionais na área da saúde como médicos psiquiatras e psicólogos, profissionais da pediatria para realizar o cuidado médico necessário aos filhos do casal protagonista desta barbárie social entre outros profissionais como a assistência social e também jurídica, é uma das formas de minimizar ou pelo menos evitar uma nova agressão para a vítima e por consequência lógica para seus filhos, quando estes existirem na relação.

6     CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crime passional está presente nas páginas de nossa história e este não seleciona suas vítimas por idade, raça, condição social ou intelectual. O crime passional é um ato covarde e premeditado realizado por um indivíduo próximo à vítima sem possibilitar chance de defesa por parte destas.

Desde os primórdios de nossa história se ouviu falar de grandes amores que acabaram em grandes tragédias. Tragédias estas algumas vezes romantizadas por nossa literatura, exemplo bastante citado é a criação do famoso escritor Shakespeare.

O autor em sua obra Otelo - no qual o personagem principal, dominado por um ciúme exacerbado, mata sua esposa, Desdêmona. Porém após o cometimento do delito, Otelo descobre que nunca foi traído por sua esposa e que os seus devaneios acabaram por ceifar inocentemente a vida de sua amada.

Não raro podemos encontrar “Otelos” em nossa sociedade atual, que matam suas esposas “Desdêmonas” embasados em uma simples suposição que poderiam estar sendo traídos.

Vivemos em uma sociedade que nos dias atuais as relações afetivas se fazem e se desfazem com muita facilidade, ficando a critério de cada indivíduo escolher com quem vai se relacionar e até quando esta relação durará. Porém, o que podemos perceber é que em alguns casos o namorado, o marido ou companheiro não respeitando a decisão de sua amada acaba por preferir matá-la do que aceitar o término da relação.

O homicida passional é egoísta, não pensa em sua família tão pouco em seus filhos. Este só se importa em “castigar” sua companheira em face da decisão tomada por esta de largá-lo. Ele na condição de “macho” não aceita tal decisão, ceifando assim o direito à vida da companheira e cerceando o direito fundamental dos próprios filhos por exemplo de terem um convívio com ambos os seus genitores.

Não podemos confundir o amor sublime e puro com sentimentos frios, mesquinhos e vis. Que assassinam todos os dias mães, esposas, companheiras.

Relações dominadas pelo ciúme, pela possessão sexual, pelo controle doentio, que tenta usar como pano de fundo desta relação doentia e abusiva uma paixão incontrolável.

É bastante clara a necessidade urgente desta mudança de conceitos e de comportamentos diante desta realidade explanada ao longo da presente pesquisa. Nossa Constituição Federal de 1988 é bastante clara quando elenca que todos são iguais sem que haja qualquer distinção entre homem e mulher.

Porém diante desta problemática observa-se ainda um machismo engessado pautado em pensamentos patriarcais que matam e cerceiam todos os dias direitos fundamentais inerentes a nós mulheres. A igualdade normativa necessariamente necessita vir acompanhada da igualdade material no momento da aplicação das normas ao caso concreto. Esse comportamento opressor precisa ser expurgado de nossa sociedade, e a mulher independente de sua condição sexual, financeira, educacional. Independentemente de sua cor, raça ou etnia merece o devido respeito, bem como a garantia efetiva de todos os seus direitos fundamentais, sem que haja uma predeterminação para que esses direitos sejam garantidos pelo Estado e respeitados pela sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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Sobre a autora
Licya Araujo Duarte

Graduada em Direito pela URCA, Especialista em Direito Penal e Processual Prático Contemporâneo pela UNISC. Aprovada no XXV Exame de Ordem.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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