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A lei penal e os "excluídos":

as meta-regras do rigor

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Resumo:


  • O texto aborda a tendência de classificar indivíduos de certos grupos sociais como criminosos potenciais, influenciando a aplicação desigual da lei penal, com base em valores ideológicos.

  • As meta-regras ideológicas, implícitas nas leis, resultam em uma dupla seletividade penal, afetando mais severamente os grupos que não se alinham aos valores dominantes, muitas vezes associados à pobreza ou a características étnicas.

  • O artigo analisa casos concretos e dados estatísticos que exemplificam a aplicação discriminatória do direito penal, reforçando a necessidade de um tratamento isonômico e justo perante a lei, independentemente do status social dos indivíduos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

6 O "pobre" visto como criminoso potencial

O primeiro traço identificador de um criminoso, consoante o estereótipo criado pela ideologia dominante, acaba por ser o fato de pertencer a um baixo status social, confirmando a existência de um criminoso etiológico, com sinais morfológicos que se enquadram no biotipo comum às classes mais pobres.

Essa flagrante rotulação de certos sujeitos como delinqüentes, não por aquilo que fazem, mas por suas características diversas do padrão determinado pela ideologia dominante, é elucidada por José Ricardo Ramalho na seguinte passagem:

O delinqüente é identificado pelo fato de ser favelado antes de sê-lo pelo ato de que é acusado. Na favela habita boa parte das populações pobres dos grandes centros urbanos e que de forma alguma é composta por delinqüentes. Não se pode negar que a maior parte dos presos procede de periferias, favelas, bairros pobres, mas a sutileza da argumentação está no fato de que isto não significa que haja uma relação necessária e natural entre ser favelado e ser delinqüente: a relação é social. Na sua grande maioria, os moradores das favelas não são delinqüentes mas são tratados enquanto tais pela polícia e pela justiça. [14]

Embora, de acordo com Alessandro Baratta [15], a criminologia contemporânea tenha tentado superar as teorias patológicas da criminalidade, caracterizadas por segmentar a sociedade em dois grupos de indivíduos: normais e criminosos, a idéia de um criminoso com sinais antropológicos de criminalidade está ainda longe de ser superada. O inconsciente da sociedade, de modo geral, ainda é demasiadamente imbuído de crenças acerca da existência do criminoso etiológico.

Nesse sentido, Thompson descreve a seguinte situação:

Pedindo a uma pessoa que descreva a figura de um delinqüente típico, teremos em função da resposta, o retrato preciso de um representante da classe social inferior, de tal sorte que se tende a estabelecer o intercâmbio entre pobreza e crime. A teoria lombrosiana não teve outro mérito senão dar cunho científico a esse sentimento do senso comum. [16]

Mesmo sem cometer qualquer delito, o indivíduo que integra os estratos sociais mais baixos é encarado, tanto pela sociedade quanto pelas instituições de aplicação do direito, como um ser dotado de periculosidade. Isso ocorre porque ele é um indivíduo desprovido das marcas exteriores daqueles valores relevantes para o pensamento dominante. Mesmo não tendo qualquer conduta contrária ao direito, ele inspira temor. Algo nele se confronta com os anseios fundados na ideologia hegemônica. Contra ele, surge, naturalmente, um mecanismo de rejeição. Ele acaba sendo visto como a encarnação da violência disseminada pela mídia. É o estereótipo do mal. O ser sem merecimento, que acaba sendo punido pelo que aparenta ser e não por aquilo que, efetivamente, fez. E, quando realmente faz, é punido com muito mais rigor.


7 Indivíduos normais X indivíduos criminosos

A segmentação dos indivíduos entre normais e criminosos deita suas raízes numa histórica tendência discriminatória contra certos grupos culturais, étnicos e sociais. Essa discriminação tem origem na formação das estruturas sociais. No Brasil, muitas das tendências segregadoras hoje relacionadas à pobreza tiveram sua origem na escravidão, que nada mais foi do que um exercício absurdo de dominação. A abolição da escravidão deu origem a uma classe pobre e carente de oportunidades. A impossibilidade de alcançar um melhor posicionamento econômico, em virtude da discriminação racial, deixou os negros, durante muito tempo, situados à margem da sociedade, fazendo com que, graças às circunstâncias de opressão social, eles fossem rotulados como potenciais criminosos pelas classes dominantes.

Mesmo hoje, não como há como negar que a pobreza no Brasil tem cor. Os negros, após viverem um longo período de tratamento desigual, ainda hoje, mesmo com a existência de alguns mecanismos sociopolíticos destinados a amenizar as desigualdades, sofrem por serem pobres, em sua maioria. E ser pobre é ser preterido em muitas situações. Por isso, os negros, por serem, em sua maioria, pobres, acabam sendo injustamente destinatários de maior rigor na aplicação da lei penal.

O posicionamento ideológico contrário aos grupos segregados é perceptível, de modo acentuado, nas instituições de aplicação do direito penal. Isso, em parte, se deve ao fato de que atuam num exercício de poder que se situa numa esfera muito próxima do cotidiano das classes menos favorecidas. A vida dos pobres, explica Thompson [17], é mais visível do que a dos não pobres, uma vez que os primeiros costumam se concentrar em espaços públicos como praças e terminais de ônibus, e isso faz com que a polícia esteja mais presente. Seus delitos, embora possam ser similares aos cometidos no âmbito dos estratos sociais mais elevados (geralmente fechados), normalmente acontecem nas ruas, em bares ou em outros espaços públicos, havendo, naturalmente, uma maior interferência da polícia, conforme discorre Agusto Thompson:

o crime será mais visível na medida em que ocorra num lugar com respeito ao qual a polícia dispõe de maior facilidade de acesso, tanto em termos de espaço, quanto de tempo (...) a eclosão de um delito nos lugares em causa gera grande probabilidade de ser percebida pela polícia, porque estará presente, ou muito próxima do local. [18]

O fato de os pobres viverem expostos faz com sejam a clientela cotidiana da polícia, criando uma falsa impressão de que o crime e a pobreza caminham lado a lado. O suposto perigo que o pobre representa faz com que sobre ele se lance todo o rigor possível na aplicação concreta do direito. Também o fato de serem reconhecidos como delinqüentes, consoante o senso comum (por força da imposição da ideologia dominante), tem um reflexo lógico: se são identificados como infratores, acabam por constituir, basicamente, a população carcerária, de modo a criar um círculo vicioso. Quem está encarcerado é pobre, e o pobre que está em liberdade é mais vulnerável à possibilidade do encarceramento.

Augusto Thompson [19] relata em sua obra dados muito representativos acerca da formação da população carcerária e como esses números são assimilados pelas classes hegemônicas:

Noventa e cinco por cento dos presos pertencem à classe social mais baixa. Desse modo, a criminologia tradicional infere a conclusão de que a maioria dos criminosos é pobre e, logo, a pobreza se apresenta como um traço característico da criminalidade. Essa inferência científica, recebe-a com entusiasmo a burguesia, uma vez que se casa à perfeição com a ideologia por ela esposada, a qual se estrutura basilarmente na teoria do contrato social: todas as pessoas são iguais perante a lei; por conseqüência, a todas são propiciadas oportunidades idênticas na vida; vencem (na visão capitalista vencer é sinônimo de enriquecer) as dotadas de melhores qualidades (princípio da meritocracia); logo, as melhores estão nas classes mais altas, as piores nas classes inferiores; o crime é algo mau em si, resultado, pois, da ação de pessoas más; daí nada mais lógico do que concluir que o crime é uma manifestação típica das classes baixas. (...) Como efeito da constatação de que a maioria dos presos está representada por gente miserável, a única conclusão a ser tirada, validamente, será: a pobreza é um traço característico do encarceramento.

Dessa passagem se conclui que há inúmeros fatores significativos a determinar que o pobre seja encarado como criminoso e que pague por esse rótulo sofrendo as sanções penais com mais rigor e com maior constância. Isso fica ainda mais evidente ao serem observados os dados estatísticos do Departamento Penitenciário do Paraná sobre o perfil dos presos no Estado, apresentados a seguir.

Escolaridade [20]

Grau de Escolaridade 2001 2002 2003 2004 2005
N.º N.º N.º N.º
Analfabeto 500 600 675 741 650
Alfabetizado 810 837 1121 933 1020
1º. Grau Incompleto 2726 3758 3790 4446 4424
1º. Grau Completo 330 576 606 796 805
2º. Grau Incompleto 267 405 435 602 601
2º. Grau Completo 179 269 334 393 387
Superior Incompleto 20 45 57 64 66
Superior Completo 21 35 32 83 86
TOTAL 4853 6525 7050 8058 8039
Fonte GAP/DEPEN – 1º trimestre 2005

Percentuais em ordem decrescente com base nos dados de 2005:

1º grau incompleto 55,03%
Alfabetizado 12,69%
1º grau completo 10,01%
Analfabeto 8,09%
2º grau incompleto 7,48%
2º grau completo 4,81%
Superior incompleto 0,82%
Superior completo 1,07%

Perfil Profissional [21]

`
PROFISSÕES DOS PRESOS 2001 2002 2003 2004 2005
N.º N.º N.º N.º N.º
Da Agricultura 741 906 783 808 880
Do Comércio 550 732 828 909 886
Da Construção Civil 1298 2057 2260 2799 2778
Da Mecânica 307 493 525 573 555
Serviços 1175 1599 1959 2033 2035
Da indústria 782 738 695 936 905
T O T A L 4853 6525 7050 8058 8039
Fonte GAP/DEPEN – 1º trimestre 2005

Percentuais em ordem decrescente com base nos dados de 2005:

Construção Civil 34,56%
Serviços 25,31%
Indústria 11,26%
Comércio 11,02%
Agricultura 10,95%
Mecânica 6,90%

Os dados apresentados indicam que o cidadão encarcerado, em geral, é de baixa escolaridade e tem como atividades laborais aquelas geralmente desempenhadas por representantes das classes sociais menos favorecidas, o que vem a confirmar que os delitos cometidos no âmbito da pobreza são mais freqüentemente punidos.

Abaixo, outras estatísticas do Departamento Penitenciário do Paraná:

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Perfil Criminal [22]

CÓDIGO 2001 2002 2003 2004 2005
TIPOS DE CRIME Art. N.º N.º N.º N.º N.º
TRÁFICO DE ENTORPECENTES 12 559 897 1198 1403 1422
USO DE ENTORPECENTES 16 201 244 297 233 235
HOMICÍDIO/ATENT.CONTRA VIDA 121 1070 1339 1342 1390 1579
LESÕES CORPORAIS 129 234 240 250 222 199
SEQUESTRO E CÁRC. PRIVADO 148 63 60 49 60 57
FURTO 155 1202 1524 1556 1538 1575
ROUBO 157 1832 2424 2817 3118 3160
LATROCÍNIO (Parágr. 3º) 157 486 543 548 722 749
EXTORSÃO/ EXT. QUALIF. PELA MORTE 158 51 70 65 59 71
EXTORSÃO MEDIANTE. SEQUESTRO 159 45 42 27 37 40
ESTELIONATO 171 165 168 185 135 160
RECEPTAÇÃO 180 98 161 170 139 157
ESTUPRO 213 356 438 395 405 396
CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL 214 199 232 236 261 279
COD. PENAL OUTROS ----- 793 1008 1114 1185 1396
Fonte GAP/DEPEN – 1º trimestre 2005

Percentuais em ordem decrescente com base nos dados de 2005:

Roubo 27,54%
Homicídio 13,76%
Furto 13,73%
Tráfico de entorpecentes 12,39%
Estupro/Crime contra a liberdade sexual 5,88%
Latrocínio 6,53%
Uso de entorpecentes 2,05%
Lesões corporais 1,73%
Estelionato 1,39%
Receptação 1,37%
Extorsão/Extorsão qualificada pela morte/Extorsão mediante seqüestro 0,97%
Seqüestro e cárcere privado 0,50%
Outros 12,17%

Os dados demonstram que os crimes que conduziram seus agentes à prisão foram predominantemente aqueles praticados contra o patrimônio: furtos, roubos e latrocínios, confirmando a idéia de Amilton Bueno de Carvalho, acima apresentada, de que o crime punido com mais freqüência é aquele geralmente praticado pelos menos favorecidos economicamente. Esse tipo de delito, em regra, consiste na agressão ao patrimônio de um sujeito de melhor status social por um de menor status social.

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Sobre a autora
Yvana Savedra de Andrade Barreiros

Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA), Especialista em Língua Portuguesa (PUCPR), Graduada em Direito (UnicenP), Graduada em Comunicação Social - Jornalismo (PUCPR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARREIROS, Yvana Savedra Andrade. A lei penal e os "excluídos":: as meta-regras do rigor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1123, 29 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8711. Acesso em: 23 dez. 2024.

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