A Reforma Tributária vem sendo debatida desde logo após a promulgação da Constituição de 88. E por que até hoje, após sucessivos projetos sendo apreciados pelo Congresso Nacional, e diante do clamor uníssono da classe empresarial e da comunidade acadêmica do país, não há sinais concretos de que ela venha a ser aprovada? Ao contrário, os sinais são, infelizmente, de que ela continuará sendo postergada.
O ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, ao encaminhar ao Congresso Nacional o seu projeto de reforma tributária, declarou que só um Einstein seria capaz de encontrar uma fórmula capaz de viabilizar uma reforma tributária que promova, ao mesmo tempo, aumento da Receita, e redução da carga tributária. Eis aí o impasse que vem inviabilizando a aprovação de uma Reforma Tributária minimamente razoável.
A questão que se coloca é: como seria possível alcançar, simultaneamente, esses dois objetivos. Como seria possível compatibilizar o objetivo de aumentar a arrecadação tributária com a redução da carga tributária, dois objetivos aparentemente incompatíveis.
Em princípio, vislumbram-se quatro objetivos básicos que devem nortear a Reforma Tributária ideal: a) criação de recursos para financiamento do setor público (aumento da arrecadação tributária); b) redução do percentual da carga tributária, em relação ao PIB; c) redução do número de tributos; d) simplificação do sistema tributário, dirigida principalmente ao setor privado.
Mesmo que não se leve em conta os efeitos decorrentes da pandemia do covid-19, é absolutamente certo que a crise fiscal por que atravessa o país é, basicamente, produto do modelo tributário instituído pela Constituição de 88 e da má gestão dos recursos gerados. Em assim sendo, essa crise fiscal se tornará cada vez mais aguda, enquanto não se alterar esse modelo, via Reforma Tributária, e se tornar efetiva a Reforma Administrativa, no tocante ao custeio da administração pública. Quanto a isso, estão todos de acordo. Há unanimidade nesse diagnóstico.
Pelo que se sabe, há, pelo menos, cinco ou seis projetos de reforma tributária sendo elaborados, ou em tramitação no Congresso Nacional (PECs 110/2019 e 45/2019), cujos conteúdos e diretrizes ainda não foram plenamente divulgados para conhecimento público, com exceção o do governo federal, que cria a “Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS)”,e o elaborado pelo ex-Secretário da Receita Federal (Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque) e anunciado pelo Ministro da Economia Paulo Guedes, no ano passado.
No entanto, pelo que se sabe, nenhum desses projetos de Reforma Tributária anteriormente mencionados contém a “fórmula”, de que, segundo Fernando Henrique Cardoso, só Einstein seria capaz de encontrar, ou seja, uma Reforma que promovesse, ao mesmo tempo, aumento da receita, e redução da carga tributária. E é exatamente por isso, por não ter sido encontrada, ainda, essa fórmula, que continuamos nesse permanente impasse. E, ao que tudo indica, isto ocorre porque nenhum dos projetos até aqui apresentados, está focado em corrigir a verdadeira causa do estrangulamento do sistema tributário. Esses projetos se limitam a tentar alcançar dois dos objetivos secundários da Reforma Tributária: a) redução do número de tributos; e b) simplificação do sistema tributário.
Para se alcançar os objetivos fundamentais da Reforma, no entanto, é preciso corrigir o foco maior da inconsistência e irracionalidade do atual sistema tributário, que, sem dúvida, é o ICMS e não os tributos federais, que parecem ser o objeto do projeto de Reforma Tributária que estava programado para ser apresentado pelo Governo federal, ainda neste semestre, bem como dos projetos em trâmite no Congresso Nacional(PEC 110/2019 e PEC 45/2019). Isto não implica dizer que não seja necessária e importante a reciclagem dos tributos federais, a simplificação e a redução do número deles, pois esses são, também, objetivos a serem alcançados pela Reforma Tributária. São importantes mas não são os fundamentais.
Vejamos, então, por que é o ICMS o foco da inconsistência e irracionalidade do atual sistema tributário, e, consequentemente, a causa do desarranjo fiscal que assola todos os entes federados.
O ICMS é, por definição constitucional, um imposto não cumulativo (C.F. Art. 155, § 2º, I). Ele adota um sistema sofisticado que, de certa forma, incorpora a mecânica do VAT (value added tax) ou IVA, como é chamado nos países de língua portuguesa e espanhola. Na realidade brasileira, no entanto, esse refinado sistema provou ser um tremendo fiasco do ponto-de-vista da arrecadação tributária, bem como da racionalidade de sua arrecadação. O ICMS, assim como o IVA, é, como foi dito, não-cumulativo, ou seja, compensa-se o que for devido em cada operação com o montante das operações anteriores. Assim, tributa-se, apenas, o valor que é agregado em cada operação. Sendo cobrado sobre o valor agregado em cada operação, o ICMS está presente em, praticamente, todo o processo produtivo, desde a aquisição de matéria prima até o consumo final do produto, criando uma onerosa e complicadíssima sistemática de tributação, de apuração e de controle fiscal. E pior, facilitando a sonegação fiscal que, como veremos adiante, é a grande responsável pela caótica situação fiscal dos Estados e indiretamente, dos Municípios e da União Federal.
Mas por que a fórmula que tornaria possível alcançar, simultaneamente, os objetivos fundamentais da Reforma Tributária: aumentar a arrecadação tributária e reduzir a carga tributária em relação ao PIB estaria centrada na reformulação do ICMS? A resposta vai ser encontrada nas considerações a seguir postas a debate a respeito do fenômeno da SONEGAÇÃO.
O primeiro ponto a considerar já é, por si só, suficiente para se ter uma ideia da grandeza do fenômeno da SONEGAÇÃO. Estima-se que o Brasil deixou de arrecadar, no ano passado, mais de R$ 600 bilhões por causa da sonegação de impostos, enquanto que a arrecadação tributária consolidada, de todos os Estados e do Distrito Federal, em 2019, relativamente ao ICMS, não passou de R$ 509,79 bilhões (valor/globo/2020/23/02). Ou seja, o total sonegado é superior ao total arrecadado, por todos os Estados e o Distrito Federal, a título de ICMS.
Estudo sobre sonegação fiscal do Brasil, publicado pelo SINDICATO DOS PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL (SINPROFAZ), tendo por base o exercício 2018, concluiu que “...a arrecadação tributária brasileira poderia se expandir em 23,1% caso fosse possível eliminar a evasão tributária cujo indicador médio para todos os tributos apontados neste trabalho foi da ordem de 7,7% do PIB...”. O referido estudo chega a uma conclusão estarrecedora. Ele afirma o seguinte:
“...Tomando-se em consideração esse último indicador para a sonegação, poder-se-ia afirmar que se não houvesse evasão, o peso da carga tributária poderia ser reduzido em quase 30% e ainda manter o mesmo nível de arrecadação.
Assim, se levarmos em conta o estudo do SINPROFAZ, é razoável concluir que, em não havendo sonegação ou reduzindo-a a um mínimo desprezível, ou seja, ampliando-se o universo tributável na magnitude do que é sonegado, será possível aumentar a arrecadação dos Estados, dos Municípios e, indiretamente, da União Federal, diminuindo-se a carga tributária.
A saída para a reforma tributária está, pois, em encontrar um modelo de tributo substitutivo do ICMS e de outros penduricalhos periféricos. Este novo modelo de tributo, substitutivo do ICMS, deverá gerar um ganho de receita para os Estados e Municípios, e, indiretamente, para a União e, ao mesmo tempo, simplificar profundamente a sistemática de tributação e de arrecadação, sem causar aumento da carga tributária, mas, ao contrário, diminuindo-a.
Seria isso possível? A solução sugerida pela Fipe, divulgada pelo "Manifesto dos Empresários", há mais de 20 anos, dá um indicativo de como isso pode se tornar realidade: bastaria substituir o moderno, complexo e ineficaz sistema de tributação do ICMS (valor agregado) pelo sistema de tributação direta sobre a venda de mercadorias ao consumidor final, no comércio de varejo.
Esse novo sistema seria inspirado no "Sales Tax", adotado pelos Estados norte-americanos, criando uma tributação única e exclusiva na ponta de consumo. O "Sales Tax” tem uma alíquota média inferior a 10%, variando de Estado para Estado. É um tributo que, apesar de sua simplicidade, existe há mais de cinquenta anos e cumpre a sua finalidade com absoluta eficácia.
A implantação do Imposto sobre Vendas ao Consumo acabaria com a chamada "guerra fiscal" entre os Estados e com uma série de outras aberrações geradas pelo ICMS, como, por exemplo, a exacerbada tributação sobre a energia elétrica e sobre combustíveis, que chega a ter alíquotas de 25% e 30%, enquanto a alíquota normal desse tributo, variável de Estado para Estado, fica entre 17 e 18%. A alíquota do novo tributo deveria ser única, comum a todos os Estados da Federação e em percentual significativamente inferior à do ICMS atual. Os Municípios teriam uma participação na arrecadação desse tributo, tal qual acontece atualmente com o ICMS.
Na prática, esse modelo de tributação funciona da seguinte maneira: tributa-se a uma alíquota determinada (10%, por exemplo) toda a venda de mercadorias efetivada ao consumidor final. O imposto será encargo exclusivamente do consumidor final. Assim, o consumidor, ao adquirir R$ 100,00 de mercadorias, pagará R$ 110,00, sendo que neste valor não estará embutido qualquer outro tributo, além dos 10% cobrados no ato da compra. O comerciante será mero agente arrecadador e, em tese, depositário dos valores cobrados dos consumidores, a título de imposto. Isto significa dizer que os produtos chegarão ao ponto de venda no comércio de varejo, sem que tenha havido a incidência de qualquer outro tributo nas diversas fases do ciclo produtivo.
Para alcançar este último objetivo, seria necessário, na Reforma Tributária que está sendo anunciada pelo Governo federal, extinguir o IPI, que é um tributo federal de competência da União Federal, também baseado no valor agregado.
A extinção do IPI é mais do que necessária e oportuna, pois trata-se de um tributo que se constitui, por sua natureza, num verdadeiro nonsense, pois tem sua base de incidência diretamente sobre a produção industrial, desestimulando-a ao invés de estimulá-la, como deve ser do interesse de qualquer nação civilizada.
Destaque-se que a tarefa de fiscalização de novo tributo será altamente facilitada pela redução das situações caracterizadoras do fato gerador do novo tributo, restringindo-a à venda no varejo. Por essa razão, na era da internet, será possível exercer uma fiscalização indireta, centrada na exigência de que cada ponto de venda ao consumidor tenha uma máquina emissora de cupom fiscal, diretamente conectada aos sistemas de arrecadação dos órgãos fazendários. Ou seja, a arrecadação do tributo será feita “online”, recolhendo-se o tributo diretamente, no exato momento em que é realizada a venda ao consumidor e emitido o cupom fiscal ou a nota fiscal. Com isso, o vendedor da mercadoria deixará de ter interesse em sonegar porquanto o ônus do tributo recairá sobre o consumidor final, que saberá com exatidão, quanto de imposto incidirá sobre o produto que estará sendo adquirido.
Uma das vantagens desse sistema de tributação é exatamente a sua função inibidora da sonegação e facilitadora da fiscalização. E é na inibição da sonegação de que trata o referido estudo do SINDICATO DOS PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL (SINPROFAZ), que se funda o embasamento fático para a formulação do projeto de criação do novo imposto.
Acredita-se, no entanto, que apenas essa mudança na forma de tributação do consumo, por si só, já produziria os efeitos desejados, vis-à-vis o atual sistema do ICMS. Evidentemente que o ganho seria substancialmente maior se o novo sistema de tributação incidente sobre o consumo final levasse em conta o fenômeno da sonegação tratado no estudo do SINPROFAZ anteriormente mencionado. Tudo, no entanto, a depender dos estudos de viabilidade a serem realizados pelos órgãos técnicos competentes.
Essa é, em síntese, a fórmula mágica que possibilitaria viabilizar a tão almejada Reforma Tributária, que governo após governo, nunca saí do forno.
Essa nova sistemática de tributação apresenta, entre outros, os seguintes pontos positivos:
a) desonera de tributação todo o processo produtivo, reduzindo substancialmente os custos de produção e, consequentemente, aumentando a competitividade dos produtos brasileiros em termos do comércio exterior, dando maior visibilidade na determinação do custo e do preço dos produtos;
b) identifica com clareza quem assume o ônus do tributo (o consumidor final);
c) simplifica, substancialmente, as atividades de apuração e de recolhimento do tributo;
d) reduz a burocracia estatal para a fiscalização do tributo e, consequentemente, o custo operacional da administração fazendária;
e) inibe a sonegação (o ônus do imposto é do consumidor);
f) diminui a carga tributária; e
g) aumenta substancialmente a arrecadação tributária.
É certo que o imposto sobre o consumo final pode parecer um retrocesso se comparado ao sofisticado sistema do valor agregado adotado pela maior parte dos países do chamado primeiro mundo e pelos parceiros do Mercosul. Mas a experiência brasileira de mais de quarenta anos com o ICMS não deixa dúvidas: mais cedo ou mais tarde, esse tributo vai ter de ser substituído porque já provou ser o fato gerador da falência dos Estados e, quiçá, do Brasil. Espera-se que não seja mais tarde demais.