SUMÁRIO
2 OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS..
2.1Sistema processual inquisitivo (ou inquisitório)
2.2 Sistema processual acusatório (ou adversarial)
2.3 Sistema processual misto (ou francês).
3 O SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO..
3.1 Breve histórico: as raízes inquisitoriais do Código de Processo Penal De 1941.
4 O CAMINHO DAS REFORMAS PONTUAIS AO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO
5.1 O projeto original (PL nº 822/19)
5.2 A Lei nº 13.964/19 e seus avanços.
5.3 Temos agora um sistema processual penal de bases acusatórias?..
6 O QUE PODE SER FEITO PARA UMA REFUNDAÇÃO DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO?
1 INTRODUÇÃO
As modificações das formas do processo penal ao longo do tempo sempre estiveram condicionadas a contextos históricos, políticos e culturais, ora servindo à ideologia punitiva, ora sendo meio democrático de proteção do indivíduo contra o arbítrio estatal. Segundo Lopes Jr. (2020), a lógica é de que a estrutura de um modelo processual penal é representada pelos elementos democráticos ou autoritários de determinada ordem constitucional, consubstanciados em um sistema processual penal, inquisitivo ou acusatório.
Assim deve ser porque a Constituição é a norma maior de qualquer ordenamento jurídico e, portanto, é o fundamento de validade de todas as demais normas (NUNES JUNIOR; FLÁVIO MARTINS ALVES, 2019, p. 162).
Na realidade brasileira, desde a redemocratização tem se tentado adaptar o processo penal à nova realidade democrática, que se choca com o Código de Processual Penal de 1941, herança de um passado autoritário. A Constituição da República de 1988 certamente representou um marco para o processo penal, vez que passou a tutelar o indivíduo de forma ampla contra os possíveis abusos do exercício do poder punitivo por parte do Estado brasileiro. Ademais, estruturou o Poder Judiciário (artigo 92 a 126) e prever o Ministério Público como órgão acusador, titular da ação penal pública (artigo 129, I), cuidando de tornar o processo penal verdadeiro instrumento de garantias constitucionais, preservando o julgador na posição se sujeito processual equidistante, pois não se envolverá com a atividade acusatória.
Entretanto, desde então o cenário político-cultural não tem se demonstrado favorável aos projetos legislativos que pretenderam a reestruturação e democratização da legislação processual pela infraconstitucional. Assim, o legislador tem optado pelo tortuoso caminho das reformas pontuais.
Recentemente, com o advento da Lei Federal nº 13.964/2019, popularmente conhecida como Pacote “Anticrime”, reascendeu-se o debate acerca da busca por um processo penal de bases democráticas e, por conseguinte, acusatórias. Isso se deve às profundas modificações pelas quais o projeto passou desde sua elaboração até a publicação do texto final, além do grande número de dispositivos legais modificados pela referida lei.
Mas o que mais tem chamado a atenção é a redação no novo artigo 3º-A, introduzido ao Código de Processo Penal, que, por fim, formaliza na legislação infraconstitucional o sistema processual acusatório, o mais adequado à nossa realidade constitucional, como o vigente em nosso país.
Embora a eficácia do mencionado dispositivo até o fechamento do presente trabalho permaneça suspensa (Liminar na Medida Cautelar nas ADI's nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, pelo Ministro Fux), ainda assim será objeto de análise em conjunto com os principais elementos da novel lei, em razão da estreita ligação que possui com os debates acerca do modelo processual penal brasileiro e os meios de reformá-lo.
Certamente a abordagem do tema é de grande valia para os campos jurídico e acadêmico, tendo em vista o quão atual são os debates sobre a questão, as polemicas que o cerca e as profundas mudanças que a Lei nº 13.964/19 pode representar para o processo penal.
O objetivo geral do presente estudo é avaliar os possíveis efeitos da lei em questão, e se efetivamente terá o poder democratizar o processo penal brasileiro, por meio de pesquisa bibliográfica, em especial a doutrina processual penal garantista, e de documentos legais acerca da temática desenvolvida.
Para tanto, com o auxílio do método indutivo e da pesquisa descritiva, se partirá da análise das inúmeras modificações processuais penais ao longo das últimas décadas, incluindo seus efeitos e grau de efetividade na evolução processual.
Inicialmente, se faz necessária a conceituação do que representa um sistema processual penal, dando abertura ao estudo e a comparação de cada um dos modelos arrolados pela doutrina processualista penal, com a exposição de suas respectivas características, conteúdo ideológico, fundamentos e origens históricas.
Por conseguinte, será desenvolvida a contextualização da situação do modelo processual penal brasileiro vigente, dividida em dois tópicos. O primeiro, tratará da comparação do teor ideológico do Código de Processo Penal de 1941 e da Constituição Federal de 1988, com o exame de suas respectivas origens e objetivos, bem como a apresentação do debate acerca do modelo adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. No segundo são tratadas as reformas fragmentadas, que tem sido o método empregado para aplicar as modificações e adaptações que até então ocorreram na legislação processual penal desde que o Código de Processo Penal entrou em vigor.
A partir das conclusões obtidas nas sessões anteriores, usando de uma abordagem qualitativa, será tratada e examina a minirreforma que o Pacote “Anticrime” buscou promover, com uma breve análise do projeto original, da tramitação legislativa e das principais inovações introduzidas. Em seguida, após as devidas análises, será possível verificar se de fato é possível reformulação do sistema processual penal a partir desta lei.
Por último, se discorrerá sucintamente acerca dos problemas encontrados na trajetória de reformas legislativas que buscaram adequar avançar na democratização do processo penal, seguida da exposição das opções apresentadas pela doutrina pátria.
2 OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
Sistema processual penal pode ser conceituado como o conjunto de regras e princípios constitucionais, resultante de uma conjuntura histórica e política, pelos quais se definem as diretrizes a serem seguidas na aplicação do direito penal a cada caso concreto (RANGEL; PAULO, 2019, n.p.).
De tal modo, os referidos aspectos definirão as bases do sistema processual penal de um determinado Estado. No Estado Democrático de Direito o processo penal deve se apresentar então como meio de preservação dos direitos fundamentais e garantia do indivíduo, uma vez que assim limitará o exercício do poder punitivo. Por outro lado, um processo penal que se afasta dos valores democráticos torna-se instrumento dos excessos do poder estatal.
Sob essa perspectiva, a doutrina enumera três espécies de sistemas processuais penas.
Por meio dos apontamentos a seguir expostos, há de se compreender que a posição assumida pelo magistrado e a atribuição da gestão da prova são fatores determinantes para caracterização e estruturação de cada sistema processual.
2.1 Sistema processual inquisitivo (ou inquisitório)
A origem do sistema inquisitório remonta ao século XII, quando é incorporado ao Direito Canônico e são criados os tribunais eclesiásticos, com o fim de julgar os delitos contra a fé cristã.
Com a ascensão do catolicismo como religião dominante, o modelo foi adotado por todas as monarquias europeias do século XVI ao XVIII (LIMA; RENATO BRASILEIRO DE, 2020, pg. 42), passando a gradualmente substituir o então predominante sistema acusatório particular.
De acordo com Coutinho (2009) a Igreja Católica temia perder sua hegemonia, e como resposta passou a combater com grande rigor aqueles que ousavam se opor à sua doutrina.
No que tange aos Estado da Europa, as transformações decorreram da insatisfação com atuação dos particulares quanto à repressão de condutas delituosas, momento em que o Estado reivindicou exclusivamente para si o poder de punir, chegando ao extremo de concentrar no Estado-juiz as funções de julgador, acusador e defensor.
Nesse sentido, o modelo inquisitório estrutura-se a partir do princípio inquisitivo, que consiste na concentração da atividade probatória na autoritária figura do juiz inquisidor, a quem é dado ilimitado poder instrutório. Deste modo, cabia ao magistrado a iniciativa investigatória, acusatória e probatória, para a formação de seu próprio convencimento. Nas palavras de Binder (2003) o juiz inquisidor acaba por ser “ineficaz como investigador, ou como guardião da Constituição”.
Pulveriza-se, assim, qualquer resquício de imparcialidade no processo penal inquisitivo.
Afinal, ao emitir um juízo de valor, decidindo pelo início da ação, o julgador já se encontra contaminado pela investigação criminal, estando psicologicamente ligado ao resultado da demanda (LIMA; RENATO BRASILEIRO DE, 2020, pg. 42). Nesse sentido, o processo penal inquisitivo era guiado pelo princípio da “verdade real”, de forma que o magistrado deveria buscar a verdadeira realidade dos fatos para maior efetividade da persecução penal, não se contentando apenas com a verdade processual (formal), formada pelas provas constantes dos autos.
O procedimento encontrava-se dividido em uma fase preliminar investigativa de coleta de prova, denominada inquisição geral, seguida da fase de processamento, chamada de inquisição especial, ambas sigilosas.
O sistema de valoração probatória adotado era o da prova tarifada, em que cada qual tinha um valor predeterminado em lei. A confissão era tida como a prova suprema, obtida forçadamente por meio da privação do réu do direito ao silêncio e do emprego de técnicas de tortura.
Neste contexto, o acusado era a principal fonte de obtenção de provas, tido como mero objeto da investigação e da procura pela verdade absoluta (PRADO; GERALDO, 2005, n.p) na medida em que lhe eram negadas as garantias processuais mais básicas, tais como o contraditório e a ampla defesa.
A lógica inquisitiva da busca pela “verdade real” e da infalibilidade dos líderes eclesiásticos, acabou por justificar o combate a qualquer custo da heresia, com a adoção das práticas mais sórdidas, pautadas por uma ilusória ideia de segurança do processo. Aliás, o mesmo raciocínio é aplicável à compreensão da repressão e tortura nos regimes ditatoriais do século XX, vez que igualmente usaram do mito do inimigo público e da existência de um risco iminente para justificar a prática de perseguições e abusos (LOPES JR.; AURY, 2020, p. 224-225).
O processo inquisitivo perdurou até o final do XVIII, passando a ser suprimido a partir do século seguinte, em consequência dos ideais iluministas da Revolução Francesa de valorização humana.
Próprio dos regimes totalitários, é certo que o sistema inquisitivo é totalmente conflitante com as garantias processuais e valores democráticos, razão pela qual no contemporâneo Estado Democrático de Direito, o qual tem como base a dignidade humana, se espera que processo penal se afaste das cruéis feições inquisitivas que outrora incorporava.
2.2 Sistema processual acusatório (ou adversarial)
Durante toda a Antiguidade grega e romana o processo acusatório, também chamado de adversarial, foi o vigente. Em consequência de algumas insatisfações, esse modelo foi paulatinamente substituído pelo inquisitorial a partir do século XIII, voltando a vigorar somente no século XVIII, em consonância com os postulados da Revolução Francesa.
Calcado em valores democráticos, é chamado acusatório por exigir que haja uma acusação formal para que o sujeito seja chamado a juízo, por meio da qual o fato imputado deve ser narrado com todas as suas circunstâncias (LIMA; RENATO BRASILEIRO DE, 2020, p. 43). Tal função, não mais concentrada nas mãos do magistrado, é então atribuída a um órgão acusador, o Ministério Público.
É aí então que se encontra um dos principais aspectos do processo acusatório, qual seja, o chamado actum trium personarum, consistente na separação entre as funções processuais de julgar, acusar e defender, distribuídas entres as figuras do autor, do juiz e do defensor. O afastamento do magistrado da tarefa de acusatória é requisito necessário do sistema adversarial, todavia, por si só, não é suficiente para caracterizá-lo.
Se faz necessário ter em vista que o modelo acusatório é fundado no princípio dispositivo (ou acusatório), que atribui exclusivamente às partes a gestão das provas, afastando o juiz da atividade instrutória (LOPES JR.; AURY, 2020, p. 229). É aí que se encontra sua força motriz.
O Estado-juiz é o órgão imparcial que aplica a norma ao caso concreto, atuando como garantidor da legalidade e, assim sendo, no sistema acusatório puro se mantém em posição de inércia, somente se manifestando quando provocado e se distanciando da iniciativa probatória (PRADO; GERALDO, 2005, n.p). A produção de provas então é atribuída ao autor, quanto à imputação penal e o pedido, e ao acusado, que exerce a defesa por meio de todos os seus direitos e garantias processuais.
Demais disso, quanto à valoração das provas, é adotado o sistema do livre convencimento, de modo que o juiz terá liberdade em sua apreciação, porém, estará limitado àquelas produzidas pelas partes e que constam dos autos do processo.
Aqui é abandonado o princípio da “verdade real”, vigente no processo inquisitivo, sendo substituído pela busca da verdade, a qual respeitada a realidade de que a verdade absoluta não pode ser alcançada.
O acusado passa a ser então sujeito de direitos, e não mais objeto do processo, tendo respeitadas suas garantias processuais e sua dignidade.
O modelo também exige a observância do princípio da oralidade, no qual há predominância da palavra falada, sendo condição de participação efetiva no processo, permitindo que se ouça o acusado, a vítima e as testemunhas. Prado (2005) menciona ainda que a forma oral obriga a defesa e a acusação se posicionem sobre as provas, bem como demonstrem conhecimento técnico e acerca da causa, sem limitar os debates e alegações à reiteração de manifestações escritas anteriores. Assim, é dificultada a troca de funções.
O processo penal acusatório-democrático é o oposto do sistema inquisitivo.
Em que pese as críticas que ainda se tecem acerca desse modelo, certo é que somente em sua estrutura processual é possível se resguardar todas as garantias processuais e, por conseguinte, a imparcialidade do julgador.
2.3 Sistema processual misto (ou francês)
Com o declínio do sistema processual inquisitivo, o ordenamento jurídico francês é o primeiro a adotar o sistema misto, também chamado de sistema francês ou acusatório formal, no Code d’Instruction Criminalle de 1808 (LIMA; RENATO BRASILEIRO DE, 2020, p. 45).
Caracteriza-se por ser bifásico, dividido entre um procedimento investigatório e o processo em si.
A primeira, é uma fase instrutória pré-processual e comandada pelo juiz. É marcadamente inquisitiva, pois é sigilosa, escrita e sem contraditório e ampla defesa ou outras garantias, por meio da qual objetiva-se objeto elementos de convicção da materialidade e autoria delitiva. (LIMA; RENATO BRASILEIRO DE, 2020, p. 45).
A segunda fase, é o processual penal regido por aspectos acusatórios, com a divisão das funções de acusador, defensor e julgador, sendo adotada a oralidade, publicidade, isonomia processual, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa.
Daí então surge a classificação de um sistema misto, pois acredita-se que o mesmo resulta da união de características do sistema inquisitivo e acusatório.
É apontado como o sistema processual penal mais utilizado no mundo atualmente.
Para Coutinho (2009) uma definição mais adequada do que significa ser um sistema misto não se limita à união entre sistema inquisitivo e sistema acusatório, pois alguns “sistemas regidos pelo princípio inquisitivo, têm agregados a si elementos provenientes do sistema acusatório [...] em sendo regidos pelo princípio dispositivo, têm agregados a si elementos provenientes do sistema inquisitório”. Nessa medida, o mesmo autor leciona que, sendo todos os sistemas mistos, estes iram se diferenciar e se definir conforme se adotem o princípio acusatório ou o princípio inquisitivo.
Portanto, a ideia de um sistema misto recebe algumas críticas, uma vez que tal definição ignora a questão central e fundante de um modelo processual penal: a gestão das provas.
Demais disso, uma vez que possibilita que o juiz seja mantido na colheita das provas, o termo serviria mais à negação de um em tais condições um processo penal é inquisitivo. Além disso, ocorreria uma inevitável contaminação inquisitiva, pois a existência de uma fase pré-processual geraria a predominância de tal modelo, já que os elementos obtidos nessa fase são levados à fase processual (JUNIOR; AURY LOPES, 2020, p. 229).