INSEMINAÇÃO CASEIRA E O RECONHECIMENTO DA DUPLA MATERNIDADE

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A evolução do direito das famílias é constante. Duas mães conseguiram na justiça o reconhecimento da maternidade concebida por inseminação caseira, cujo material genético foi fornecido por um doador anônimo

A sociedade evolui e com ela as adaptações e mudanças são obviamente necessárias. Num olhar generalista, a evolução não se trata apenas de adular o novo; a sobrevivência social, moral, intelectual e física dos seres depende dos avanços que a ciência nos apresenta diuturnamente.

Situações outrora inimagináveis vão sendo desconstituídas ou construídas e começam a ser aceitas pela sociedade até ganharem status de normalidade.

No campo jurídico, o direito das famílias talvez seja o que mais vem se transformando ao longo do tempo. As razões são inúmeras e incontestáveis. A sociedade evolui, as pessoas mudam, os comportamentos se revelam, os relacionamentos acontecem, os tabus se dissipam e a maneira “diferente” de se expor já não causa tanta estranheza ao coletivo, ao menos de forma explícita.

Neste contexto, a evolução legislativa sobre o tema “família” nem sempre acompanha o desenvolvimento acelerado da sociedade, e para que situações fáticas não fiquem sem as resoluções necessárias, todos os dias inúmeros casos concretos chegam ao Judiciário visando um pronunciamento sobre o assunto.

Quando se decide um caso de direito de família, a resolução tomada não atinge apenas os envolvidos diretamente na discussão, vai além, reflete em outras pessoas do próprio contexto familiar ou em pessoas que vivenciam situações idênticas ou parecidas com aquela discutida.

Tribunais de vanguarda quando se deparam com questões familiares inéditas ou de difícil resolução tendem a ganhar destaque quando pronunciam seus julgados, seja por polêmica, seja para aplausos. Entretanto, o que parece polêmico hoje, amanhã pode ser normal e vice-versa. Ser polêmico não quer dizer briga ou hostilidade e sim uma controvérsia de pensamentos que contribui para avanços no campo do conhecimento.

Partindo especificamente para um caso concreto que bateu às portas do Poder Judiciário Paulista, duas mães conseguiram o reconhecimento da maternidade concebida por inseminação caseira, cujo material genético foi fornecido por um doador anônimo e uma das mulheres acabou gerando a criança.

Segundo notícia veiculada no site do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) do dia 17/12/2020, cujo título é “Juiz destaca novo olhar no Direito das Famílias ao reconhecer dupla maternidade a partir de inseminação caseira”, o Diretor Nacional Ricardo Calderón afirma que a inseminação caseira vem crescendo dia a dia e o método de inseminar geralmente é com o uso de seringa, com algumas tentativas, até conseguir a fecundação.

Afirma ainda que não existe previsão legal do Conselho Federal de Medicina sobre a inseminação caseira. O que existe são normas que se destinam aos procedimentos de reprodução assistida, ou seja, com auxílio médico. Assim, pela ausência de regras, o tema vem sendo judicializado cada dia mais.

Quanto a mãe que gerou o filho, ou seja, a mãe biológica, o registro da criança será normal. E quanto a companheira que também deseja ser mãe?

"Essas são uma das principais questões que fazem com que casos de reprodução assistida venham desaguar no Poder Judiciário. A ausência de regulação faz com que os envolvidos que optem por essa medida tenham dificuldade no registro posterior da criança em nome do par que esteja à frente do procedimento, o que vem aparecendo com mais intensidade nas decisões judiciais sobre o tema", analisa Calderón.

Assim, voltando à decisão do Poder Judiciário Paulista acerca do tema, o juiz sentenciante deu uma verdadeira aula sobre afetividade, conceito de família, interesses de menores, enfim, foi uma decisão sensível à realidade enfrentada por muitas mulheres que desejam ter a maternidade compartilhada entre elas.

Destacamos parte da decisão que demonstra a sensibilidade do julgador: "O Direito é um fenômeno cultural histórico e, portanto, mutável. O fenômeno jurídico está sujeito à mutabilidade de conceitos sociais e necessita estar antenado às alterações dos costumes e ditames morais. Nesse sentido, o conceito de paternidade ou de maternidade, atualmente, não se relaciona exclusivamente com a questão sexual heterodoxa".

Sobre o direito das famílias, destacou: "é visto cada vez mais com os olhos do afeto e cada vez menos sob o manto da, por vezes, fria letra da lei ou, in casu, da gélida ausência dela". O Juiz observou que as mulheres/mães nada mais desejam do que formar "uma família amorosa, afetuosa e feliz".

Com isso, esse casal homoafetivo conseguiu registrar o filho com dupla maternidade, ou seja, no registro de nascimento da criança consta duas mães. Diversos aspectos foram observados, dentre eles a dignidade do recém-nascido, proteção das famílias homoafetivas e dignidade da pessoa humana.

O “destaque” do caso é que o CNJ já havia editado regramento sobre reprodução assistida e o caso em voga trata-se de inseminação caseira (sem assistência médica). O tema atenta também ao fato de que não pode haver discriminação social por falta de recursos financeiros.

Não podemos olvidar que a assistência médica para a reprodução humana demanda menos discussões jurídicas dado o formalismo do ato. Entretanto, a desassistência médica no caso julgado se deu por questões financeiras e o órgão julgador permitiu o registro de duas mães lastreado em provas existentes nos autos que deram guarida a pretensão delas. Aqui temos um julgamento também de cunho social.

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O tema da reprodução desassistida requer minuciosa atenção na análise de cada caso que bate às portas do Judiciário porque a informalidade pode gerar conflitos futuros, como por exemplo, o doador do material genético reivindicar a paternidade posteriormente.

O direito das famílias é dinâmico. Conceito de entidades familiares vão surgindo com o passar dos dias. Novas relações vão aparecendo, situações são criadas, enfim, os debates e a cautela no tratamento das relações entre as pessoas são inerentes da própria condição social humana porque envolve sentimento, privacidade, intimidade, dignidade. Discutir o direito das famílias é e sempre será relevante na construção de uma sociedade equilibrada, sólida, íntegra e que respeita o seu semelhante.

Sobre o autor
Marcelo Bacchi Corrêa da Costa

Advogado com 23 anos de experiência. Atua na cidade de Campo Grande/MS e região. Pós graduado em Direito Público e em Ciências Penais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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