Requisição administrativa de vacinas pela União: o que diz a Constituição e o entendimento do Supremo Tribunal Federal

26/12/2020 às 16:59

Resumo:


  • A União pretende requisitar vacinas compradas por Estados e Municípios para imunizar suas populações.

  • A Constituição Federal não permite que a União requisite vacinas adquiridas por outros entes federados, pois a requisição administrativa só pode ser feita sobre propriedade particular.

  • Somente em situações de estado de defesa ou estado de sítio a União pode requisitar bens ou serviços públicos, conforme autorizado pela Constituição.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Requisição Administrativa. Bens Públicos. Inconstitucionalidade. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.

Foi noticiada, aos 11 dias do mês de dezembro de 2020, a intenção da União em requisitar vacinas compradas por Estados e Municípios que serão utilizadas para imunizar a população destes entes federados.[1]    

O fato foi corroborado pelo Governador do Estado de Goiás[2], Ronaldo Caiado (DEM), que tentou justificar a medida argumentando o seguinte:

Todas as vacinas indiscutivelmente requisitadas pelo governo federal e distribuídas igualitariamente a todos os estados da federação. Já é prerrogativa dele, isso é inerente ao cargo de ministro da Saúde.   

Mas, o que diz a Constituição da República? É possível o Governo Federal (através do Ministério da Saúde) requisitar vacinas adquiridas por Estados e Municípios?

A resposta é negativa, a União não pode requisitar vacinas adquiridas por outros entes federados, porquanto o instituto da requisição administrativa só pode ter por objeto a propriedade particular.

Inicialmente, é preponderante tecer alguns comentários acerca do instituto da requisição administrativa que é uma intervenção do Estado na propriedade na modalidade restritiva, ou seja, o Estado “impõe restrições e condicionamento ao uso da propriedade pelo terceiro, sem, contudo, retirar-lhe o direito de propriedade.”[3]   

O instituto da requisição administrativa encontra seu fundamento na Constituição (art. 5º, XXV) que autoriza a autoridade competente, no caso de iminente perigo público, usar a propriedade particular, assegurada ao proprietário a devida indenização posterior, caso haja dano.

A regra constitucional que prevê a requisição administrativa é clara acerca de seu objeto, qual seja: propriedade particular; esta deve ser interpretada em sentido amplo e abrange os bens (móveis e imóveis) e os serviços, mas nunca bens públicos (bens de uso comum do povo, bens de uso especial ou bens dominicais).

O Supremo Tribunal Federal, certa feita, decidiu pela inadmissibilidade da requisição de bens municipais pela União em situação de normalidade institucional, sem a decretação de Estado de Defesa ou Estado de Sítio.[4]

Noutra ocasião, o ex-Ministro da Suprema Corte Celso de Mello deferiu tutela provisória de urgência, no bojo da ação civil originária nº 3.385 MA, determinando que a União não pratique quaisquer atos requisitórios sobre respiradores que foram adquiridos pelo Estado do Maranhã, citamos, por considera-lo sobremodo relevante para compreensão do tema, o seguinte trecho da decisão interlocutória:

Vê-se, desse modo, que não se revelava lícito à União Federal, porque ainda não instaurado qualquer dos sistemas constitucionais de crise (estado de defesa e/ou estado de sítio), e analisada a questão sob uma perspectiva de ordem estritamente constitucional, promover a requisição de bens pertencentes ao Estado do Maranhão, que se insurge, por isso mesmo, contra o ato, emanado do Departamento de Logística em Saúde do Ministério da Saúde, que requisitou à empresa Intermed Equipamento Médico Hospitalar Ltda., ora litisconsorte passiva, “a totalidade dos bens já produzidos e disponíveis a pronta entrega, bem como a totalidade dos bens cuja produção se encerre nos próximos 180 dias”, não obstante mencionado ato requisitório tenha sido praticado em data posterior à aquisição, pelo Estado autor, dos ventiladores pulmonares objeto da presente ação ordinária.[5]  

  

Transparece-nos que só é permitido (leia-se permitido pela Constituição) à União requisitar bens ou serviços públicos nas hipóteses de estado de defesa ou estado de sítio, conforme autorizam os artigos 136, § 1º, II e 139, VII, da CRFB/1988.

Em conclusão, defendemos que eventuais requisições de vacinas que pertençam a Estados e Municípios pela União, fora das hipóteses de estado de defesa ou estado de sítio, são inconstitucionais, porquanto viola regra prevista no artigo 5º, XXV, da Constituição Federal.  


[1]Governo prepara medida para requisitar vacina comprada por estado e município. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/12/11/governo-prepara-medida-para-requisitar-vacina-comprada-por-estado-e-municipio. Acesso em: 26-12-2020.  

[2]Caiado: Governo não precisa de MP e 'indiscutivelmente' vai requisitar vacinas. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/12/11/caiado-governo-nao-precisa-de-mp-e-indiscutivelmente-vai-requisitar-vacinas. Acesso em: 26-10-2020.   

[3]CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. – 6. ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : JusPodivm, 2019, p. 1026.  

[4]BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS nº 25295 DF. Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 20/04/2005, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-117 DIVULG 04-10-2007 PUBLIC 05-10-2007 DJ 05-10-2007.  

[5]BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ACO nº 3.385 MA. Relator: Min. Celso de Mello, Data de Julgamento: 20/04/2020, Data de Publicação: DJe-099 24/04/2020.    

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Sobre o autor
Marcelo Cheli de Lima

Atualmente é aluno pesquisador da USP, monitor das disciplinas Direito da Dívida Pública e Orçamentos Públicos do curso de graduação em Direito (USP), Advogado (Cheli - Advocacia e Consultoria), Procurador Jurídico Municipal, ex-membro do Conselho Municipal da Pessoa Idosa, ex-membro do Conselho Municipal de Gestão Documental, ex-membro da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), mestrando em Direito Financeiro (USP) pós graduando em Direito e Economia pela Unicamp e em Direito Tributário e Aduaneiro pela PUC Minas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Tributário, Financeiro, Econômico, Administrativo e Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em análise de impacto regulatório e análise econômica do Direito. Exerceu os seguintes cargos e empregos públicos: Soldado Temporário da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Agente de apoio sócio-educativo da Fundação Casa, Agente de Leitura e Fiscalização SANASA e Oficial Administrativo da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Oficial Administrativo do Conselho Regional de Corretores Imobiliários - CRECI. Foi estagiário na Defensoria Pública do Estado de São Paulo (2º lugar no processo seletivo), Tribunal Regional do Trabalho (1º lugar no processo seletivo) e na Procuradoria Regional do Trabalho (1º lugar no processo seletivo).

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