Problemas da área de Inteligência.

02/01/2021 às 10:52
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A Atividade de Inteligência pode apresentar problemas nas áreas operacional, tática e estratégica. Cabe ao gestor da Inteligência identificar algumas destas falhas e corrigi-las para que a missão de subsidiar decisões não seja prejudicada.

Introdução

 

A Inteligência é a atividade que colhe informações, filtra tais informações, submete as mesmas a algumas análises e produz conhecimento. Lembre-se que “a atividade de Inteligência está ligada à decisão. O administrador, o gestor, aquele que tem a obrigação de conduzir os destinos de uma organização está constantemente compelido a decidir” (ESPUNY, 2018).

No Brasil há atividade de Inteligência tanto na área pública quanto na área privada. Na área pública, a organização federal que coordena a Atividade de Inteligência de forma sistêmica é a Agência Brasileira de Inteligência - ABIN. Nos Estados da federação pode haver atividade de Inteligência nos respectivos órgãos estatais, em especial, nas polícias civil e militar. Há prefeituras que possuem também atividade de Inteligência em seus órgãos de controle ou nas guardas civis municipais.

Coordenadas pela ABIN,  há três principais vertentes de Inteligência: a Inteligência de Estado, a Inteligência de Segurança Pública e a Inteligência de Defesa.

A Inteligência de Estado tem por objetivo assessorar as decisões da presidência da República; a Inteligência de Segurança Pública busca produzir conhecimento e subsidiar ações de enfrentamento ao crime organizado e ações em geral das polícias judiciária e preventiva; já a Inteligência de Defesa busca subsidiar ações de defesa do estado brasileiro.

A lei federal nº9883, de 7 de dezembro de 1999 instituiu o Sistema Brasileiro de Inteligência - SISBIN e criou a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN. A ABIN é o órgão central da Inteligência brasileira (BRASIL, 1999).

O Sistema Brasileiro de Inteligência desde a sua criação até os dias atuais foi agregando órgãos das mais diferentes esferas federais. Atualmente possui 42 órgãos: “Cada órgão do SISBIN atua na obtenção e compartilhamento de informações no âmbito de sua área de competência e auxilia na produção conjunta de conhecimentos de Inteligência” (ABIN, 2020).

O trabalho da Inteligência está centrado na busca de dados e informações, cuja finalidade é subsidiar a produção de conhecimentos. Em tese, pode-se afirmar que algumas atividades de Inteligência são bem demarcadas: há aqueles que buscam dados e informações Há os que produzem o conhecimento, através de análises pertinentes dos dados e informações obtidos. E, há também, o responsável geral pelo setor, departamento, diretoria ou unidade de Inteligência.

É inegável a importância da Atividade de Inteligência tanto na área pública quanto privada. Contudo, ainda há ideias errôneas a respeito desta atividade:

A atividade de inteligência sempre foi permeada de certo grau de mistério: os filmes de Hollywood, com seus famosos espiões, quase super-heróis, mostram peripécias de setores ultrassecretos, que trabalham para os níveis estratégicos das organizações (normalmente, governos!) e as pessoas que ali trabalham são sobre-humanas, com poderes especiais! Ledo engano! A atividade de inteligência é baseada numa metodologia bastante organizada, deve ser desenvolvida por pessoas pacientes e estudiosas e o grande objetivo é subsidiar decisões importantes na organização (tanto públicas, quanto privadas!). Antes praticada tão somente por governos, atualmente inteligência como atividade ligada à gestão pode ser praticada por qualquer organização. E mais: as últimas conquistas na área da tecnologia da informação, como o big data, por exemplo, tornam a atividade de inteligência perfeitamente possível para organizações de grande, médio ou pequeno porte (ESPUNY, 2020).

Portanto, aqueles que pretendem fazer Inteligência e acreditam que terão uma vida hollywoodiana terão várias decepções: a atividade demanda muita pesquisa, metodologia pertinente e várias análises que possam subsidiar aos que decidem. Além das ideias irreais que muitos fazem da atividade, ainda há vários problemas operacionais, táticos e estratégicos.

Problemas da Atividade de Inteligência.

Observando-se a clássica divisão das atividades nas citadas áreas operacional, tática e estratégica é muito comum observar-se que um problema tipicamente operacional pode influenciar decisivamente no nível estratégico da organização. Por exemplo, um funcionário da área de produção operando uma carga explosiva sem os devidos cuidados e causando um incidente com os explosivos, pode manchar a reputação da empresa para sempre e, até, determinar o encerramento de suas atividades, conforme a dimensão do evento crítico.

Na área da Inteligência, um caso clássico que reflete essa realidade ficou conhecido na literatura mundial como Curveball: em síntese, um falso agente secreto iraquiano conseguiu convencer a Inteligência alemã de que havia fábricas de armas de destruição em massa no território iraquiano. Esta informação chegou às agências de Inteligência americanas, especialmente na  Defense Intelligence Agency - DIA e na Central Intelligence Agency - CIA. Esta informação foi checada com os meios disponíveis pela inteligência americana: por exemplo, a varrição por satélites feita com esta finalidade nada encontrou. O jornalista Bob Drogin rastreou e descreveu em seu livro várias destas operações para confirmar o que o suposto agente iraquiano havia informado para a o Serviço Federal de Informação da Alemanha – BND (DROGIN, 2008, p.128-131). Contudo, um argumento foi fundamental para que as agências de Inteligência patrocinassem a guerra, que depois, foi considerada como motivada por falsas razões: os iraquianos haviam construído fábricas no interior de caminhões, dificilmente rastreáveis e que podiam facilmente se deslocar, em caso de perigo (DROGIN, 2008, p.62-66). Em 05 de fevereiro de 2003, o então secretário de Estado americano, Colin Powell, fez um discurso de ampla repercussão no Conselho de Segurança da ONU (AGÊNCIA ESTADO, 2003). Logo depois, em 20 de março de 2003, seria iniciada a Guerra do Iraque, que perdurou até 15 de dezembro de 2011. Um dos aspectos mais comentados a respeito deste evento é que nenhuma fábrica de destruição em massa foi encontrada no Iraque.

Apesar de várias teorias que afirmam que as supostas armas químicas seriam meramente uma desculpa para que a invasão ao Iraque fosse processada, o caso ganhou repercussão mundial, além do público restrito de profissionais de Inteligência. Se fosse apenas uma “desculpa” para a guerra, não seria necessário expor de forma intensa agências tradicionais de Inteligência, tanto da Alemanha, como dos Estados Unidos. O que parece que realmente ocorreu foi uma sucessão de falhas dos operadores de Inteligência.

Em apertada síntese:

  1. Falha nos levantamentos de dados e informações: todos os relatos apontam que o suposto agente secreto iraquiano foi o único informante das supostas fábricas químicas de destruição em massa. É tradicional na área de Inteligência que confiar numa única fonte é sempre arriscado;
  2. Especialistas da área atribuem falhas na análise de todo o contexto que gerou a motivação para a guerra (JERVIS, 2010, p.124).

Além destas falhas da área operacional e tática, pode-se, também, enfatizar a falha estratégica: será que o Estado americano foi norteado corretamente a respeito do conhecimento produzido com os dados e informações do contexto apresentado? Será que a decisão foi tomada baseada na incerteza que os dados certamente teriam gerado ou foram tomadas por uma informação de convencimento por parte da Inteligência?  Seja uma vertente ou outra, certamente foi uma falha de nível estratégico.

As falhas de Inteligência muitas vezes são geradas pela falta de uma análise adequada. Os analistas acabam não tendo o tempo necessário para aplicar as ferramentas adequadas (nos dados e informações coletadas) e, por fim, produzir o conhecimento pertinente a partir do rigoroso exercício da lógica. Muitas vezes, o volume de trabalho do analista é substituído pelos softwares que analisam vínculos e emitem relatórios.

Um dos problemas frequentes está no uso das informações condensadas e pré-selecionadas por sistemas digitais (como programas específicos de análise de vínculos) como resultado de análise de Inteligência. A análise enseja a produção de conhecimento. O analista utiliza ferramentas de gestão e qualidade para produzir o conhecimento pertinente.

Em algumas situações, o fluxo de dados e informações é tão intenso e frequente que suprime a atuação do analista:

A enxurrada de informações pode manter os analistas ocupados apenas lendo as informações que chegam, sem produzir nenhuma inteligência. A inteligência processada é primeiramente produzida antes dos analistas. Diariamente, eles olham para as informações provenientes de diferentes fontes. Naturalmente, as capacidades analíticas muitas vezes ficam para trás das capacidades de coleta e processamento (TEKIN, 2016, p.9).

O trabalho do analista tem que ser valorizado, seja pela chefia da unidade de Inteligência, seja pelos níveis estratégicos mais elevados da instituição. Neste sentido, muitos têm uma ideia equivocada sobre o trabalho de Inteligência: confundem informação com a produção de conhecimento. A informação pode ser parcial, pode ser inverídica, pode ser fabricada para gerar um determinado efeito... Enfim, dados e informações muitas vezes são utilizados de forma política como se fossem frutos legítimos da atividade de Inteligência.

Na realidade, o que os chefes necessitam para apoiar a tomada de decisão é de Inteligência e não de informação, pois o método para a produção de conhecimentos é o conjunto sistematizado de procedimentos realizados pelo analista, fundamentados na metodologia científica e no pensamento lógico, visando produzir um conhecimento objetivo, preciso e oportuno. As organizações que conseguem transformar dados e informações em Inteligência, e os protege da ação adversa, são as que ganham a competição. Isso é a síntese da Inteligência Competitiva (MEDEIROS, 2020).

A compreensão e o reconhecimento desta característica da atividade de Inteligência talvez prevenissem boa parte dos erros de Inteligência.

Alguns autores discorrem a respeito da deficiência de formação tanto dos integrantes da área de Inteligência como de usuários da mesma: há de se conhecer os fundamentos e as bases da Gestão do Conhecimento. Esta deficiência impediria uma correta valoração de certos dados e informações, além do efetivo gerenciamento dos mesmos, inclusive, de uma análise mais bem fundamentada:

Falhas de inteligência de terrorismo, como os ataques de 11 de setembro e outros, podem ser atribuídas diretamente às deficiências de Gestão do Conhecimento (KM) das Comunidades de Inteligência dos EUA (IC). Todas essas falhas de inteligência compartilham um elemento comum - o conhecimento necessário para descobrir essas tramas já estava presente na comunidade de contraterrorismo, mas a ameaça não pôde ser combatida porque as informações não foram gerenciadas de forma eficaz. Isso é indicativo de um IC norte-americano complicado e ineficaz que, para todos os seus muitos componentes, tem uma soma menor do que as partes (JARVENSIVU, 2011).

O autor da citação acima, Jarvensivu, que faz referência a outro episódio, o ataque às torres gêmeas, nos EUA, em 11 de setembro de 2001, também considerado consequência de erros da Inteligência. Este mesmo autor ainda estabelece a importância da gestão do conhecimento como responsável de forma sistêmica pelas falhas da Inteligência: “A incapacidade de gerenciar o conhecimento tem muitas consequências dentro da Comunidade de Inteligência (IC) e as mais trágicas delas são frequentemente rotuladas como falhas de inteligência” (JARVENSIVU, 2011).

Complementando o conceito acima, acerca da gestão do conhecimento, é importante lembrar:

Ligada à Gestão de Conhecimento e fruto da gigantesca quantidade de dados atualmente disponíveis, as Atividades de Inteligências praticadas contemporaneamente tem o objetivo principal de filtrar parte deste oceano de dados, canalizá-lo para os interesses fundamentais da organização e produzir o conhecimento capaz de subsidiar decisões estratégicas. Evidentemente que estes mesmos princípios podem ser aplicados para objetivos menos abrangentes, como aqueles exarados dos níveis tático e/ou operacional das organizações. Mas, o mais importante, é que tal processo se constitui em bases técnicas, apropriadas para a finalidade e que exigem treinamento qualificado para o seu bom desempenho (ESPUNY, 2018).

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Outro ponto de relevância é aquele que busca combater aqueles que se consideram “donos” da informação e do conhecimento. Muitas vezes aqueles que lideram setores de Inteligência ou são os responsáveis pelas organizações que os patrocinam acreditam que podem dispor do conhecimento de forma política (e muitas vezes irresponsável). Neste contexto, utilizam informações ou conhecimento fragmentado para obter favorecimentos políticos (ou de outros matizes!). O oposto disso é trabalhar para que a área da Inteligência cumpra efetivamente a sua missão, ou seja, que não retransmita meramente informações recolhidas pelas fontes abertas ou pelo pessoal operacional, mas que haja a competente interpretação para a efetiva compreensão do ocorrido ou do que está ocorrendo, para a projeção no futuro (PETERS, 1987).

Para finalizar, a melhoria da prática da Inteligência poderia ser estabelecida com cursos da área que enfatizassem também a gestão do conhecimento de forma ampla, para que tanto os agentes (responsáveis pela obtenção dos dados e informações), como os analistas possam desenvolver uma visão sistêmica da atividade.

Referências:

ABIN. Agência Brasileira de Inteligência. SISBIN. Composição. Publicado em 22/09/2020. Disponível: https://www.gov.br/abin/pt-br/assuntos/sisbin/composicao-do-sisbin. Acesso: 01 jan. 2021.

AGÊNCIA ESTADO. Veja os principais pontos do discurso de Powell. Publicado em 05 de fevereiro de 2003. Disponível: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,veja-os-principais-pontos-do-discurso-de-powell,20030205p25119. Acesso: 02 jan. 2021.

BRASIL. Legislação. Lei nº9883, de 7 de dezembro de 1999. Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, e dá outras providências. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9883.htm. Acesso: 01 jan.2020.

DROGIN, B. Curveball: espionagem, intrigas e as informações que provocaram a guerra. São Paulo: Novo Conceito, 2008.

ESPUNY, H. G. Influências das redes de poder nas atividades de inteligência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3988, 2 jun. 2014. Disponível: https://jus.com.br/artigos/29141. Acesso: 01 jan. 2021.

ESPUNY, H. G. O que aconteceu com a inteligência de segurança pública do Rio de Janeiro?  Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5375, 20 mar. 2018. Disponível: https://jus.com.br/artigos/64680. Acesso: 07 jul. 2019.

ESPUNY, H. G. A Atividade de Inteligência na Gerência Moderna, p. 210 -221. In: Gestão 4.0 em Tempos de Disrupção. São Paulo: Blucher, 2020.

JARVENSIVU, J.J. Knowing What We Knew: Intelligence Failures and Knowledge Management. U.S. Army War College, Carlisle Barracks, PA, USAWC CLASS OF 2011. Disponível: https://apps.dtic.mil/dtic/tr/fulltext/u2/a560094.pdf. Acesso: 01 jan. 2021.

JERVIS, R. Why Intelligence Fails. Lessons from the Iranian Revolution and the Iraq War. Cornell University Press, EUA, 2010.

MEDEIROS, F. J. F. de. A Atividade de Inteligência no Mundo Atual. Publicado em 16/04/2020, no sítio Administradores. Disponível: https://administradores.com.br/artigos/a-atividade-de-intelig%C3%AAncia-no-mundo-atual. Acesso: 01 jan. 2021.

PETERS, R. Intelligence Failures and the Limits of Logic. U.S. Army War College,ATTN: Parameters ,122 Forbes Avenue , Carlisle, PA, 1987. Disponível: https://apps.dtic.mil/sti/pdfs/ADA516634.pdf. Acesso: 01 jan.2021.

TEKIN, Muhammet. New Perspectives on Intelligence Collection and Processing. Naval Postgraduate School Monterey, California Thesis. June 2016.  Thesis Advisor: Roberto Szechtman. Second Reader: Michael Atkinson. Disponível: https://apps.dtic.mil/sti/pdfs/AD1026838.pdf. Acesso 01 jan.2021.

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Sobre o autor
Herbert Gonçalves Espuny

Doutor pela Universidade Paulista - UNIP, com pesquisa específica na área de Inteligência. Mestre na área interdisciplinar Adolescente em Conflito com a Lei, pela Universidade Bandeirante de São Paulo - UNIBAN. Administrador, registrado no CRA-SP. Bacharel em Direito. Corregedor, na Controladoria Geral da Administração, Governo do Estado de São Paulo. Professor universitário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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