Combinação de Leis Penais e o caso da Lei de Drogas

Análise do princípio da separação de funções estatais, da competência privativa da união e do entendimento jurisprudencial

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06/01/2021 às 14:42
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Este artigo realiza uma análise da combinação de leis penais à luz do princípio da separação de funções estatais, da competência exclusiva do Poder Legislativo para legislar sobre matéria penal, além do entendimento jurisprudencial e doutrinário.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Análise dos Princípios Penais. 2.1. Princípio da Legalidade. 2.2. Princípio da Irretroatividade da Lei Penal Mais Gravosa. 2.3. Princípio da Retroatividade da Lei Penal Mais Benéfica. 3. Entendimentos Doutrinários. 3.1. Doutrina Minoritária ou Moderna. 3.2. Doutrina Majoritária ou Clássica. 4. Princípio da Separação de Funções Estatais. 4.1. Sistema de Freios e Contrapesos. 4.2. Previsão Constitucional. 5. Competência para Legislar Matéria Penal. 6. Anteprojeto de Código Penal (PLS Nº 236/2012). 7. Combinação de Leis Penais no Caso da Lei de Drogas. 8. Entendimento Jurisprudencial e a Inviabilidade da Combinação de Leis Penais. 9 Conclusão. 10. Referências.

 

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre o tema da combinação de leis penais sob uma ótica legislativa, analisando-os com base nos princípios penais (princípio da legalidade, princípio da retroatividade benéfica penal e princípio da irretroatividade da lei penal). Além de trazer os posicionamentos doutrinários (majoritário e minoritário) a respeito da questão e as disposições constitucionais concernentes ao assunto, bem como abordar a competência privativa da União para legislar sobre o tema e abordar sobre a separação de funções (Executivo, Legislativo e Judiciário). Assim, o artigo esclarece a mudança ocorrida no Anteprojeto de Código Penal (Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012) e o entendimento jurisprudencial sobre o assunto, mais especificamente sobre o RE nº 600.817/MS. Para tanto, o artigo foi desenvolvido mediante pesquisas bibliográficas, como leis e doutrinas, as quais permitiram o embasamento legal e teórico para se debater o tema. Além disso, o resultado obtido foi um artigo que descreve o fenômeno da combinação de leis penais nos tribunais brasileiros, o qual é analisado por uma perspectiva constitucional e legislativa. Tem-se, ainda, como intuito, verificar se, ao exercer a combinação de leis penais que se contrapõem no tempo, isso é, de leis que não são vigentes ao mesmo tempo, o Judiciário usurparia a função do Poder Legislativo Federal e, mais especificamente, da União, a qual é competente para tanto.

Palavras-chave: combinação, lei, legislativo.

 

ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss the subject of the combination of criminal laws from a legislative perspective, analyzing them based on criminal principles (principle of legality, principle of beneficial criminal retroactivity and principle of non-retroactivity of criminal law). In addition to bringing the doctrinal positions (majority and minority) regarding the issue and the constitutional provisions concerning the subject, as well as addressing the Union's private competence to legislate on the topic and address the separation of functions (Executive, Legislative and Judiciary) , the article clarifies the change in the Penal Code Draft (Senate Bill No. 236, 2012) and the jurisprudential understanding on the subject, more specifically on RE No. 600.817 / MS. To this end, the article was developed through bibliographic research, such as laws and doctrines, which allowed the legal and theoretical basis to debate the topic. In addition, the result obtained was an article that describes the phenomenon of the combination of criminal laws in Brazilian courts, which is analyzed from a constitutional and legislative perspective. It is also intended to verify whether, when exercising the combination of criminal laws that oppose each other in time, that is, of laws that are not in force at the same time, the Judiciary would usurp the function of the Federal Legislative Power and, more specifically, the Union, which is competent to do so.

Keywords: combination, law, legislative.

 

1.INTRODUÇÃO

A combinação de leis penais se refere à unidade promovida entre duas ou mais normas jurídicas, as quais se sucedem, contraditoriamente, no tempo, inclusive, com o escopo de beneficiar o réu. Desse modo, deve-se realizar uma análise por meio dos princípios penais, a fim de se entender melhor a legalidade deste tipo de combinação de leis penais.

Apesar de já ser jurisprudencialmente pacificado, não há entendimento uníssono doutrinário sobre esse tema e, por isso, ainda rende inúmeras discussões. Sendo assim, quando se realiza a combinação entre os dispositivos favoráveis da lei antiga com a lex nova, estaria o Poder Judiciário usurpando a função do Poder Legislativo ao formar uma “terceira lei” (lex tertia)?

Desta forma, para saber se a combinação de leis penais é viável, convém analisar a situação à luz do princípio da separação de funções estatais, além de observar a competência exclusiva do Legislativo para legislar matéria penal.

 

2.ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS PENAIS

Conforme o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)[2], os princípios gerais de direito são fontes subsidiárias e, desse modo, o juiz deve recorrer a essa e outras fontes indiretas quando a lei apresentar lacuna, tal como ocorre com o par. único do art. 2º do Código Penal[3]. Sendo assim, quanto à análise da combinação de leis penais, faz-se necessário o exame de alguns princípios constitucionais, os quais também encontram previsão no Código Penal.

2.1.Princípio da Legalidade

O Estado Democrático de Direito tem como parâmetro seu exercício conforme as leis e, é justamente dele que decorre o princípio da legalidade.

Consagrado por Feuerbach, no início do séc. XIX, em uma teoria clássica que dispunha que nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, tendo previsão legal no inciso XXXIX, do art. 5º, da CRFB/88[4], trata-se de cláusula pétrea, e no art. 1º do Código Penal, o qual dispõe que: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. 

Desta forma, conforme dispõe André Estefam:

O princípio da legalidade tem importância ímpar em matéria de segurança jurídica, pois salvaguarda os cidadãos contra punições criminais sem base em lei escrita, de conteúdo determinado e anterior à conduta. Exige, ademais disso, que exista uma perfeita e total correspondência entre o ato do agente e a lei penal para fins de caracterização da infração e imposição da sanção respectiva.[5]

2.2.Princípio da Irretroatividade da Lei Penal Mais Gravosa

O princípio da irretroatividade da norma penal está consagrado no art. 5º, inc. XL da CRFB/88, o qual dispõe que: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Observa-se que este princípio se refere à lei penal mais gravosa ao agente, a qual não pode retroagir, por ser justamente mais prejudicial ao réu (novatio legis in pejus).

Assim, a irretroatividade é a regra, assim como quando um fato anteriormente tido como infração, deixa de ser considerado crime. Inclusive, nesse sentido, prescreve o início do art. 2º do Código Penal: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime”. Nesse caso, tem-se abolitio criminis.

Por outro lado, quando uma lei posterior torna crime algum tipo de conduta, isso é, de atípica, a conduta passa a ser criminosa, ter-se-á uma novatio legis incriminadora. Do mesmo modo, aplica-se o princípio da irretroatividade da lei penal e, por isso, essa nova lei só será aplicada às condutas posteriores à sua vigência.

2.3.Princípio da Retroatividade da Lei Penal Mais Benéfica

A retroatividade da lei penal dar-se-á quando um fato criminoso se encaixa ao preceito primário de lei anterior, a qual já tenha sido revogada. A referida retroatividade pode possuir a finalidade de beneficiar o réu, seja pela previsão de uma causa de diminuição de pena, ou até mesmo um preceito secundário (penas mínima e máxima) que prevê uma pena mínima que é menor do que a prevista em nova lei, por exemplo.

Sendo assim, o Código Penal, no que tange à aplicabilidade da lei penal no tempo, em seu par. único do art. 2º, dispõe que: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

Portanto, aplica-se a exceção à regra geral, referente à irretroatividade da lei penal, quando há uma lei penal mais benéfica, que podem voltar no tempo e favorecerem o criminoso, mesmo que o fato já tenha sido transitado em julgado por sentença penal condenatória.

 

3.ENTENDIMENTOS DOUTRINÁRIOS

3.1.Doutrina Minoritária ou Moderna

Parte da doutrina, tais como Luiz Regis Prado, Cezar Roberto Bitencourt, Damásio de Jesus, José Frederico Marques e Rogério Greco sustentam a tese de que o cenário de combinação de leis penais tratar-se-ia de um mero processo de integração da lei penal, que não transgrediria o princípio da legalidade e, do mesmo modo, o princípio da retroatividade da lei penal. Do mesmo modo, como pontua Rogério Greco “não há óbice alguma à admissão da simbiose ou combinação normativa em prol do agente”.

A Lei de Introdução ao Código de Processo Penal[6], conforme o art. 2º e o par. único do Código Penal, prevê à aplicabilidade da lei nova a fato julgado por sentença condenatória irrecorrível, dispondo, no art. 13, in fine, que “far-se-á mediante despacho do juiz, de ofício, ou a requerimento do condenado ou do Ministério Público”. Do mesmo modo, em seu inc. I, do art. 66, da Lei nº 7.210/82 (Lei de Execução Penal), prevê: “Compete ao juiz da execução, aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o agente”.

Desse modo, Cezar Roberto Bitencourt sinaliza:

Esse é o entendimento majoritário da doutrina, embora, convém que se registre, os dois diplomas legais refiram-se sempre a “lei posterior” mais benigna, não havendo nada a respeito da anterior com ultra-atividade. No entanto, nessa hipótese, aplica-se a analogia in bonam partem.[7]

Damásio de Jesus, por sua vez, afirma que:

Se o Juiz pode aplicar o “todo” de uma ou de outra lei para favorecer o sujeito, não vemos por que não possa escolher parte de uma e de outra para o mesmo fim, aplicando o preceito constitucional. Este não estaria sendo obedecido se o juiz deixasse de aplicar a parcela benéfica da lei nova, porque impossível a combinação de leis.[8]

Por conseguinte, para esta corrente, é possível a combinação de leis penais, pois o magistrado apenas está se utilizando dos mecanismos legais para um combinação mais benéfica ao acusado, como determina a Constituição. Dessa forma, o juiz apenas aplica a lei ao caso concreto, sem modificar o que o legislador criou e sem criar uma nova lei, razão pela qual o julgador não estaria usurpando a competência legislativa.[9]

3.2.Doutrina Majoritária ou Clássica

A corrente clássica, por sua vez, argumenta que o juiz deve optar pela adoção total de uma única lei, ou seja, no caso de sucessão de leis penais, elege-se uma delas para incidir no caso concreto.

Nélson Hungria (1978, p.112), o qual fora um dos mais respeitáveis penalistas brasileiros, apoiava a ideia da impossibilidade da combinação entre os dispositivos favoráveis da lei antiga com a lex nova, tendo em vista que o juiz estaria usurpando a função de legislador e, por isso, formando uma “terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo”.

Não é outro o entendimento de Guilherme de Souza Nucci (2015, p. 163):

Baseando-se em Von Liszt, ao lecionar que a fórmula mais exata leva o juiz a fazer uma aplicação mental das duas leis que conflitam – a nova e antiga-, verificando, no caso concreto, qual terá o resultado mais favorável ao acusado, mas sem combiná-las, evitando-se a criação de uma terceira lei (cf. Lecciones de derecho penal, p. 98-99)[10]

Portanto, para esta corrente, não é possível a conjugação de leis penais, pois o juiz estaria criando uma terceira lei (lex tertia) ao aplicar fragmentos de leis. Assim sendo, essa função legislativa não cabe ao juiz, mas sim ao Poder Legislativo.

 

4.PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE FUNÇÕES ESTATAIS

A tripartição das funções do Estado já foi objeto de estudo de vários autores históricos, como Aristóteles, Locke e Montesquieu. No livro de Direito Constitucional do Alexandre de Moraes, explana-se o seguinte:

A divisão segundo o critério funcional é a célebre “separação de poderes”, que consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgão autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, foi esboçada pela primeira vez por Aristóteles, na obra “Política”, detalhada posteriormente, por John Locke, no Segundo Tratado de Governo Civil, que também reconheceu três funções distintas, entre elas a executiva, consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e o direito, e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças. E, finalmente, consagrada na obra de Montesquieu O Espírito das Leis, a quem devemos a divisão e distribuição clássicas, tornando-se princípio fundamental da organização política liberal e transformando-se em dogma pelo art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e é prevista no art. 2º de nossa Constituição Federal.[11]

Do mesmo modo, cabe destacar o Curso de Direito Constitucional de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que discorre da seguinte forma no que se refere à classificação das funções do Estado de Montesquieu:

A “Separação de Poderes”, como se indicou acima, pressupõe a tripartição das funções do Estado, ou seja, a distinção da função legislativa, administrativa (ou executiva) e jurisdicional. Essa classificação que é devida a Montesquieu encontra, porém, antecedentes na obra de Aristóteles e Locke.[12]

Montesquieu traz inspiração da obra “A Política” de Aristóteles, no qual aponta a divisão em três funções distintas do Poder Soberano do Estado. No entendimento de Montesquieu, cada uma dessas funções se refere a um órgão estatal autônomo e independente.

Por meio de Montesquieu, a teoria da Tripartição das Funções Estatais foi incluída ao constitucionalismo. A sua obra, “O espírito das leis” de 1748, traz a ideia de poderes independentes entre si, mas harmônicos, expondo da melhor maneira a teoria da tripartição das funções como conhecemos nos dias de hoje, em que se baseia a maioria dos Estados ocidentais modernos.

A teoria se baseia na ideia de evitar o abuso do excesso de poder nas mãos de uma única pessoa (como no caso do Estado Absolutista, em que se concentrava todo o poder na mão do rei), ou de um único grupo de pessoas.

(...) é uma experiência eterna a de que todo homem que tem poder tende a abusar dele; ele vai até onde encontra limites. Quem o diria! a própria virtude tem necessidade de limites. Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha o poder”. E logo adiante: “Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não há liberdade, porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado façam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não há liberdade se o poder de julgar não está separado do poder legislativo e do executivo. Se ele estivesse confundido com o poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se ele estiver confundido com o poder executivo, o juiz poderá ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo de principais, nobres ou povo, exercessem estes três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar as questões dos particulares.[13]

Por conseguinte, é importante destacar o que afirma o art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa de 1789:

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DDHC, Art. 16. A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição.

Deste modo, esse artigo indica que a sociedade que não tiver separação de poderes nem declaração de direitos, não tem constituição. Outrossim, além de assegurar a garantia dos direitos, é necessário a separação de poderes para uma limitação efetiva do poder estatal.

Com relação à base da separação de poderes, a divisão do poder em funções estatais e a liberdade individual encontram-se na tese da existência de nexo causal. Deste modo, a separação de poderes tem o objetivo de “impor colaboração e consenso de várias autoridades estatais na tomada de decisões”, e “estabelecer mecanismos de fiscalização e responsabilização recíproca dos poderes estatais, conforme o sistema de freios e contrapesos”.[14]

4.1.Sistema de Freios e Contrapesos

O filósofo iluminista Montesquieu criou o sistema de freios e contrapesos como decorrência da separação das funções do Estado, que limita o poder por meio da função de outro poder:

Este Sistema significava a limitação do poder pelo próprio poder; ou seja, cada poder deveria ser autônomo e exercer a função que lhe fora atribuída, ao passo que o exercício desta função deveria ser controlado pelos demais poderes.[15]

Os poderes podem corrigir ou anular a ação efetuada por outro poder.

O Sistema de Freios e Contrapesos é formado pela “faculdade de estatuir” e pela “faculdade de impedir”, possibilitando a influência mútua e o controle recíproco entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo. A “faculdade de estatuir” deve ser interpretada como o poder de ordenar ou corrigir o que foi por outro ordenado; enquanto a “faculdade de impedir” consiste no poder de tornar nula a ação efetuada por outrem. A aplicação das faculdades possibilita ao Legislativo examinar o modo como foram executadas as leis que elaborou, bem como, permitem ao Executivo o poder de frear iniciativas que tornariam o Legislativo em um poder despótico. O Poder Judiciário, por sua vez, não tem faculdade atribuída, pois para Montesquieu, sua função era considerada restrita.[16]

Assim, para Montesquieu, o poder estatal não está concentrado em um único órgão que exerce todos os poderes do Estado, mas, com a separação, cada órgão limita a atuação do outro. Ademais, em “O Federalista”, que é uma série de 85 artigos a fim de ratificar a constituição norte-americana, os autores trouxeram o denominado “check and balances”. Aqui no Brasil, a expressão foi traduzida por Rui Barbosa como “freios e contrapesos”, os quais são instrumentos que os órgãos possuem de interferir, fiscalizar e limitar o exercício do poder de outro órgão.[17]

Sendo assim, não há um consenso quanto à forma mais adequada para esta separação de funções estatais, mas que por meio da obra “O Espírito das Leis”, os Estados adotaram a corrente tripartite para garantir as liberdades individuais, por meio dos textos constitucionais dos países democráticos.

4.2.Previsão Constitucional

A Constituição Federal de 1988 garantiu autonomia e independência, de maneira harmônica, aos Poderes do Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário –, atribuindo-lhes funções estatais de autoridade soberana, por meio do seu art. 2º, consagrando o princípio da separação das funções/poderes no Estado brasileiro.

Cabe ressaltar também que, conforme o art. 60, § 4º, inc. III, da CRFB/88, não se pode abolir a tripartição de poderes mediante deliberação de proposta de emenda. Isso porque, este princípio constitucional se trata de uma cláusula pétrea.

No texto constitucional, há dispositivos que autorizam o exercício de uma função por um Poder que, em regra, é função de outro órgão/Poder estatal. O princípio da separação das funções estatais é um princípio fundamental do ordenamento constitucional brasileiro, o qual adota a tripartição de Montesquieu, conforme o art. 2º da Constituição Federal.

Todas as funções dos três poderes têm suas competências ou funções previstas de maneira minuciosa e taxativa no texto constitucional que, em regra, há harmonia entre os poderes. Esta harmonia é garantida pelo sistema de freios e contrapesos (check and balances), que evita a sobreposição de um poder em detrimento de outro.

Podemos observar, como exemplo, que o Poder Legislativo tem a função de legislar, ou seja, elaborar leis, e ao Poder Judiciário, cabe a função de solução de conflitos aplicando a lei aos casos concretos, em regra. Porém, em casos como apresentados neste artigo, o magistrado usurpa a sua função e interpreta de maneira equivocada o dispositivo do Código Penal, de modo a ir para além de suas atribuições e, assim, legisla indiretamente.

Além do mais, vislumbra-se a ADI 104 de relatoria do ministro aposentado Sepúlveda Pertence, que discorre sobre a tripartição de funções estatais e sobre a competência exclusiva da União em sua função legislativa para elaborar leis de matéria penal.

I - Poder constituinte estadual. Autonomia (ADCT, art. 11). Restrições jurisprudenciais inaplicáveis ao caso. 1. É da jurisprudência assente do Supremo Tribunal que afronta o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes o trato em constituições estaduais de matéria, sem caráter essencialmente constitucional – assim, por exemplo, a relativa à fixação de vencimentos ou à concessão de vantagens específicas a servidores públicos –, que caracterize fraude à iniciativa reservada ao Poder Executivo de leis ordinárias a respeito: precedentes. 2. A jurisprudência restritiva dos poderes da assembleia constituinte do Estado-membro não alcança matérias às quais, delas cuidando, a Constituição da República emprestou alçada constitucional.
II - Anistia de infrações disciplinares de servidores estaduais: competência do Estado-membro respectivo. 1. Só quando se cuidar de anistia de crimes – que se caracteriza como abolitio criminis de efeito temporário e só retroativo – a competência exclusiva da União se harmoniza com a competência federal privativa para legislar sobre direito penal; ao contrário, conferir à União – e somente a ela – o poder de anistiar infrações administrativas de servidores locais constituiria exceção radical e inexplicável ao dogma fundamental do princípio federativo – qual seja, a autonomia administrativa de Estados e Municípios – que não é de presumir, mas, ao contrário, reclamaria norma inequívoca da Constituição da República (precedente: Rp 696, 6-10-1966, rel. p/ o ac. min. Aliomar Baleeiro). 2. Compreende-se na esfera de autonomia dos Estados a anistia (ou o cancelamento) de infrações disciplinares de seus respectivos servidores, podendo concedê-la a assembleia constituinte local, mormente quando circunscrita – a exemplo da concedida pela Constituição da República – às punições impostas no regime decaído por motivos políticos.[18]

Desta forma, em observância ao art. 22, inc. I, da CRFB/88, “compete privativamente à União legislar sobre direito penal”. Porém, os Estados podem legislar sobre questões específicas na matéria penal, se autorizadas por lei complementar, nos termos do parágrafo único do mesmo artigo.

 

5.COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR MATÉRIA PENAL

A Constituição brasileira prevê, essencialmente, cinco categorias de competências legislativas: exclusiva, privativa, comum, concorrente e suplementar. Tais competências podem ser de titularidade de quatro espécies de entes federativos que são a União, os Estados, o Distrito Federal (Estado sui generis) e os Municípios.

Nesse sentido, a competência exclusiva prevista no art. 21 da Constituição, é aquela atribuída a somente um ente federativo e, por isso, o termo “exclusiva”, ou seja, trata-se de uma competência exclusiva da União para legislar determinadas matérias, e que não são passíveis de delegação.

Por outro lado, a competência privativa é aquela atribuída à União, mas que pode ser delegada aos Estados membros e ao Distrito Federal, mediante edição de lei complementar, a fim de que tais entes disciplinem questões locais específicas, exemplificativamente, conforme disposto no art. 22, caput, c/c art. 22, parágrafo único da CRFB/88.

A competência comum, disposta no art. 23, da Constituição Federal, é a competência administrativa material de todos os entes da federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Essa competência não passível de delegação, pois, por si só, já é de todos os entes, além disso, ela tem um viés protetivo da Constituição.

Há também a competência concorrente, atribuída paralelamente à União, aos Estados e ao Distrito Federal. Nesse caso, tratando-se de matérias submetidas a essa espécie de competência, a União edita normas gerais e, os Estados e o DF, por sua vez, editam normas específicas, conforme o art. 24 da CRFB/88. Todavia, de acordo com o § 3º do mesmo artigo, se a União não criar normas gerais, os estados poderão criar a sua norma de forma plena.

Por fim, a competência suplementar indica que os Estados membros e os Municípios têm competência para complementar alguma lei da União, podendo criar normas específicas e locais, observando suas necessidades e peculiaridades (art. 24, § 2º e 30, inc. II, da CRFB/88).

Dito isso, podemos observar que, nessa perspectiva, o art. 22, inciso I da Constituição Federal prevê que a União possui competência privativa para legislar sobre Direito Penal. Por isso, a lei penal é uniforme em todo o território brasileiro, visto que não há competência dos Estados para legislar tal matéria. Porém, excepcionalmente, o par. único do mencionado artigo da CRFB/88 confere à União, a faculdade de autorizar os Estados, mediante lei complementar, “legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”.

Há, ainda, a impossibilidade de edição de medidas provisórias (MP) sobre matérias de Direito Penal e de Direito Processual Penal, conforme dispõe o art. 62, § 2º, inc. I, alínea “b”, da Constituição Federal. Nesse sentido, visa-se favorecer a ampla discussão democrática na edição de leis penais e, por isso, é incompatível com a imediaticidade das medidas provisórias. Porém, cabe-se inferir que, conforme o Supremo Tribunal Federal, se a matéria penal objeto da medida provisória não for norma incriminadora, admite-se medida provisória. A Corte Suprema reconhece a possibilidade de edição de medidas provisórias para complementar normas penais em branco e para beneficiar o réu.

Medida provisória: sua inadmissibilidade em matéria penal, extraída pela doutrina consensual da interpretação sistemática da Constituição, não compreende a de normas penais benéficas, assim, as que abolem crimes ou lhes restringem o alcance, extingam ou abrandem penas ou ampliam os casos de isenção de pena ou de extinção de punibilidade. (RE 254.818, rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 8-11-2000, Plenário, DJ de 19-12-2002.)

Ademais, a respeito da competência privativa da União para dispor sobre matéria penal, citam-se como exemplos de julgados, no Supremo Tribunal Federal, a ADI 2.729, ADI 3.639 e ADI 3.896.

Desse modo, a União edita privativamente uma lei penal mediante o Congresso Nacional, órgão bicameral e constitucional que exerce as funções do Poder Legislativo, em domínio federal.

 

6.ANTEPROJETO DE CÓDIGO PENAL (PLS Nº 236/2012)

O texto inicial do Anteprojeto de Código Penal (Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012)[19], de autoria do ex-Senador José Sarney, com o objetivo de pacificar a controvérsia, desejava permitir a combinação de leis, conforme se pode notar:        

Art. 2º. É vedada a punição por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

§ 1º. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

§ 2º. O juiz poderá combinar leis penais sucessivas, no que nelas exista de mais benigno.

Porém, com a devida alteração pelos relatores, Senadores Pedro Taques e Vital do Rêgo, o artigo, referente à secessão de leis penais no tempo, mostrou-se pela vedação da combinação de normas diversas:

Art. 2º. A lei posterior, que de qualquer modo favorece o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

§ 1º. É vedada a punição por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

§ 2º. Na sucessão de leis penais, deverá o juiz aplicar as normas mais favoráveis ao réu, ainda que pertençam a leis diversas.

§ 3º. É vedada, todavia, a combinação de normas pertencentes a leis diversas que modifiquem o mesmo instituto ou tipo penal.

Desta forma, para o relator, Senador Pedro Taques:

A proposta quer evitar que o Poder Judiciário se torne verdadeiro legislador, permitindo ao juiz a combinação de dispositivos de várias leis para verificar sempre o que há de mais favorável ao acusado. É de se dizer que a jurisprudência brasileira expressamente não aceita esse tipo de solução. E o fundamento para não acolher essa possibilidade está exatamente na Constituição Federal, que, segundo a interpretação que se faz, não permite esse tipo de técnica.[20]

Além do mais, a Constituição Federal, a carta magna do País, determina em seu art. 2º, que “são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. O juiz, por sua vez, ao realizar a combinação de leis, encarrega-se da função do Poder Legislativo, qual seja: legislar. Por outro lado, é notório que todos os Poderes, além de suas funções típicas, exercem funções atípicas, a fim de concretizar o mandamento constitucional de harmonia entre eles.

Sendo assim, convém ressaltar que o Judiciário possui funções atípicas de forma legislativa e executiva. No que tange à atividade legislativa, detém competência para elaboração dos regimentos internos de seus tribunais. Ora, nota-se que não há legitimidade para elaboração de uma terceira norma, fruto de uma combinação de duas leis distintas. Portanto, a combinação de leis é resultado de uma inobservância de um princípio constitucional, qual seja: a separação de poderes.

Desse modo, nota-se que tal prática equivocada de combinação de leis penais só estaria respaldada caso fosse prevista legalmente de modo claro e sem ambiguidades, assim como estava proposto no texto inicial do projeto de Reforma do Código Penal, anteriormente mencionado. Entretanto, por se tratar de uma norma geradora de insegurança jurídica, visto que uma terceira norma, nem a anterior nem a posterior seria totalmente aplicada ao caso concreto, mas partes de cada uma, o PLS 236/2012 foi modificado, impossibilitando a combinação de leis penais.

 

7.COMBINAÇÃO DE LEIS PENAIS NO CASO DA LEI DE DROGAS

A antiga Lei de Drogas (Lei nº 6.368/1976)[21], dispunha sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica. Em seu art. 12, era tipificado o crime de tráfico de drogas com pena de reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

Já a nova Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006)[22], além de estabelecer e definir normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, revogou expressamente a Lei nº 6.368/1976 e, tipificou em seu art. 33, o crime de tráfico de drogas, estabelecendo o crime com pena de reclusão, de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Observa-se, então, que a nova lei de drogas é mais severa, pois prevê uma pena mais gravosa ao agente. E, conforme vimos no Princípio da Irretroatividade da Lei Penal Mais Gravosa, uma norma penal mais gravosa (novatio legis in pejus), não poderá retroagir para prejudicar o réu.

No entanto, o § 4º, art. 33, da nova Lei, trouxe uma causa de diminuição de pena, de um sexto a dois terços, para os “agentes primários, de bons antecedentes, e que não se dediquem às atividades criminosas nem integre organização criminosa”. E, ao ser aplicado o máximo da redução de pena (dois terços), a pena do agente pode chegar a 1 (um) ano e 8 (oito) meses. Essa previsão não constava na Lei anterior (Lei nº 6.368/1976).

Pode-se verificar que o legislador se preocupou em diferenciar o traficante organizado, que vive da prática ilícita e obtêm seus lucros exclusivamente de atividades nocivas à sociedade, do pequeno traficante, que realizam mão de obra para entrega de pequenas quantidades de drogas.[23]

Nesse sentido, caso o agente preencha os requisitos supramencionados, a Lei nº 11.343/2006 se torna mais benéfica ao réu. Por conseguinte, conforme o Princípio da Retroatividade da Lei Penal Benéfica, uma lei posterior que seja mais benéfica ao réu, pode retroagir para favorecer o agente, mesmo que o fato já tenha transitado em julgado por sentença penal condenatória (art. 5º, XL, CRFB/88 e art. 2º, CP).

Desta forma, questiona-se: caso o agente tenha cometido o crime de tráfico de drogas durante a vigência da Lei nº 6.368/1976 e, posteriormente, se encaixe nos requisitos do § 4º, do art. 33, da Lei nº 11.343/2006, é possível a aplicação da pena da lei antiga com a causa de diminuição de pena de um sexto a dois terços? Ou seja, é possível realizar uma combinação de leis penais, no qual o magistrado condene o acusado pelo art. 12 da Lei nº 6.368/1976 c/c § 4º, do art. 33, da Lei nº 11.343/2006?

Este questionamento tem sido amplamente discutido no mundo jurídico. Apesar disso, os tribunais superiores firmaram um entendimento a respeito da polêmica. É o que veremos no próximo tópico.

 

8.ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL E A INVIABILIDADE DA COMBINAÇÃO DE LEIS PENAIS

Durante anos, não havia uma unicidade com relação à possibilidade de conjunção de normas, muito pelo contrário, havia uma grande divergência de entendimento nos tribunais superiores, como nos casos do HC 111.306 (favorável) e os HC 220.589 e 179915 (contrários).[24] Porém, em 2016, o STJ, por meio da sua Terceira Seção, editou a Súmula nº 501[25]:

Súmula 501 do STJ: É cabível a aplicação retroativa da Lei n. 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n. 6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis.

Ademais, o Tribunal Superior firmou o entendimento de que “não é possível a combinação da nova com a antiga Lei de Drogas, apenas sendo admissível a aplicação retroativa da primeira, na íntegra, para beneficiar o acusado”[26].

Todavia, foi interposto pela Defensoria Pública da União (DPU), o Recurso Extraordinário nº 600.817 do Mato Grosso do Sul[27], contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que entendeu não ser possível a aplicação da causa de diminuição dos artigos 33, § 4º e 40, inc. I, da Lei nº 11.343/2006, em combinação com a pena fixada com base no art. 12 da Lei nº 6.368/1976, o que seria mais favorável ao réu.

À vista disso, por meio do RE nº 600.817/MS, em repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal, em Tribunal Pleno do dia 07 de novembro de 2013 (DJe 30/10/2014), por maioria dos votos, fixou o entendimento de que é vedado a combinação de leis penais para aplicar a causa de diminuição, do § 4º, do art. 33, da Lei nº 11.343/2006, aos crimes de tráfico de drogas cometidos durante a vigência da antiga Lei de Drogas.

Os ministros que foram contrários sustentaram que a conjunção, de ambas as normas mencionadas, não representa a criação de uma nova, pois como a causa de diminuição de pena não existia, ela é considerada autônoma, podendo ser aplicada em combinação com a lei anterior.

De outro modo, segundo o relator, ministro Ricardo Lewandowski, apesar de a Constituição permitir a retroação de lei penal mais benéfica ao acusado, a Carta Magna não autoriza retroagir parte de uma lei para ser aplicada em conjunção com outra lei. É o que podemos observar na ementa de sua decisão:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. PENAL. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. CRIME COMETIDO NA VIGÊNCIA DA LEI 6.368/1976. APLICAÇÃO RETROATIVA DO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/2006. COMBINAÇÃO DE LEIS. INADMISSIBILIDADE. PRECEDENTES. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

I – É inadmissível a aplicação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 à pena relativa à condenação por crime cometido na vigência da Lei 6.368/1976. Precedentes.

II – Não é possível a conjugação de partes mais benéficas das referidas normas, para criar-se uma terceira lei, sob pena de violação aos princípios da legalidade e da separação de Poderes.

III – O juiz, contudo, deverá, no caso concreto, avaliar qual das mencionadas leis é mais favorável ao réu e aplicá-la em sua integralidade.

IV - Recurso parcialmente provido.

(RE 600.817, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, por maioria, julgado em 07/11/2013, DJe 30/10/2014)

Verifica-se que, para o relator, a aplicação da causa de diminuição de pena do § 4º, do art. 33, da Lei nº 11.343/2006 em conjunção com a pena prevista no art. 12 da Lei nº 6.368/1976, criaria uma terceira norma, configurando, assim, uma violação ao princípio da legalidade e da separação dos poderes, pois, o juiz que o fizesse, estaria atuando como legislador positivo.[28]

Dessarte, o Supremo deu provimento parcial ao RE, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello, que davam provimento integral ao recurso, e parcialmente o Ministro Marco Aurélio, que lhe negava provimento. Votou o Presidente, Ministro Joaquim Barbosa. Esteve ausente, justificadamente, o Ministro Roberto Barroso.

Apesar de negar a aplicação da combinação das normas, foi determinado que o processo volte ao juízo de origem para que seja realizada uma nova dosimetria, aplicando-se, assim, na íntegra, a legislação que for mais favorável ao réu.[29]

Dada a devida licença, no meu entendimento, ao realizar a conjugação de partes de normas mais benéficas ao réu, o juiz estaria legislando e, desse modo, usurpando a função do legislador, além de violar o princípio da legalidade e da separação de Poderes. Ora, se o legislador tivesse o intuito de que o réu fosse beneficiado com determinada causa de diminuição de pena ou até mesmo uma pena mínima menor, por exemplo, ele as teria mantido na nova lei.

Sendo assim, o que o juiz deve fazer é aplicar a norma mais benéfica no todo ao réu, analisando-a em cada caso concreto, de tal modo que a conduta que se amolda ao tipo penal seja no todo mais benéfica ao réu lhe submetendo a uma única lei, e não a partes de distintas leis.

Filio-me, pois, ao entendimento de Guilherme Nucci, ao perceber que a justificativa legal, em que se pautam os doutrinadores que apoiam a combinação de leis penais é fruto de uma interpretação literal equivocada, pois pauta-se no termo “que de qualquer modo favorecer o agente”, previsto no parágrafo único do art. 2º, do CP. Conforme afirma Damásio, a interpretação literal, por si só, não garante que a aplicação da norma atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, que é uma norma de observância por parte do juiz ao aplicar a norma, conforme art. 5º da LINDB. Desse modo, o autor conclui que:

A simples análise gramatical não é suficiente, porque pode levar a conclusão que aberre do sistema. Sob pena de grande equívoco, a interpretação literal não deve abster-se de visão de todo o sistema. Para que se apreenda o significado de uma norma é preciso perquirir-lhe a finalidade: a ratio legis.[30]

Além disso, ainda no par. único do art. 2º do Código Penal, tem-se “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente (...)”. Nesse caso, nota-se que o legislador se referiu à uma única lei. Portanto, ainda que se baseando numa interpretação gramatical, é evidente que uma lei posterior que de qualquer modo favorecer o agente deve ser aplicada e, em virtude do termo “a lei”, aplicar-se-ia uma única lei e, não um conjunto de leis, que tratar-se-iam de uma terceira norma.

Desse modo, com relação à possibilidade de se realizar uma combinação de leis penais, cujo magistrado condene o acusado pelo art. 12 da Lei nº 6.368/1976 c/c § 4º, do art. 33, da Lei nº 11.343/2006, também pactuo com o entendimento do grande doutrinador Guilherme Nucci, o qual entende que:

[...] não deva o juiz combinar leis penais (...). Mas é viável que ele faça uma análise de qual lei é a mais favorável ao réu, no caso concreto. Em primeiro lugar, o magistrado deve realizar a seguinte projeção: a) levando em consideração a nova lei, no seu conjunto, incluindo a pena mínima de cinco anos, verificará, concretamente, qual seria a diminuição que o réu ou condenado mereceria. Ora, se atingisse o patamar de metade (entre um sexto e dois terços), exemplificando, deve utilizar a lei nova, pois a pena cairá para dois anos e seis meses de reclusão (cinco anos menos metade). Houve benefício ao acusado, cuja pena era de três anos de reclusão; b) se levar em conta a lei nova, tomando por base a pena mínima de cinco anos e perceber que o réu, concretamente, merece a diminuição mínima de um sexto, sua pena seria de quatro anos e dois meses, o que significa ser desvantajosa a utilização da lei nova. Mantém, então, a pena em três anos de reclusão, conforme a anterior Lei 6.368/76. Não aplica, em suma, a lei nova. Em nosso entendimento, contrário que somos à combinação de leis penais, pois o juiz não é legislador, depende do caso concreto para sabermos se é viável a aplicação da lei nova ou a mantença da pena, conforme os critérios da lei anterior.[31]

Posto isto, percebe-se que uma lei já revogada e, por isso, anterior, quando for mais favorável ao réu, terá ultratividade e prevalecerá, ainda que ao tempo de vigência de uma nova lei. De outro lado, sendo mais benéfica a lei posterior, retroage-se para alcançar fatos cometidos anteriormente à sua vigência. Consequentemente, eleger-se-ia uma lei, que seria mais favorável ao todo, para ser aplicada ao caso concreto.

 

9.CONCLUSÃO

A combinação de leis penais, como já ressaltado, dar-se-á pela união de duas ou mais normas e, portanto, trata-se de instituto inconstitucional, visto que essa união gera uma nova norma, a qual não foi eleita pelo legislativo e, por isso, estar-se-ia diante de um apoderamento do poder típico do legislativo pelo judiciário.

Desse modo, quando a lei anterior for mais benéfica ao réu, em virtude do princípio da retroatividade da lei penal, o qual determina que a lei posterior é aplicável a fatos anteriores, dever-se-ia optar pela incidência total de uma lei em detrimento da outra, optando pela lei mais benéfica. Conclui-se, desse modo, que a doutrina clássica é a mais congruente no que diz respeito à combinação, ao considerar a interpretação promovida na aplicação da norma e mediante análise dos princípios penais expressos constitucionalmente, razão pela qual o instituto da combinação de leis penais não deve prosperar.

 

10.REFERÊNCIAS

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BRASIL. Decreto-Lei nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941. Lei de introdução do Código Penal. DOU, 9 dez. 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3914.htm>.

BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. DOU, 9 set. 1942, retificado em 8 out. 1942 e em 17 jun. 1943. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec reto-lei/del4657compilado.htm>.

BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Nova Lei de Drogas. Dou, 24 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>.

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Sobre o autor
Gustavo Santana Gonçalves

Advogado, Pós-graduando em Direito Legislativo, Assessor Parlamentar no Senado Federal e Bacharel em Direito pelo UniCEUB.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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