A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DAS RESTRIÇÕES À CELEBRAÇÃO DE CERIMÔNIAS RELIGIOSAS PÚBLICAS DURANTE A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19)

09/01/2021 às 17:01
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O presente artigo busca analisar o conflito dos direitos fundamentais à liberdade religiosa e da saúde, nos quais são igualmente protegidos pela constituição. Para isso, realiza-se um juízo de ponderação por meio das técnicas de proporcionalidade.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Direitos Fundamentais à Liberdade Religiosa e à Saúde. 3. Medidas de Restrição à Celebração de Cerimônias Religiosas no Combate ao Coronavírus (COVID-19) no Brasil. 3.1. Ação Civil Pública do MPSP. 3.2. Laicidade do Estado Brasileiro e o Direito Fundamental à Liberdade Religiosa. 3.3. Restrição Relativa ao Direito Fundamental à Liberdade Religiosa. 4. Análise de Proporcionalidade da Restrição Relativa do Direito Fundamental à Liberdade Religiosa. 4.1. Adequação. 4.2. Necessidade. 4.3. Proporcionalidade em Sentido Estrito. 5. Constitucionalidade da Restrição Parcial e Temporária ao Direito Fundamental à Liberdade Religiosa. 6. Considerações Finais. 7. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo busca analisar o conflito de direitos constitucionais igualmente protegidos. Uma vez que não existe hierarquia entre eles, se faz necessário um juízo de ponderação desses direitos à luz das técnicas da proporcionalidade. Será abordado cada direito aparentemente em conflito, bem como a fundamentação legal de sua proteção e, por fim, apresentar a conclusão, em busca do equilíbrio entre a mitigação de um direito, frente a preponderância do outro.

Primeiramente, cumpre realizar uma breve distinção entre regras e princípios. Para Alexy os princípios são mandados de otimização, ou seja, todas as medidas possíveis devem ser adotadas para a sua satisfação. Não existe hierarquia entre os princípios, todos devem ser preservados. Porém, por diversas vezes podem ocorrer colisões entre eles. Assim, a fim de solucionar essa antinomia, a ponderação é meio viável, tendo em vista que o os princípios podem ser satisfeitos em graus variados, levando-se em conta as evidências fáticas e as possibilidades jurídicas. A ponderação está exatamente nesse espectro, amplo ou não, que o princípio apresenta, conforme exposto em sua obra (ALEXY, 2008, p. 90-91):

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.[1]

Podemos considerar que regras e princípios são normas, uma vez que ambos dizem o que “deve ser”. Os princípios, como as regras, são fundamentos para os casos concretos, mas com aplicações distintas. Assim, a distinção apontada por Alexy é a que se refere às regras como normas, que podem ser cumpridas ou não, e aos princípios como normas, que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas.

Nesta mesma linha de raciocínio, as colisões de direitos fundamentais devem ser consideradas como uma colisão de princípios, sendo que o processo para a solução de ambas as colisões é a ponderação. Conforme preceitua Alexy (2008, p 94):

Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido – um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face de outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta.[2]

A ponderação leva em consideração, que possíveis limitações precisam ser adequadas  devendo observar técnicas a aplicação do princípio da proporcionalidade, que se subdivide em três: (i) Adequação: o meio escolhido deve ser apto para alcançar o objetivo; (ii) Necessidade: não existe outro meio menos gravoso para alcançar o fim desejado; e (iii) Proporcionalidade em sentido estrito: que analisa se a restrição/limitação aos direitos em questão, causará menos danos se for aplicada (FERNANDES, Bernardo, 2015, p 343).

Adiante, passamos a análise dos direitos fundamentais em conflito.

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS À LIBERDADE RELIGIOSA E À SAÚDE

O direito fundamental à liberdade religiosa é a liberdade de poder professar qualquer religião e manifestá-la, por meio de realizações de cultos ou tradições. Assim, este direito é uma das primeiras liberdades fundamentais (até mesmo antes da liberdade de expressão e associação), tendo em vista as diversas perseguições e guerras causadas pela religião, além de ser um dos mais importantes direitos de liberdade individual.

Essa liberdade consiste na não-interferência do Estado na vida privada das pessoas, que tem liberdade para escolher uma crença e, da não-interferência nos grupos religiosos. O direito à liberdade religiosa se trata de uma garantia negativa, por não exigir ação do Estado para sua concretização, mas tão somente não se imiscuir.

O direito à saúde é um direito social fundamental e, além de estar previsto no art. 6º da Constituição Federal, é devidamente definido no art. 196 como: (a) "direito de todos"; (b) "dever do Estado"; (c) "garantida mediante políticas sociais e econômicas"; (d) "que visem à redução do risco de doença e de outros agravos"; (e) "regido pelo princípio do acesso universal e igualitário"; e (f) "às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Esse direito também é considerado como direito humano, por estar previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) instituídos em 1966, pela ONU.

O PIDESC foi celebrado para que os Estados pudessem elaborar condições de proporcionar a todas as pessoas acesso a padrões de vida e bem-estar adequados, incluindo direito à saúde, educação e habitação. Nesse sentido, o Brasil comprometeu-se,  na medida em que retificou o tratado em janeiro de 1992, a assumir responsabilidade em garantir a saúde da população por meio de políticas sociais e econômicas, com vistas a reduzir os riscos de doenças e de outros agravos, além da universalização do acesso, o que faz por meio do Sistema Único de Saúde. Desse modo, o direito à saúde deve ser prestado pelo Estado, pois se trata de uma garantia positiva, exigindo uma ação do Estado para sua materialização.

Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o coronavírus (COVID-19) atingiu amplitude para ser considerado como pandemia global, e aconselhou que os Países adotassem medidas para impedir a propagação do vírus. Tendo em vista a gravidade da pandemia e seu impacto sobre a saúde pública, as medidas de restrição de alguns direitos são justificáveis, como a limitação de circulação das pessoas. No momento, em que ainda não há vacinação no Brasil, o isolamento social é o mais indicado para evitar a proliferação do vírus.

3. MEDIDAS DE RESTRIÇÃO À CELEBRAÇÃO DE CERIMÔNIAS RELIGIOSAS NO COMBATE AO CORONAVÍRUS (COVID-19) NO BRASIL

Devido à crise gerada pela pandemia do novo coronavírus (COVID-19) no Brasil, o Poder Público, por meio dos governos federal, estadual e municipal, têm tomado algumas medidas para evitar a propagação do vírus. Uma das medidas adotadas foi a restrição parcial do exercício do direito fundamental à liberdade religiosa, uma vez que as reuniões de pessoas foram proibidas com o intuito de evitar aglomerações, conforme as recomendações da OMS.[3]

O Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, se mostrou contrário ao fechamento de igrejas e a proibições de cultos religiosos, por considerar que, além de ser o “último refúgio das pessoas”, constitui garantia constitucional. Assim, o Presidente editou o Decreto nº 10.292 de 25 de março de 2020, que foi publicado no Diário Oficial da União no dia 26 do mesmo mês, ampliando as atividades listadas como essenciais durante a pandemia do coronavírus no decreto anterior (Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020), incluindo como essenciais, dentre outras, as atividades religiosas de qualquer natureza. Já no dia seguinte, a Justiça Federal (TRF da 2ª Região), em decisão proferida na Ação Civil Pública nº 5002814-73.2020.4.02.5118, suspendeu este trecho do decreto.

O Presidente tomou esta postura devido à sucessivos ajuizamentos de ações civis públicas pelo Ministério Público, que buscava impedir a realização de eventos ou reuniões em templos religiosos durante o período de confinamento. Uma dessas ações é a Ação Civil Pública do Ministério Público do Estado de São Paulo, que será objeto de análise neste artigo.

3.1. Ação Civil Pública do MPSP

Nesta Ação Civil Pública em análise, o MPSP alegou que “há centenas de casos de contaminação já contabilizados no Brasil, além de óbitos”, e que “o Estado de São Paulo e sua capital têm concentrado os casos de contágio por COVID-19”, sendo “fundamental à prevenção adotar medidas de isolamento social com diminuição de circulação de pessoas”.

Tendo em vista o exposto, o MPSP pediu “a suspensão imediata de qualquer atividade não essencial e de eventos religiosos (sejam missas ou reuniões diversas), fundamentada no interesse público [...]”, pois “a mera recomendação para suspensão de atividades religiosas e outras atividades que impliquem no deslocamento de pessoas, em momento de transmissão comunitária do contágio, se revela inadequada e ineficiente, tanto que líderes religiosos [...] afirmam que somente cessariam suas atividades com a intervenção judicial, diante da ausência de medidas coercitivas por parte da Administração”.

Dessarte, o juiz estadual, Randolfo Ferraz de Campos, do Foro Central – 14ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça da Comarca de São Paulo acatou o pedido do MPSP e determinou a proibição das cerimônias religiosas públicas no período da pandemia, sob o fundamento de que as aglomerações colocam em risco os direitos fundamentais à vida e à saúde.

Em nova decisão, o Presidente do Tribunal de Justiça da respectiva Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo, Geraldo Francisco Pinheiro Franco, suspendeu a decisão anterior, sob fundamento de grave lesão à ordem pública, pois, de acordo com o presidente, “neste momento de enfrentamento de crise sanitária mundial, considerando todos os esforços que envidados hora a hora pelo Estado e pelo Município, decisões isoladas, têm o potencial de promover a desorganização administrativa, obstaculizando a evolução e o pronto combate à pandemia”.

Sob esta ótica, iremos analisar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de restrição ao direito fundamental da liberdade religiosa, com uma análise de proporcionalidade e razoabilidade das decisões de restrições.

3.2. Laicidade do Estado Brasileiro e o Direito Fundamental à Liberdade Religiosa

Primeiramente, cabe ressaltar que a liberdade religiosa é um dos direitos clássicos de liberdade, previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 18, DUDH), entre outras declarações.[4] No Brasil, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 previu a liberdade religiosa e a separação entre o Estado e a Igreja (laicidade do Estado), ou seja, a neutralidade do Estado em relação ao fenômeno religioso.

Por conseguinte, é necessário destacar a diferença entre laicidade e laicismo. A laicidade é a neutralidade perante a religião; já o laicismo é a postura de desconfiança e rejeição às religiões, ou seja, situação em que não se tolera nenhum tipo de vínculo religioso. É o que preconiza Paulo Henrique Hachich de Casere:

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De modo bastante sucinto, a laicidade é característica dos Estados não confessionais que assumem uma posição de neutralidade perante a religião, a qual se traduz em respeito por todos os credos e inclusive pela ausência deles (agnosticismo, ateísmo). Já o laicismo, igualmente não confessional, refere-se aos Estados que assumem uma postura de tolerância ou de intolerância religiosa, ou seja, a religião é vista de forma negativa, ao contrário do que se passa com a laicidade.[5]

À visto disso, cabe-se inferir que o Estado brasileiro adota a laicidade, ou seja, um estado de neutralidade perante os credos, e não o laicismo.

O Direito Internacional, mais precisamente no art. 18º, número 3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos permite restrições ao direito da liberdade religiosa, porém, deve-se cumprir alguns requisitos, como: (i) as limitações devem estar previstas em lei; (ii) as restrições devem ser necessárias à proteção da segurança, ordem e saúde públicas ou da moral e das liberdades e direitos fundamentais de outrem; e (iii) ter uma justificativa plausível para a restrição e demonstrar que não há outra medida alternativa.[6] Esta é a explicação feita pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU:

O Comitê assinala que o artigo 18º, número 3 deve ser interpretado de forma estrita: não se permitem limitações por motivos que não estejam especificados nele, mesmo quando permitidos como limitações a outros direitos protegidos pelo Pacto, como o direito à segurança nacional. As limitações podem apenas ser aplicadas para os fins com que foram prescritas e têm de estar diretamente relacionadas e ser proporcionais à necessidade específica em que se baseiam. As restrições não podem ser impostas com propósitos discriminatórios ou aplicadas de uma forma discriminatória.[7]

No Brasil, a liberdade religiosa está prevista no art. 5º, inc. VI, da CRFB/88, sendo um direito imprescritível e inalienável para proteger os cidadãos contra as interferências indevidas do Estado em suas convicções religiosas.[8]

Art. 5º. (...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Neste contexto, a liberdade religiosa e a laicidade estatal se completam para uma efetiva proteção das cerimônias religiosas e dos locais de culto. Deste modo, como regra, o Estado não pode infringir no direito a celebrações religiosas.

3.3. Restrição Relativa ao Direito Fundamental à Liberdade Religiosa

Nenhum direito fundamental é absoluto, inclusive o direito à liberdade religiosa, que pode ser restringido e mitigado, para uma harmonia do ordenamento jurídico, como no direito fundamental à saúde pública.[9] Este é o entendimento vigente no Supremo Tribunal Federal:

Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros. MS 23.452, rel. min. Celso de Mello, j. 16-9-1999, P, DJ de 12-5-2000. (Grifo meu)

Deste modo, compreende-se que como exceção, os direitos fundamentais podem sofrer restrições, porém, são necessárias “razões de relevante interesse público” ou “exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades”. Sendo assim, a restrição à liberdade religiosa deve ocorrer apenas em casos de conflito com algum interesse público relevante (como a saúde pública), devendo prevalecer os meios menos restritivos.[10]

Assim, entende-se que, sobre a validade na proibição das celebrações religiosa em igrejas e templos por conta das medidas de isolamento social em decorrência da pandemia do Covid-19, quando o Poder Público proibiu as reuniões em igrejas, ele restringiu um direito fundamental. Esta restrição não era absoluta, pois não proibia as pessoas de manifestarem uma linha religiosa e nem houve perseguição contra elas, mas ocorreu apenas uma proibição da congregação em igrejas pelo fato de haver aglomerações.

O objetivo da restrição foi de evitar aglomerações como forma de diminuir a disseminação da doença (COVID-19), visando a garantia do direito à saúde e à vida. De igual modo, há direito fundamental de um lado e do outro (Liberdade religiosa x Direito à saúde e à vida). É justamente o tipo de situação que exige um juízo de proporcionalidade e razoabilidade para saber se a restrição é proporcional ou não.

Portanto, seguiremos a análise por meio do princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade), que é uma ferramenta central na aplicação dos Direitos Fundamentais.

4. ANÁLISE DE PROPORCIONALIDADE DA RESTRIÇÃO RELATIVA DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE RELIGIOSA

No Brasil, a jurisprudência e a doutrina entendem que os direitos fundamentais não possuem ordem hierárquica e não devem ser entendidos como absolutos, mas que necessitam frente ao caso concreto, serem compreendidos e analisados para sua aplicação. Para isso adotam o caminho desenvolvido pelo direito alemão de justificação da proporcionalidade. Aqui se apropria dos três subprincípios (Adequação, Necessidade e Proporcionalidade em sentido estrito) que a doutrina alemã construiu em torno da ideia de proporcionalidade, dando uma aplicação mais concreta e controlável intersubjetivamente.

A restrição à direito fundamental, implica na compatibilização entre princípios diferentes diante do caso concreto, cuja intenção deve ser mais o desenvolvimento que o menosprezo dos direitos em conflito, por isso, a limitação somente será válida se for proporcional.

Os subprincípios associados à ideia de proporcionalidade, são testes argumentativos (trata-se de testes específicos). Se uma restrição a direito não passa em um ou mais desses testes, a atuação não será proporcional e, assim, considerada inválida. Ou seja, o objetivo dos subprincípios é para realizar “testes”, verificando se uma restrição à um direito fundamental é justificável ou não.

Desta forma, ao analisar a restrição parcial do direito fundamental à liberdade religiosa por meio do princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade) e os três subprincípios, temos a seguinte conclusão:

4.1. Adequação

Em uma análise de adequação, na qual se avalia se a medida adotada é adequada a produzir o fim proposto. A decisão de restrição ao direito fundamental à liberdade religiosa, imposta pelo Poder Público se mostrou apta, pois, promoveu a redução das aglomerações, a fim de evitar o maior número contágio pelo coronavírus. Portanto, é uma medida que se mostrou adequada ao fim que se buscou.

4.2. Necessidade

Já numa análise de necessidade, ou seja, a adoção de medida restritiva de um direito é justificada para a proteção de um outro direito e, ainda, se não há outra medida, também eficaz, que produza menor restrição ao direito fundamental que se pretende mitigar visando a prevalência de outro direito fundamental, no presente caso, a mitigação da liberdade religiosa quanto a realização de cultos frente ao direito à saúde e a vida.

Embora existam argumentos que defendia outras medidas alternativas, tais como: permitir as celebrações dos cultos com número reduzido de pessoas; o afastamento entre as pessoas, respeitando um distanciamento mínimo; uso obrigatório de máscaras nas celebrações; a medição da temperatura antes de entrarem em local comum da celebração; ou qualquer outra medida alternativa, segundo a percepção científica, essas outras medidas menos restritivas não se faziam suficientes para produzir o resultado almejado.

Além disso, com a adoção de medidas menos restritivas, tal argumento poderia ser utilizado por outros setores que tiveram restrição à reunião de pessoas, como os shoppings, comércios locais, restaurantes etc. Assim, consequentemente, seria impossível defender a razoabilidade da restrição ora imposta.

Destaca-se que, o papel do judiciário, ao avaliar as decisões políticas tomadas pelos agentes eleitos, não faz uma sintonia fina, dizendo o que é melhor ou pior, mas sim, verificar se há outras medidas alternativas que, objetivamente, produza o mesmo resultado, e que seja menos restritiva.

Se todos os estudos apontassem que seria suficiente para produzir o resultado a celebração dos cultos com número reduzido de pessoas, por exemplo, seria desproporcional e desnecessário inibir completamente a atividade. Todavia, a conclusão científica foi contrária, favorável ao isolamento. O Estado não pode anular a opção considerada necessária por conta de alternativas menos adequadas para produzir resultados. Assim, por essas razões, entendo que foi perfeitamente necessária a medida adotada.

4.3.Proporcionalidade em Sentido Estrito

Por fim, numa análise de proporcionalidade em sentido estrito, avalia-se se o ganho gerado pela ação estatal se justifica em face da restrição por ela causada e, inevitavelmente, há uma valoração pessoal, ou seja, o que cada um entende que seja proporcional ou não.[11]

No caso em estudo, a ponderação da Liberdade Religiosa com Direito à saúde e à vida é extremamente difícil, pois, como falamos anteriormente, a Liberdade Religiosa é uma das liberdades clássicas de direito fundamental mais importante, e quando ocorre a limitação ao seu exercício, deve-se olhar mais atencioso à sua necessidade. Deve ser apresentada uma justificativa extremamente importante para esta restrição, mesmo que seja parcial.

Não há dúvidas de que o direito à saúde também guarda sua importância, uma vez que ela é imprescindível para usufruir os demais direitos, pois, por vezes, o próprio direito de ir e vir pode ser limitado, não pelo Estado, mas por questões de saúde do indivíduo. É preciso também considerar que o vírus (COVID-19) não distingue as pessoas, atingindo a todos, em todas as faixas etárias e, não agir para tentar contê-lo, significa colocar em risco a saúde do povo e a consequente prestação do serviço de atendimento à população.

Enfim, entendo que foi totalmente proporcional a restrição de celebração de cerimônias religiosas, sendo uma restrição parcial ao direito fundamental à liberdade religiosa. Assim, o judiciário valida essa restrição, pois não é uma medida desproporcional.

5. CONSTITUCIONALIDADE DA RESTRIÇÃO PARCIAL E TEMPORÁRIA AO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE RELIGIOSA

Como se trata de uma restrição temporária, e sem alternativas adequadas, entendo que a restrição realizada pelo Poder Público foi razoável e proporcional. Obviamente que, essa medida só foi válida porque acompanhou a justificativa de ser temporária, e de ser a única medida viável que produzia o resultado almejado de impedir aglomerações e, assim, evitar o contágio.

Por conseguinte, podemos observar o que diz o juiz federal da 1ª Vara Federal de Duque de Caxias na Ação Civil Pública nº 5002814-73.2020.4.02.5118/RJ:

É também, pois, nítido que, conforme afirma o MPF, o decreto coloca em risco a eficácia das medidas de isolamento e achatamento da curva de casos da COVID-19, que são fatos notórios (art. 374, I, do CPC) e amplamente noticiados pela imprensa, que vem, registre-se, desempenhando com maestria e isenção seu direito de informar. Tais medidas são fundamentais para que o Sistema de Saúde - público e privado - não entre em colapso, com imprevisível extensão das consequências trágicas a que isso possa levar. O acesso a igrejas, templos religiosos e lotéricas estimula a aglomeração e circulação de pessoas, e não é por outra razão, inclusive, que medidas extremas foram tomadas mundo a fora, inclusive com a realização compulsória de atos de cremação de cadáveres sem a presença de familiares e amigos. Note-se que não se está a impedir o exercício da atividade religiosa, inclusive havendo plena possibilidade de ser desempenhada em casa, com os recursos da internet, tendo inclusive, a título exemplificativo, o Papa, autoridade maior da Igreja Católica Romana, adotado tal providência na realização de suas missas. No mais, o direito à religião, como qualquer outro, não tem caráter absoluto, podendo ser limitado em razão de outros direitos que, no caso concreto, tenham ponderância. Nesse sentido, inclusive, debate-se atualmente no c. STF na ADPF 618 sobre a questão de transfusão de sangue compulsória a testemunhas de jeová maiores de idade (eis que não há controvérsia quando se trata de menores de idade). (Grifo meu)

Por conseguinte, entendo que, diante da crise na saúde, e com fins de evitar uma infecção maior do que já temos, é razoável que seja utilizada a forma de prevenção disponível no atual contexto, ou seja, as medidas de distanciamento social, o que, consequentemente, restringiu parcialmente e temporariamente o direito de reunião dos cidadãos para fins de cultos religiosos.

Cabe mencionar que todos foram submetidos às medidas de afastamento comunitário, com a pretensão de salvaguardar a saúde das pessoas, não as deixando mais expostas ao contágio. Caso assim não fosse, provavelmente agravaria ainda mais a capacidade de acesso à saúde pública nacional (colapsando o sistema).

Por fim, após a aplicação da técnica de proporcionalidade, na qual se avalia a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, concluo pela constitucionalidade da restrição parcial e temporária ao direito fundamental à liberdade religiosa, devendo, neste caso prevalecer o Direito à saúde e à vida.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dada a importância da ampla proteção à liberdade religiosa, como fundamento de qualquer democracia, qualquer limitação ao seu exercício deve ser analisada cautelosamente, observando o caso concreto. Porém, ao considerar a situação da pandemia global do coronavírus (COVID-19), em que há altos índices de contágio por meio de transmissão comunitária, se trata de uma situação excepcional, no qual permite ao Estado limitar a liberdade de reunião para fins de cultos religiosos.

Por conseguinte, mesmo diante da restrição ao direito de liberdade em realizar e participar de cultos coletivos, pelo Poder Público, preservou-se o exercício dos outros núcleos do direito fundamental à liberdade religiosa, como o direito à liberdade de crença. Ou seja, o exercício de culto pôde ser realizado de maneira individual. O Estado não impediu que as pessoas professem sua fé, mas que deveria ser feita individualmente. Por isso que houve uma restrição parcial deste direito.

Assim, o exercício do direito de culto foi limitado, restando aos fiéis, alternativamente, que professassem a fé em casa, por meios telemáticos. Então não houve uma restrição total ao direito fundamental à liberdade religiosa.[12]

Dessarte, diante das circunstâncias fáticas e, após a análise de proporcionalidade e razoabilidade, as medidas de limitações ao direito de reunião dos cidadãos para fins de cultos religiosos se mostrou adequado, necessário e proporcional. Assim, neste contexto, é constitucional a medida que restringiu parcialmente e temporariamente o direito fundamental à liberdade religiosa.

7. REFERÊNCIAS

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ANAJURE. NOTA PÚBLICA 01 - Combate ao coronavírus e a proteção da liberdade religiosa. 2020. Disponível em: <https://anajure.org.br/nota-publica-comba te-ao-coronavirus-e-a-protecao-da-liberdade-religiosa/>. Acesso em: 12 maio 2020.

ARAGÃO, Eugênio. Liberdade religiosa em tempos de coronavírus: há permissão para restringi-las? 2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/faust o-macedo/liberdade-religiosa-em-tempos-de-coronavirus-ha-permissao-para-restringi -las/>. Acesso em: 12 maio 2020.

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Comentário Geral n.22, Comité de Direitos Humanos da ONU.

FERREIRA, Natanael Alves. Liberdade religiosa e o exercício do direito à educação: a controvérsia acerca do respeito ao dia de descanso. 2010. Pág. 30. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/190962/natan.p df?sequence=1&isAllowed=y>.

JÚDICE, Mônica Pimenta. Robert Alexy e a sua teoria sobre os princípios e regras. 2007. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2007-mar-02/robert_alexy_teoria_p rincipios_regras?pagina=2>. Acesso em: 14 maio 2020.

MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 314. 

SILVEIRA, Geovane Couto da, e MIRANDA, Washington da Silva. A restrição à liberdade religiosa em meio ao avanço do Covid-19. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/80636/a-restricao-a-liberdade-religiosa-em-meio-ao-avanc o-do-covid-19>. Acesso em: 12 maio 2020.

 


[1] ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Tradução Manuel Atienza. Doxa [publicaciones periódicas], Alicante, Espanha, v. 5, 1988. Disponível em: <http://rua.ua.es/dspace /bitstream/10045/10871/1/Doxa5_07.pdf>. Acesso em: 13 out. 2013.

______. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. (Coleção teoria & direito público)

[2] Idem, p. 94.

[3] SILVEIRA, Geovane Couto da, e MIRANDA, Washington da Silva. A restrição à liberdade religiosa em meio ao avanço do Covid-19. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/80636/a-restricao-a-liberdade-religiosa-em-meio-ao-avanco-do-covid-19>. Acesso em: 12 maio 2020.

[4] FERREIRA, Natanael Alves. Liberdade religiosa e o exercício do direito à educação: a controvérsia acerca do respeito ao dia de descanso. 2010. Pág. 30. Disponível em: <https://www2.s enado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/190962/natan.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.

[5] CESARE, Paulo Henrique Hachich de. Estado laico é diferente de Estado antirreligioso. 2012. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2012-mar-21/estado-laico-nao-sinonimo-estado-antirreligio so-ou-laicista>. Acesso em: 12 maio 2020.

[6] ANAJURE. NOTA PÚBLICA 01 - Combate ao coronavírus e a proteção da liberdade religiosa. 2020. Disponível em: <https://anajure.org.br/nota-publica-combate-ao-coronavirus-e-a-protecao-da-lib erdade-religiosa/>. Acesso em: 12 maio 2020.

[7] Comentário Geral n.22, Comité de Direitos Humanos da ONU.

[8] SILVEIRA, Geovane Couto da, e MIRANDA, Washington da Silva. A restrição à liberdade religiosa em meio ao avanço do Covid-19. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/80636/a-restricao-a-liberdade-religiosa-em-meio-ao-avanco-do-covid-19>. Acesso em: 12 maio 2020.

[9] Ibid.

[10] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 314. 

[11] JÚDICE, Mônica Pimenta. Robert Alexy e a sua teoria sobre os princípios e regras. 2007. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2007-mar-02/robert_alexy_teoria_principios_regras?pagin a=2>. Acesso em: 14 maio 2020.

[12] ARAGÃO, Eugênio. Liberdade religiosa em tempos de coronavírus: há permissão para restringi-las? 2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/liberdade-religiosa-em -tempos-de-coronavirus-ha-permissao-para-restringi-las/>. Acesso em: 12 maio 2020.

Sobre o autor
Gustavo Santana Gonçalves

Advogado, Pós-graduando em Direito Legislativo, Assessor Parlamentar no Senado Federal e Bacharel em Direito pelo UniCEUB.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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