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A restrição à liberdade religiosa em meio ao avanço do Covid-19

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A pandemia gerada pelo novo coonavírus tem gerado debates e questionamentos jurídicos sobre o exercício da liberdade religiosa e a possibilidade de sua restrição para resguardar a saúde pública.

Em meio ao agravamento da crise gerada pelo avanço do novo coronavírus no Brasil, os governos, em âmbito federal, estadual e municipal estão tomando medidas buscando evitar a propagação do vírus. Atitudes extremamente restritivas estão sendo tomadas pelos governadores e prefeitos, gerando o fechamento de estabelecimentos comerciais e de espaços públicos.

Neste contexto, surgem questionamentos sobre o papel exercido pelas entidades religiosas no enfrentamento ao avanço do contágio no Brasil. Nos últimos dias, algumas denominações suspenderam cultos e celebrações, passando a transmitir a programação por meio das redes sociais.

Em âmbito internacional, surgiram notícias demonstrando que o governo da Correia do Sul responsabilizou o líder religioso Lee Man-hee e sua igreja Schincheonji por contribuir para a disseminação do surto ao se recusar a fornecer a lista dos membros da entidade religiosa. O jornal The New York Times noticiou que membros da igreja permaneceram incomunicáveis e teriam viajado pelo país sem serem detectados, dificultando a realização dos testes. Após a confirmação de que a propagação do vírus ocorreu por meio de seus membros, o fundador da igreja assumir a responsabilidade. 

Em entrevista recente, concedida ao “Programa do Ratinho”, o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, declarou ser contra o fechamento de igrejas e a proibição dos cultos religiosos, por considerar que, além de ser o “último refúgio das pessoas”, constitui garantia constitucional. Em decreto publicado no Diário Oficial da União em 26 de março, o Presidente elencou as atividades religiosas na lista de itens considerados essenciais durante a pandemia do Sars-CoV-2. No dia seguinte (27/03), esse trecho do decreto foi suspenso pela Justiça Federal, em decisão proferida na Ação Civil Pública nº 5002814-73.2020.4.02.5118, na qual o Juiz Federal Márcio Santoro Rocha ressaltou que “o direito à religião, como qualquer outro, não tem caráter absoluto, podendo ser limitado em razão de outros direitos que, no caso contrato, tenham ponderância."

Essa postura do Chefe do Poder Executivo ocorreu após o Ministério Público ter ajuizado ações civis públicas buscando impedir a realização de eventos ou reuniões em templos religiosos durante o período de avanço da pandemia.

A primeira ação foi ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo em face do Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, dispondo que o aumento da propagação poderia levar a contaminação em massa caso os eventos religiosos fossem mantidos. Em decisão liminar proferida na ação nº 1000010-12.2020.8.26.0621, a Juíza de Direito, Luciene Belan Ferreira Allemand, ordenou, com fundamento na saúde pública, que a referida entidade religiosa não realizasse qualquer evento em um período de 30 (trinta) dias, com imposição de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais) por cada dia de descumprimento.

No Rio de Janeiro, foi ajuizada outra ação (autos nº 0060424-05.2020.8.19.0001) pelo Ministério Público estadual objetivando impedir a realização de eventos com grandes aglomerações na igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, presidida pelo Pastor Silas Malafaia. Na petição inicial, sustenta-se que o direito à liberdade de culto deve ser relativizado, tendo em vista a demonstração de que a propagação do novo coronavírus pode ocorrer por meio da aglomeração de fiéis, devendo prevalecer “a saúde pública, a redução do número de óbitos, a dignidade humana, garantia de que o sistema público e privado de saúde sobreviva”. Em decisão liminar, foi indeferido o pedido, dispondo que não compete ao poder judiciário analisar o pedido, tendo em vista a inexistência de previsão expressa em relação a proibição de realização de eventos nos templos religiosos.

Em sede recursal, a decisão foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, dispondo que não há direito absoluto e que na hipótese de conflito entre direitos fundamentais, deve ser observado a “ponderação de interesses à luz do caso concreto, harmonizando-se a sua coexistência”. O relator do Agravo de Instrumento, Desembargador Sergio Seabra Varella, refutou o argumento em relação à inexistência de instrumentos jurídicos que justificariam uma abstenção do poder judiciário para suspender a realização de cultos religiosos, visto que o Governador do Rio de Janeiro, via Decreto Estadual nº 46.973/2020, proibiu a reunião de pessoas para preservar a saúde da coletividade, bem como o direito constitucional à vida e à saúde.

Nesse contexto, deve-se destacar que a liberdade religiosa está prevista no artigo 5º, inciso VI da Constituição da República, constituindo direito imprescritível e inalienável para proteger os cidadãos contra ingerências indevidas do Estado nas convicções religiosas. Referido direito fundamental possui algumas vertentes, tutelando a crença, o culto e a organização das entidades religiosas, estando sempre relacionada com a existência sobrenatural.

Além disso, também está relacionada com a limitação ao poder, para que não haja prevalência de determinada religião sobre as demais. Aqui reside a primeira crítica às ações ajuizadas pelo Ministério Público, tendo em vista que buscaram impedir o exercício coletivo de algumas entidades religiosas, sem considerar as demais igrejas que também poderiam realizar cultos para os fiéis.

Ainda, deve-se destacar que liberdade religiosa foi concebida como direito fundamental, relacionando-se diretamente com outras garantias fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, como a vida e a dignidade da pessoa humana.

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De maneira mais específica, deve-se destacar que liberdade de culto garante aos indivíduos o direito de exteriorizarem a crença de forma pública, com a manifestação da religião por meio de adorações, venerações e liturgias em templos religiosos. Essa concepção protege tanto a celebração de cultos internos, como os externos, desde haja respeito à ordem pública e outros direitos fundamentais da pessoa humana, como é o caso da vida.[1]

Neste contexto, o direito fundamental à liberdade religiosa não se apresenta como garantia individual absoluta, assim como não são os demais direitos fundamentais, que também podem ser objeto de restrição, buscando resguardar a harmonia do ordenamento jurídico e, no caso em especifico, à saúde pública.

Com isso, faz-se necessário que haja a intervenção sempre que for preciso ponderar princípios e regras, objetivando assegurar a prevalência dos bens constitucionais de igual ou superior importância. Tatiana Seferjan ressalta que é fundamental compatibilizar a liberdade religiosa em relação aos demais bens constitucionais, como é o caso da vida, integridade física e a saúde.[2]

Vê-se que a restrição à liberdade religiosa não pode se basear na prevalência das concepções majoritárias ou que tenham por objetivo conveniências administrativas, bem como não pode ser aplicada por meio de fórmulas que tenham fundamento na moral pública ou nos bons costumes. Jonatas Machado afirma que a restrição da liberdade religiosa somente pode ocorrer quando estiver em conflito com algum interesse estatal relevante (compelling state interest), devendo prevalecer o meio menos restritivo.[3] Para que haja a restrição, contudo, a doutrina destaca a necessidade de cumprimento de alguns requisitos.

O primeiro deles é a temporalidade, tendo em vista que as decisões devem delimitar o período temporal pelo qual a restrição será adotada, sendo ilegal o estabelecimento de medidas que não disponham o tempo máximo de vigência.

O segundo requisito é a generalidade. Sobre ele, deve-se destacar que aqui reside a principal crítica em face das ações ajuizadas pelo Ministério Público em São Paulo e no Rio de Janeiro, tendo em vista os processos que buscaram restringir o funcionamento de algumas entidades religiosas em específico. A restrição ao exercício da liberdade religiosa deve ocorrer de maneira geral, em relação a todo e qualquer tipo de evento religioso e não casuisticamente.

Por fim, o terceiro requisito se relaciona com a preservação do núcleo essencial, visto que mesmo diante da possibilidade de restrição ao direito de culto, a restrição ao exercício coletivo da liberdade deve ocorrer de maneira excepcional e preservando o exercício dos outros núcleos da liberdade religiosa, como o direito à liberdade de crença.

Os argumentos elencados demonstram que é preciso compatibilizar o exercício da liberdade religiosa com os outros direitos fundamentais, bem como que as decisões proferidas pelo poder público sejam tomadas de maneira temporária, geral e preservando o exercício do núcleo essencial do direito fundamental, possibilitando o exercício de culto mesmo que de maneira individual.


[1] CHEHOUD, Heloísa Sanches Querino. A liberdade religiosa nos Estados Modernos. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2017, p. 63.

[2] SEFERJAN, Tatiana Robles. Liberdade religiosa e laicidade do Estado na Constituição de 1988. 2012. 162f. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 203.

[3] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 314. 

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Sobre os autores
Geovane Couto da Silveira

Bacharel em direito pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil. Pós-graduando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro da Comissão de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil - seccional Paraná - subseção Colombo. Possui experiência na atuação judicial junto aos tribunais paranaenses e superiores, bem como em causas extrajudiciais. Na graduação, destacou-se como pesquisador, obtendo o primeiro lugar no Concurso de artigos científicos do V Congresso Brasil Polônia de Direito Constitucional. Representou a região sul do Brasil no VII edição do Intercâmbio da Subchefia de Assuntos Jurídicos da Presidência da República. É autor de artigos publicados em revistas científicas e capítulos de livros.

Washington da Silva Miranda

Advogado, pós-graduando em direito administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Servidor Público Federal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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