Da anomalia do sistema nacional de transito e as irregularidades praticada pelas respectivas entidades

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11/01/2021 às 10:36
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O presente trabalho tem como objetivo analisar a anomalia do sistema nacional de transito e as irregularidades praticadas pelas respectivas entidades, restritas aos questionamentos que envolvem os verbetes aos artigos 161, 131, §2º, 262, §2º e 134, CTB.

INTRODUÇÃO

Desde a edição da Lei Federal  nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro, doravante “CTB”) tem-se discutido diuturnamente os problemas relacionados com o tráfego viário em nosso País. Na verdade, temas que sempre foram relevantes, mas que passavam como que despercebidos, e que, de uma hora para outra, viram-se noticiados a todo o momento pelas pessoas. 

 

Dentre dos diversos temas tratados pelo Direito Administrativo, o assunto a ser trabalhado neste artigo fora instigado a partir da anomalia do sistema nacional de transito e as irregularidades praticada pelas respectivas entidades.

 

Ora, assunto, destarte, apresentado, é vista e enfrentada não só por este a que subscreve, mas por muitos no dia, levantando questões concernentes ao afrontamento a Legislação Complementar Federal, em especial o Código Tributário Nacional, ao direito à ampla defesa e ao contraditório, a autoexecutoriedade para a cobrança de supostos créditos ainda não inscrita em dívida ativa (portanto, ainda não liquidados, incertos e inexigíveis), nos casos das multas, aos abusos de poder da Administração no exercício do Poder de Polícia e, finalmente, a faceta jurídica do que faz a Administração, frente ao exercício de direito real, ante a ausência de comunicação de venda ao órgão responsável. 

 

Dito isso, o tema em estudo apresenta uma singular importância para o direito uma vez que temos aí, também, uma clara inconstitucionalidade por parte do artigo 161, 131, §2º, e 262, §2º, do CTB, e um certo desvio de finalidade para com o artigo 134, do CTB, visando contribuir para com o meio acadêmico e a sociedade, de forma expansiva.

 

A relevância social trazida à luz do presente tema é a importância de demonstrar que o Brasil é autor de muitos ilícitos, seja em razão do legislador atribuir à resolução do CONTRAN uma posição privilegiada, seja pela falta de razoabilidade para com o licenciamento, seja pelo desvio de finalidade na aplicação do 134, do CTB ou pela vinculação da liberação do veículo ao prévio pagamento do IPVA.

 

Com efeito, a proposta deste artigo é analisar a inconstitucionalidade por parte do artigo 161 frente à posição privilegiada dada pelo legislador ordinário às Resoluções do CONTRAN sem a observância do princípio da legalidade; a exigência do pagamento das multas de trânsito como condição para licenciamento de veículos automotores, procurando descrever como o poder judiciário tem solucionado as devidas questões; a verdadeira coação grosseira na restituição do veículo ao prévio pagamento do IPVA; e ao desvio de finalidade do Administrante na aplicação do 134, do CTB; correlacionando os conteúdos de direitos administrativos para com o direito de Trânsito, visando ainda, aclarar, questões que tem ensejado interpretações as mais diversas possíveis.

 

Ademais, frente à complexidade do que é o tema, o presente trabalho não ira analisar e esgotar todas as variantes das irregularidades por parte da Administração de Trânsito, pois, assim sendo, este seria indeterminado e suficiente para então ser objeto de outras teses, ficando restrito o objeto desta pesquisa às discussões que rodeiam os verbetes 161, 131, §2º, 262, §2º e 134, do CTB.

 

1 - CONCEITO DE TRANSITO

Discorrer sobre assuntos relacionados ao trânsito é sempre um desafio muito grande, em face da sua alta complexidade e interdisciplinaridade. Por se tratar de uma atividade desenvolvida diariamente por toda a sociedade, a simplicidade do conceito parece emudecer e prejudicar a resposta que encontra “na ponta da língua” de todos nós.

 

Conforme o nosso Código de Trânsito Brasileiro, instituído pela Lei 9.503/97, no seu artigo 1°, § 1°, considera-se Trânsito “a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga”[1].

 

Ainda no CTB, no anexo I (onde estão os conceitos e definições dos termos utilizados e empregados no próprio CTB e no trânsito em geral), o termo trânsito recebe a definição: movimentação e imobilização de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres.

 

Analisando as definições estabelecidas pelo Código de Trânsito Brasileiro, trânsito é tudo aquilo que se movimenta, se locomove de alguma forma, através de veículos, animais, ou ainda, de pessoas, em grupo ou isoladamente, independentemente do local em que está.

 

Paralelamente, ao alvorecer a definição do que vem a ser transito, surgi a seguinte problemática: de onde tudo começou? Assim, diante da seguinte indagação, tem-se a convicção que faz necessário, antes de adentramos ao tema, compreendermos a origem e evolução do fenômeno do transito, destacando-se, desde logo, as principais mudanças influenciadores para com a evolução do transito no Brasil.

 

 

2 - BREVES CONSIDERAÇÕES DO FENÔMENO DO TRANSITO

 

Em toda a história da humanidade, o ser humano, ao caminhar entre os meios mais rudimentares, procurou facilitar a sua vida cotidiana produzindo armas, adornos, vestimentas, e dentre outras coisas, o transporte.

 

A origem do fenômeno trânsito, em razão de sua primitividade, perde-se no tempo, tendo em vista que toda a atividade humana está relacionada ao deslocamento de um local para outro, em especial a procura de alimento. Somente, com o desenvolvimento das antigas civilizações, passou a contar com a necessidade da implantação de normas para regulamentar a utilização das vias terrestres.

 

Todavia, o meio de locomoção mais antigo para o deslocamento de longas distancias, fora o ato de caminhar do homem, carregando seus pertences sobre os ombros ou arrastando-os, até a domesticação da força animal para utilização como transporte de carga.

 

Nas antigas civilizações, como a egípcia, “a carreta puxada a bois” era meio familiar de transporte, como se pode verificar nos monumentos da antiguidade[2].

 

Visando auxiliar o meio de transporte humano e animal, na Mesopotâmia, por volta de 3000 anos a.C, a criação da roda foi o primeiro avanço aos meios de transportes e o maior criação de todos os tempos.[3] Com a invenção da roda a cerca de 5 mil anos atrás, os antigos caminhos eram transformados em verdadeiras estradas permitindo a comunicação e o desenvolvimento cada vez mais rápido entre cidades distantes, além do maior acesso de povoados.

 

Conforme Cássio Honorato (2004, p. 01), no Império Romano, com a necessidade de deslocamentos de suas tropas e expansão para com o império, “criou-se um sistema rodoviário com mais de 100.000 km de extensão”. E foi por esse motivo, segundo o autor, ora mencionado (2004, p. 01), que, popularmente, se diz que “todos os caminhos levam a Roma”.

 

Todavia, como qualquer outra evolução, os primeiros sinais de problema no transito surgiram com o dimensionamento do Império, tornando necessária a implementação de leis, impondo o imperador Julio César, banir o tráfego de rodas do centro de Roma, durante o dia, permitindo apenas a circulação de veículos oficiais e de patrícios, surgindo, desde então, as primeiras regras de circulação no trânsito.[4]

 

Como o passar do tempo, as estradas romanas uniram diversos países do continente europeu. Porém, com a queda do Império Romano do Ocidente (em 476 d.C.) e o advento da Idade Media, além do esquecimento repentino das vias de comunição, houvera uma progressiva deterioração da rede viária em toda a Europa, desaparecendo praticamente, por conseguinte, a partir do século VIII, as vias pavimentadas, em razão do absoluto abandono, restando, tão somente, caminhos de terra. Sob esse prisma, não havia qualquer forma de intervenção ou de tentativa que viesse estimular a reparação e a regulamentação do uso das vias terrestres.

 

Somente a partir do século XVII, com o aumento do comércio nas estradas, o atratismo das industrias e o crescimento das cidades, que os países da Europa retornaram a construção dos caminhos viários, vanguardando o desenvolvimento de sistemas modernos de transporte terrestre, contribuindo de certa forma para a organização dos modos de circulação e dos padrões de deslocamentos do transito.

 

Séculos mais tarde, mais precisamente no século XX, a produção de automóveis alcançou o apogeu, a fim de poder satisfazer à crescente procura. E, justamente com o aperfeiçoamento e o uso generalizado do automóvel, iniciou-se a construção de boas estradas e o surgimento da moderna legislação de trânsito.  

 

Finalmente, conclui-se, não deixando de indagar, que umas das primeiras legislações da Era Moderna, a reger a utilização das vias terrestre, surgiram na Inglaterra, constando a lei de Estradas, de 1835, estabelecendo que “carruagens e animais devessem manter-se à esquerda junto à margem”[5]. Daí então, nascera a “famosa” mão inglesa. 

 

 

3 - A EVOLUÇÃO DO DIREITO DE TRÂNSITO NO BRASIL

 

Povoado de forma irregular, com concentração na longa faixa litorânea, e sob a influência da cultura lusitana, pouca importância foi conferida à regulamentação do uso das vias terrestre, no Brasil.

 

A precariedade dos caminhos levou o governo central a editar a lei geral de 29 de agosto de 1828, que disciplinava a competência dos governos imperial, provincial e municipal, no tocante à execução e conservação das obras públicas, consistindo na cobraça da taxa para utilização. No caso de estradas, as taxas eram calculadas segundo o tipo de usuário e distancia percorrida, sendo diferenciado, segundo fosse pedestre, cavaleiro, veículos ou animais de carga. E diante essa clara alvorecer contextual, que surgiram assim, a origem dos pedágios no Brasil império.  

 

Nos termos do professor Cássio Honorato (2004, p.22), os primeiros dispositivos sobre trânsito no território nacional “foram assinados pelo Imperador D. Pedro II, em 27 de maio de 1853, quando aprovou as posturas de Câmara Municipal da Corte sobre carros e outros veículos de transporte”. Sobre o mesmo instrumento, o autor Julyver de Araújo (2010, p.64), em sua dissertação de mestrado, corrobora dizendo que também “fora fundado a denominada Inspetoria de Veículos do Brasil, posteriormente transformada em Serviços de Trânsito do Estado da Guanabara, dando origem aos órgãos de Administração Pública de Trânsito no Brasil”.

 

A partir da industrialização, no final do século XIX, a estrutura social na Europa começa a mudar, principalmente com concentração de pessoas nos centros urbanos, que só a partir dos anos 40, com o fim das oligarquias agrárias e o auge da era Vargas, é que esse fenômeno vai ser percebido no Brasil.

 

É justamente neste contexto que surge o primeiro Código Nacional de Trânsito[6], em 1941, quase duas décadas após a implantação da indústria automobilística no Brasil, contendo 147 artigos, dispondo sobre normas gerais de transito, circulação internacional de automóveis no território brasileiro, sinalização viária, veículos, habilitação de condutores, infrações e penalidade.

 

Com breve vigência, o primeiro CTN foi revogado expressamente em 25 de setembro de 1941, pelo Decreto-lei nº 3.651, dando nova redação ao Código Nacional de Trânsito, passando a disciplinar o transito de veículos automotores de qualquer natureza, nas vias terrestres, normas gerais de circulação, sinalização viária, habilitação de condutores, infrações e penalidade, contendo 147 artigos. Por conseguinte, mesmo o diploma legal criou o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), prevendo nos artigos 138 e 139 sua composição e competências.   

 

Nessa época, o Brasil vivia um período de urbanização, marcado pela industrialização e pela expansão econômica, ocorrendo um grande crescimento da frota de veículos em circulação no país. Esse fato exigiu uma revisão das leis em vigor, culminando com a aprovação da lei n° 5.108, de 21 de setembro de 1966, instituidora do Código Nacional de Trânsito (CNT)[7], sofrendo algumas modificações antes mesmo de entrar em vigor (Decreto Lei nº 237, de 28.02.1967), como por exemplo, a criação do Departamento Nacional de Trânsito e da Junta de Administrativa de Recursos de Infração (JARI)[8], vigorando, assim, durante 31 anos.

 

Com o passar do tempo, o numero de acidentes no transito vinha crescido assustadoramente, ceifando muitas das vidas brasileiras, fazendo com que, na década de 90, a sociedade exigisse maior rigor nas penas impostas aos infratores. Como se não bastasse, o CNT, num contra-senso, não previa nenhum crime de trânsito, fazendo que, sempre que necessário, fosse utilizado o Código Penal Brasileiro (CPB) para qualificar os crimes mais graves cometidos no trânsito.

 

Com a necessidade de reformar a legislação de trânsito vigente para atender a nova realidade social, então fez o Presidente da época, Fernando Collor, em 06 de junho de 1991, por meio de decreto presidencial, criar uma comissão para elaborar um projeto de um novo Código de Trânsito.

 

Foi nesse contexto, visando, sobretudo, aumentar a segurança no trânsito por intermédio da adoção de regras uniformes e, consequentemente, a preservação da vida humana, que foi aprovado em 23 de setembro de 1997, o “novo” Código de Trânsito Brasileiro (CTB), a lei n° 9.503, de 23 de setembro de 1997[9], o qual asseverou por meio dos seus 341 artigos, instrumentos e condições para assegurar a circulação de bens e pessoas com segurança, eficiência, fluidez e conforto, trazendo consigo a previsão legal dos crimes de trânsito e a aplicação de penalidades mais rigorosas aos infratores.

 

Assim, o CTB buscou adequar a legislação específica à nova realidade do trânsito brasileiro, criou novas infrações de trânsito e tornando mais rigoroso o tratamento aos condutores embriagados surpreendidos dirigindo veículos automotores, tipificando a sua conduta como infração administrativa e também como crime de trânsito.

 

Ao mencionar “o trânsito de qualquer natureza”, pretendeu o legislador estabelecer que, independentemente da maneira de utilização da via, seja por veículos, por pedestres ou mesmo por animais, é obrigatório o atendimento às regras devidamente impostas. Além disso, não só o usuário da via foi colocado de maneira genérica, mas também a forma de utilização, seja para movimentação ou imobilização.

 

Como se não bastasse, a limitação das vias terrestres, ora empregada pelo Legislador ordinário, demonstra que o CTB constitui lei com fins especiais, regulando apenas trânsito em via terrestre, sendo certo que outro tipos de transportes, quais sejam aéreo ou marítimo regulam-se por legislação própria. Neste sentido, o autor Julyver de Araújo (2010, p.66) desfruta no mesmo entender:

A limitação das vias terrestres demonstra que o CTB constitui lei especial para regular apenas este tipo de via, sendo certo que o transporte (e daí não dizermos trânsito) aéreo ou aquático (marítimo, fluvial ou lacustre) regula-se por legislação própria.

 

Dessa forma, bem como a inclusão do parágrafo único, do artigo 2º, demonstrada a clara exceção a regra, pertencente às vias internas dos condomínios, o Código de Trânsito não se aplica a vias particulares ou áreas internas, como propriedades privadas, estacionamentos de supermercados, shoppings e congêneres, muito embora as regras nele estabelecidas  possam ser usadas como balizas na orientação de tráfego e implantação na sinalização.

 

Cabe lembrar, que as normas gerais de circulação e conduta, bem como, sinalização viária, habilitação de condutores, infrações e penalidade, não se encerra no CTB, mas se estendendo pelos atos normativos emanados pelas resoluções do CONTRAN, por expressa previsão legal.

 

Por fim, e não o mais importante, o CTB, há pouco mais de 16 anos em vigor, já fora alterado dez vezes[10], visando, desde logo, o aprimoramento da legislação existente, adequando-o à realidade do trânsito, tendo sido ainda complementado administrativamente pelos atos normativos emanados pelos órgãos de trânsito e, em especial, pelas Resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN).   

 

4 - DA ANÁLISE DA COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR SOBRE TRANSITO

 

Pelas questões históricas antes expostas, percebe-se que, diante das interferências individuais inserida no contexto histórico do Direito de Trânsito, surgiram os primeiros ordenamentos jurídicos, detendo, o estado, o poder de regulamentar a vida em sociedade e regular os conflitos entre usuários e não usuários.

 

Dito isso, diante das razões já mencionadas, somente na Constituição de 1934, é que encontramos, em seu artigo 5º, inciso IX, a primeira referencia sobre o assunto de transito:

Art 5º - Compete privativamente à União: 

IX - estabelecer o plano nacional de viação férrea e o de estradas de rodagem, e regulamentar o tráfego rodoviário interestadual[11]

 

Semelhante previsão foi incluída na Constituição de 1937, em seu artigo 16, inciso XI:

Art 16 - Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes matérias:

XI - as comunicações e os transportes por via férrea, via d'água, via aérea ou estradas de rodagem, desde que tenham caráter internacional ou interestadual[12];

 

Em ambas as cartas, constatamos que não havia qualquer limitação para com normais locais que regulasse o fenômeno Trânsito, prevendo a competência privativa da União nos casos em que entre mais de um Estado fosse ligado por uma via.

 

Dando continuidade a pesquisa, o mestre Julyver de Araújo, menciona que nas Constituições posteriores[13], verifica-se que o legislador constituinte retirou a expressão “privativa” da competência da União, mantendo, em 1946, a limitação da incidência legal sobre o tráfego interestadual e ampliando, em 1967, para a utilização das vias terrestres, mantendo, o Código Nacional de Trânsito a época (Lei 5.108/66), a previsão permissiva para os Estados no que concerne a adoção de normas pertinentes à peculiaridades locais[14]. É o que se a seguir:

Lei nº 5.108, de 21 de setembro de 1966

Art 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação pública, reger-se-á por êste Código.

Art 2º Os Estados poderão adotar normas pertinentes à peculiaridades locais, complementares ou supletivas da lei federal.

 

Foi apenas em 1988, com a promulgação da atual Constituição federal, que o seu artigo 22, inciso XI, que fora dada a União à competência privativa de legislar sobre o respectivo tema, possibilitando a delegação aos Estados, mediante lei complementar. A partir daí, portanto, o artigo 2º do CNT de 1966 passou a ser inválido, não tendo sido recepcionado pela "nova" Constituição. É o que se ver logo abaixo:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

XI - trânsito e transporte;

Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

 

Indubitavelmente, umas das principais mudanças ocorridas, com a atual legislação de trânsito, foi a chamada “municipalização do trânsito”, face transferência de algumas atribuições, antes exclusivas dos Estados , para as comunas locais, como o planejamento de trânsito, a implementação de sinalização viária e a fiscalização das condutas dos usuários das vias.

 

Destaca-se ainda que algumas das estruturas já existentes, desde a vigência do Código anterior, foram mantidas, com significativas mudanças de competência, mantendo-se, todavia, o CONTRAN na coordenação máxima do Sistema Nacional de Trânsito[15].   

 

Por fim, note-se que o novo Código de Trânsito adotou um modelo de gestão sistêmica, a exemplo do que ocorre com o meio ambiente, em que coexistem órgãos dos diferentes entes estatais, sob a responsabilidade do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente). A ideia para com o modelo de gestão adotado, portanto, é proporcionar com eficiente, galgados no artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, autuação em todos os níveis em que é abarcada pela atuação estatal, atuação estatal, mantendo-se, no entanto, a autonomia de cada ente político, na organização de seus órgãos e entidades de trânsito.

 

 

5 - SISTEMA NACIONAL DE TRÂNSITO E SUA ANOMALIA

 

O Sistema Nacional de Trânsito, como prevê o artigo 5º do Código de Trânsito Brasileiro, é o conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que tem por finalidade o exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades.

 

Os órgãos que compõem o Sistema Nacional de Trânsito, nos termos do artigo 7º, do Código de Trânsito Brasileiro, é composto pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), pelos Conselhos Estaduais de Trânsito (CETRAN) e o Conselho de Trânsito do Distrito Federal (CONTRANDIFE), pelos órgãos e entidades executivos de trânsito da União (DENATRAN), dos Estados (DETRAN), do Distrito Federal e dos Municípios, pelos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (DNIT - Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes, DER - Departamento de Estradas e Rodagem, CIRETRAN - Circunscrição Regional de Trânsito), pela Polícia Rodoviária Federal, pelas Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal e as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações (JARI).

 

Dentre os órgãos quem compõem o referido Sistema, destaca-se o CONTRAN por ser o órgão máximo do Sistema[16], composto, conforme artigo 10, do CTB, por um representante do Ministério da Ciência e Tecnologia, um representante do Ministério da Educação e do Desporto, um representante do Ministério do Exército, um representante do Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, um representante do Ministério dos Transportes, um representante do ministério ou órgão coordenador máximo do Sistema Nacional de Trânsito, m representante do Ministério da Saúde, um representante do Ministério da Justiça, um) representante do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, um) representante da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), e presidido pelo dirigente do órgão máximo executivo de trânsito da União (DENATRAN).

 

Como coordenador do Sistema e órgão máximo, normativo e consultivo, possui, como principal atribuição, estabelecer as normas regulamentares referidas pelo CTB[17]. Ou seja, as resoluções do CONTRAN não possuem caráter meramente consultivo, integrando efetivamente no conjunto de normas que denominamos Legislação de Trânsito, criando obrigações aos administrados sem qualquer outorga da lei.

 

É o que se ver expressamente, no artigo 161, CTB, a seguinte definição:

Art. 161 do CTB, “Constitui infração de trânsito a inobservância de qualquer preceito deste Código, da legislação complementar ou das resoluções do CONTRAN, sendo o infrator sujeito às penalidades e medidas administrativas indicadas em cada artigo, além das punições previstas no Capítulo XIX”. Parágrafo único. “As infrações cometidas em relação às resoluções do CONTRAN terão suas penalidades e medidas administrativas definidas nas próprias resoluções”.

 

Dessa forma, por determinação da Lei nº 9.503/97, as Resoluções do CONTRAN constituem normas jurídicas infralegais de observância obrigatória, cujo desrespeito sujeita o infrator a sanções de ordem administrativas, sendo esta de uma relevância inquestionável, atribuindo o legislador à resolução uma posição privilegiada.

 

Tal previsão legal do artigo 161 e seu parágrafo único, provoca uma enorme discussões no universo jurídico, sendo impiedosamente rechaçado no mundo acadêmico, por força do princípio da legalidade insculpido no artigo 5º, inciso II da Constituição da República Federativa do Brasil, vez que, o mencionado dispositivo permiti que um ato administrativo formalmente consolidado numa resolução, sendo norma de posição hierarquicamente inferior à lei, possa criar, modificar, bem como estabelecer obrigações e deveres.

 

Para responder a esse diploma, busca-se a precisa lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 95-96) que corrobora:

Nos termos do art. 5º, II, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Aí não se diz “em virtude de” decreto, regulamento, resolução, portaria ou quejandos. “Diz-se em virtude de lei”. Logo, a Administração não poderá proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja. Vale dizer, não lhe é possível expedir regulamento, instrução, resolução, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição que o ato administrativo venha a minudenciar (grifo nosso).

 

Diante aos ensinamentos do renomado autor, de voz autorizada na doutrina e jurisprudência, evidenciada está à ousadia ou atecnia do legislador ao atribuir a resolução, competência para criar infrações às condutas no trânsito, cuja previsão abstrata cabe exclusivamente à lei em sentido formal.

 

É de se ressaltar que a Constituição de 1988 chegou a prever, expressamente, no artigo 25 do Ato de Disposições Transitórias, a revogação de todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a ação normativa. Não obstante, o Legislador de Trânsito de 1997 preferiu, em determinadas situações, deixar cargo do órgão técnico a regulamentação da matéria, prevendo taxativamente, a necessidade de complementação do texto legal pelo CONTRAN[18]

 

Ora, diante dessas considerações, não é difícil perceber que as Resoluções elaboradas pelo CONTRAN, em decorrência desse tipo de delegação, padecem, portanto, de aparente vício de inconstitucionalidade, reatando inequívoca, a impossibilidade, dentro dos conformes do verbete 25 do Ato de Disposições Transitórias, de transposição das funções atribuídas ao Poder Legislativo a órgão  administrativo, como no caso do CONTRAN, ao se analisar o artigo 68 da Constituição Federal, que exige expressamente solicitação do Presidente da República ao Congresso Nacional, para que possa elaborar as chamadas leis delegadas.

 

Sobre a mesmo linha, BANDEIRA DE MELLO (2010, p. 352) salienta:

“A regra geral contida no art. 68 da Carta Magna, da qual é procedente inferir vedação a delegação ostensiva ou disfarçada de poderes Legislativo ao Executivo, inside e com maior evidencia quando a delegação se faz em prol de entidades órgãos administrativos sediados em posição jurídica  inferior à do Presidente e que se vão manifestar, portanto, mediante atos de qualificação menor. Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições a liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que já não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções.” 

 

Desta feita, o dispositivo 161 do CTB e as Resoluções elaboradas pelo CONTRAN, tecnicamente, revela uma flagrante violação ao Princípio da Legalidade e da Reseva Legal, concernente ao dispositivo 5, incisos II e XXXIX, da Constituição Federal, não podendo, a autoridade de órgão administrativo, no exercício de sua atribuição regulamentar, inovar questões na esfera jurídica por meio das resoluções do CONTRAN, principalmente para criar definição inflacionais ou para cominar-lhes sanções.

 

Nesse olhar, o artigo 59 da Constituição Federal, não diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’ ou ‘resolução’, o que, destarte, leva-nos a crer que o Legislador Originário não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir na liberdade ou na propriedade das pessoas, exigindo, para tanto, lei em sentido estrito.

 

Por fim, tendo em vista à nova realidade do trânsito brasileiro, percebe-se que, o Legislador Derivado, ao instituir diretrizes no trânsito, preferiu sacrificar, em prol de um sistema mais dinâmico, parte de sua competência em razão da lentidão que é o seu procedimento parlamentar.

 

 

6 - DO PODER DE POLÍCIA E AS INFRAÇÕES DE TRÂNSITO

 

Antes de darmos continuidade ao objeto em estudo, faz-se necessário indagarmos sobre a questão do que vem a ser Poder de Policia, seus elementos e atributos, para adentrarmos na questão da licença veicular e outras a ser utilizada no expressar desta pesquisa.

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O vocábulo polícia origina-se do grego politeia, sendo utilizado para designar todas as atividades da cidade-estado (polis), sem qualquer relação com o sentido atual da expressão.

 

Na Idade Média, durante o período feudal, o príncipe era detentor de um poder conhecido como jus politiae e que designava tudo o que era necessário à boa ordem da sociedade civil sob autoridade do Estado, em contraposição à boa ordem moral e religiosa, de competência exclusiva da autoridade eclesiástica.

 

Posteriormente, no final do século XV, o jus politiae volta a designar, na Alemanha, toda atividade do Estado, compreendendo poderes amplos de que dispunha o príncipe, de ingerência na vida privada dos cidadãos, incluindo sua vida religiosa e espiritual, sempre sob o pretexto de alcançar a segurança e o bem-estar coletivo.

 

Em geral, o poder de polícia foi tratado como decorrente de uma atuação negativa da Administração e não como a competência da Administração de estimular determinado comportamento dos administrados, de forma positiva. No entanto, este Poder ao qual era galgado pelo príncipe, foi sofrendo restrições em seu conteúdo, deixando de alcançar, paulatinamente, primeiro as atividades eclesiásticas, depois as militares e financeiras, chegando a um momento em que se reduzia a normas relativas à atividade interna da Administração.  

 

Com o Estado de Direito, inaugura-se nova fase em que já não se aceita a ideia de existirem leis a que o próprio príncipe não se submeta. Em momento mais adiante, o Estado de Direito desenvolveu-se, baseado nos princípios do liberalismo, em que a preocupação era assegurar ao indivíduo uma série de direitos subjetivos, dentre os quais a liberdade. Em consequência, tudo o que significasse uma interferência nessa liberdade deveria ter um caráter excepcional, só podendo limitar o exercício dos direitos individuais para assegurar a ordem pública.

 

Com a evolução do Estado Democrático de Direito e com o crescente reconhecimento de que o Direito Administrativo deve se voltar, cada vez mais, aos cidadãos e não ao engrandecimento do poder estatal, que se pode entender de poder de policia na atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse coletivo.

 

Esse interesse coletivo diz respeito aos mais variados setores da sociedade, tais como segurança, moral, saúde, meio ambiente, propriedade, defesa do consumidor, relação de emprego, exercício de profissões, entre outros.

 

No direito brasileiro, o conceito de poder de polícia é definido no artigo 78 do Código Tributário Nacional, que estabelece, in verbis:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.

 

Da mesma forma, a doutrina brasileira conceitua o poder de polícia como sendo uma atuação da Administração essencialmente restritiva e com fundamento no interesse público.  É o que se vê na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello e a sua respeitável conceituação:

 “[...] pode-se definir a polícia administrativa como a atividade da Administração Pública, expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, mediante ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, impondo coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (“non facere”) a fim de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo” (2010, p. 227)

 

Nesse liame, a ilustre professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2013, p. 123) aponta o conceito moderno de Poder de Polícia, compreendendo “atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”.

 

Os mencionados juristas entendem que o poder de polícia tem por fundamento a supremacia geral exercida pela Administração Pública sobre todos os particulares, de forma ampla, não se baseando em relações específicas mantidas com alguns. 

 

Nota-se, portanto, que o conceito clássico de poder de polícia adotado pela doutrina nacional e pelo dispositivo normativo leva-nos a conclusão que não há direitos individuais absolutos a esta ou aquela atividade, mas ao contrário, deverão estar subordinados aos interesses coletivos. Daí poder dizer-se que a liberdade e a propriedade são sempre direitos condicionados, vistos que sujeitos às restrições necessárias a sua adequação ao interesse público. 

 

Não obstante a tal matéria, a competência para exercer o poder de polícia é, em princípio, da pessoa federativa à qual a Constituição Federal conferiu o poder de regular a matéria. Isso significa que será invalidado o ato de polícia praticado por agente de pessoa federativa que não tenha competência constitucional para regular a matéria e, portanto, para impor a restrição.

 

6.1 - NATUREZA E CARACTERÍSTICAS:

 

Quando tratamos do poder de polícia administrativa de trânsito, é importante destacar tanto suas características, quais sejam discricionária, autoexecutória e exigível, quanto sua natureza, repressiva e preventiva.

 

Quanto à primeira característica, reinas algumas controversas, no que concerne ser o Poder de Polícia vinculado ou discricionário. No entender deste a que subscreve, a característica a ser atribuída devera ser examinada a luz do enfoque da atuação administrativa.

 

Ou seja, se apresenta discricionário, nos limites da lei, uma vez que, a Administração Pública, de forma repressiva, valora, no caso concreto, critérios de conveniência e oportunidades aos exercícios dos direitos individuais. Nesses hipóteses, a lei deixa certa margem de liberdade de apreciação quanto a determinados elementos (como o motivo ou o objeto), mesmo porque ao legislador não é dado prever todas as hipóteses possíveis a exigir a atuação de polícia. É o caso, por exemplo, dado pelo Ilustre Professor Carvalho Filho (2012, p. 85 e 86), em que autoridades públicas enumeram apenas alguns rios onde a pesca se torna proibida.

 

Outrora, quando o exercício do direito individual transbordar risco potencial à coletividade, esses só poderão ser exercidos após o consentimento da Administração, nos limites deixado pela lei. Esse consentimento se realizará através da expedição de alvarás de licença e de alvará de autorização. Na licença, a lei já pré-estabelece todos os pressupostos para a sua concessão. É o caso, por exemplo, da licença para dirigir veículo (é a troca da PPD para a Carteira Nacional de Habilitação), que será concedida desde que tenha cumprido o disposto no §3° do art. 148 do CTB, e das vistorias de veículos automotores, que será apreciada mais adiante. Por outro lado, já a licença de autorização tem a natureza discricionária, de modo que a lei prever alguns requesitos, deixando para com a Administração Pública a avaliação da conveniência e oportunidade.

 

Neste diapasão, conclui-se que, quando atuada de forma repressiva, o Poder de Polícia será discricionário. Por conseguinte, quando a atuação for preventiva, este poderá ser, tanto vinculado, quando envolver licença, quanto discricionário, quando envolver autorização. Portanto, incorreto será qualificar o Poder de Polícias somente como um poder discricionário.

 

Já à auto-executoriedade, esta indica a possibilidade de a Administração Pública obter a satisfação de um direito ou dirimir um litígio de que participa sem a intervenção imediata do Poder Judiciário, produzindo os atos materiais necessários a obter o bem da vida buscado. A auto-executoriedade pode conduzir obviamente ao impedimento da pratica de certos atos pelos particulares.

 

Ressalta-se ainda, que essa segunda característica, obedece estritamente aos princípios da legalidade e da proporcionalidade, não havendo auto-executoridade sem lei que assim o preveja. Ainda sim, quando a lei tenha autorizado, a execução compulsória do ato administrativo por parte da própria Administração, só será admitida quando não existir outra alternativa menos lesiva, sendo o uso da força a solução necessária para preservar a ordem jurídica e impor a realização dos direitos fundamentais. Todavia, é de grande importância que o uso dessa força seja reflexo de um devido processo legal, acompanhado da observância de todas as formalidades comprobatórias necessárias e das garantias inerentes ao processo, não se admitindo, nas palavras de Bandeira de Mello[19] (2010, p. 207), “invocações de fórmulas genéricas indeterminadas, tais como, ‘interesse público’, ‘Bem Comum’, ‘Segurança Pública’ etc”.

 

Nesse mesmo contexto, o prof. Carvalho filho (2012, p. 87) corrobora:

Impõem-se, ainda, duas observâncias. A primeira consiste no fato de que há atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, como é o caso das multas, cuja cobrança só é efetivamente concretizada pela ação própria na via judicial. A outra é que a autoexecutoriedade não deve constituir objeto de abuso de poder, de modo que deverá a prerrogativa compatibilizar-se com o princípio do devido processo legal para o fim de ser a Administração obrigada a respeitar as normas legais (grifo nosso). 

A despeito de a multa não ser autoexecutoria, é possível que seu pagamento se configure como condição para que a Administração pratique outro ato em favor do interessado. Exige-se, contudo, que tal condição tenha expressa previsão em lei (grifo nosso). 

 

Sob esse trilha, ainda reforça a prof. Maria Sylvia Di Pietro (2013, p. 126), no sentido:

A autoexecutoriedade não existe em todas as medidas de polícia. Para que a Administração posso se utilizar dessa faculdade, é necessário que a lei a autorize expressamente, ou que se trate de medida urgente, sem a qual poderá ser ocasionado prejuízo maior para o interesse público. No primeiro caso, a medida deve ser adotada em consonância com o procedimento legal, assegurando-se ao interessado o direito de defesa, previsto expressamente no artigo 5º, inciso LV, da Constituição.  

 

E, por ultimo, pelo atributo da exigibilidade, a Administração, se vale de meios indiretos de coação. Cite-se, por exemplo, a multa; ou a impossibilidade de licenciamento do veículo enquanto não pagas as multas de trânsito. Para tanto, a multa de trânsito constitui tão somente uma espécie das sanções administrativas previstas no ordenamento respectivo, aplicável àqueles que descumpre os preceitos normativos impostos à coletividade, espelhando-se na atividade repressiva do próprio Poder de Polícia.

 

Diante as ditas considerações defrontados, Administração Pública, no exercício do poder de polícia administrativa, pode tomar, em razão da sua discricionariedade, medidas necessárias à manutenção da ordem, a liberdade individual, a propriedade pública e particular e o bem-estar coletivo, sem depender da intervenção previa de outro poder (do Poder Judiciário) para torna-lo efetivo.

 

Assim, diante dos esclarecimentos despojados até aqui, surgir a possibilidade, desde então, de se questionar sobre regularidade da exigência de quitação das multas para o licenciamento, sobre a transferência de propriedade e a comunicação de venda à entidade de Trânsito e a restituição dos veículos quando apreendidos, elencados nos verbetes 131, §2º, 262, §2º e do 134, do CTB.

 

7 - DO LICENCIAMENTO

 

Dentre dos diversos temas tratados no Direito Tributário, o assunto a ser trabalhado neste artigo fora instigado a partir da análise do artigo 131, §2º, do CTB, no que concerne à exigência do pagamento de multas, como requisito para licenciamento de veículos automotores.

 

A despeito do que estiver (ou não) contido na lei, temos de identificar o conteúdo jurídico do licenciamento, até mesmo para sabermos quais os seus limites.

 

Obviamente, o licenciamento é uma espécie de licença, isto é, é um procedimento necessário à obtenção de uma licença. Mas o que vem a ser uma licença?

 

Como já fora objeto de análise em capítulo anterior, podemos definir a licença como o ato vinculado por meio do qual a Administração confere ao interessado consentimento para o desempenho de certa atividade. Não são todas as atividades que reclamam a licença do Poder Público. Há, no entanto, algumas atividades que o indivíduo só pode exercer de forma legítima se obtiver o necessário ato administrativo de licença. Através da licença, o Poder Público exerce seu poder de policia fiscalizatório, verificando, em cada caso, se existem, ou não, óbices legais ou administrativos para o desempenho da atividade reivindicada.

 

A respeito do tema, Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2009, p.90), em linhas gerais, corrobora:

No caso da licença, há um direito preexistente, embora não exequível, à atividade ou ao uso do bem. O consentimento administrativo se vincula a constatação de que as limitações opostas foram resolvidas, ou seja, a conditio iuris para seu exercício, satisfeita. É inexato, portanto, afirmar-se que a licença gere direitos; ela apenas os declara exequíveis. 

 

Como visto pela doutrina, a licença trata-se de ato vinculado, porque o agente não possui qualquer liberdade quanto à avaliação da conduta. Se o interessado preenche os requesitos legais pra a concessão da licença, tem o direito de obtê-la, e, se houver denegação, admissível será o mandado de segurança para superar tal abuso (artigo 5º, LXIX, CF).

 

No que tange o que vem a ser o ato de licenciamento, esclarece o artigo 130 do CTB:

Art. 130 - Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, para transitar na via, deverá ser licenciado anualmente pelo órgão executivo de trânsito do Estado, ou do Distrito Federal, onde estiver registrado o veículo [...] (grifo nosso).

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O veículo, portanto, deve ser licenciado para a verificação de suas condições para transitar na via. E isto é confirmado pelo art. 131, § 3º, do CTB:

Art. 131 - [...]. § 3º - Ao licenciar o veículo, o proprietário deverá comprovar sua aprovação nas inspeções de segurança veicular e de controle de emissões de gases poluentes e de ruído, conforme disposto no art. 104 (grifo nosso).

Art. 104. Os veículos em circulação terão suas condições de segurança, de controle de emissão de gases poluentes e de ruído avaliadas mediante inspeção, que será obrigatória, na forma e periodicidade estabelecidas pelo CONTRAN para os itens de segurança e pelo CONAMA para emissão de gases poluentes e ruído (grifo nosso).

 

Com efeito, o licenciamento veicular resguarda os seguintes interesses públicos: a segurança das vias públicas, o sossego público (ruídos) e a proteção ambiental (emissão de gases). Portanto, o legislador derivado, ao instituir o requisito financeiro nos critérios para a obtenção do licenciamento, no caso do artigo 131, §2º, que exige o recolhimento de multas como elemento essencial ao ato de licenciamento, preferiu sacrificar a razoabilidade, posto que a razão deflagradora do ato de licenciar não tem um viés arrecadatóriamas sim, de natureza assecuratória, como típico ato do poder de polícia do Estado.

 

Ademais, voltada a um registro grosseiro, porém pratico de se compreender, licenciamento, segundo os preceitos absurdos, instituído pelo legislador derivado, esculpido no artigo 131, §2º, é o conteúdo jurídico de débitos relativos a tributos, encargos e multas.

 

Dito isso, e a partir da análise do conceito de tributo, que veremos a seguir, mais fácil fica de compreendermos a irregularidade da exigência do pagamento da multa de trânsito como requisito para licenciamento de veículos automotores.

 

7.1 - O POSICIONAMENTO ADOTADO POR ALGUNS TRIBUNAIS

 

Conforme prescreve o dispositivo 3º do CTN, “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

 

Com efeito, o próprio Código Tributário Nacional, ao definir o tributo, entendeu de excluir o seu conceito a prestação ‘que constitua sanção de ato ilícito’. Daí se entende que tributo não é multa, e a multa não é tributo. Aquela, por sua vez, decorre da inobservância de condutas administrativas legalmente previstas.

 

Nessa toada, o artigo 157 do CTN preconiza que “a imposição de penalidade não ilide o pagamento integral do crédito tributário”. Veja-o:

Art. 157. A imposição de penalidade não ilide o pagamento integral do crédito tributário.

 

Tal comando vem corroborar a distinção conceitual e estrutural entre tributo e multa, indicando que a multa não suprime a obrigação de pagar integralmente o crédito tributário, salvo se gozar de liquidez, certeza e exigibilidade.

 

Para gozar de liquidez, certeza e exigibilidade (auto-executoriedade), tanto os tributos como as multas, exige-se a inscrição em Dívida Ativa de acordo com o artigo 3º, da Lei nº 6.830/80. Essa inscrição, que se constitui no ato de controle administrativo da legalidade, será feita pelo órgão competente para apurar a liquidez e certeza do crédito (apurada e inscrita na Procuradoria da Fazenda), sendo cobrada via execução judicial, regida pela Lei nº 6.830/80 e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.

 

Ora, se as multas, para terem exigibilidade, dependem da inscrição em Dívida Ativa, como podem os DETRANs, antes mesmo deste ato formal de inscrição em Dívida Ativa, conferir autoexecutoriedade aos autos de infração de trânsito, e exigir o recolhimento dos seus valores pecuniários, como requisito para o licenciamento de veículos?

 

Sobre essa questão, alguns tribunais tem se posicionado no sentido de não admitir, que as autoridades de trânsito condicionem o licenciamento de veículos ao pagamento de multas administrativas. Isto porque, entendem que a Administração Pública dispõe de instrumentos legais e processuais, para cobrar seus créditos, não lhe sendo permitido, se utilizar de verdadeiras coações administrativas ou condicionamentos, como se dá nesses casos de exigência de pagamento das multas, pela autoridade administrativa, para que se renove o licenciamento do veículo. É o que se vê logo abaixo:

"MANDADO DE SEGURANÇA - VISTORIA DE VEÍCULO - MULTAS DE TRÂNSITO - É vedado ao poder público condicionar o licenciamento ao pagamento, impedindo o motorista de exercer a sua profissão. Confirmada a infração em procedimento administrativo, previsto no Código de Trânsito Brasileiro, cumpre à autoridade inscrever o valor das multas na dívida ativa e promover a execução fiscal na via judicial. A execução extrajudicial não se insere no poder de polícia da administração pública..." (TJ-RJ. Apelação cível nº 9218/2001, 7ª C.Cív., Rel. Des. Carlos C. Lavigne de Lemos - 06.11.2011.) (grifo nosso).

REEXAME NECESSÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA COM PEDIDO DE LIMINAR - CERTIFICADO DE REGISTRO DE LICENCIAMENTO DE VEÍCULO - CONDICIONAMENTO DA EMISSÃO DO CERTIFICADO DE REGISTRO E LICENCIAMENTO DE VEÍCULO AO PAGAMENTO PRÉVIO DE MULTAS - ILEGALIDADE DO CONDICIONAMENTO - AUSÊNCIA DE PROVA DE NOTIFICAÇÃO VÁLIDA E REGULAR E DE NOTIFICAÇÃO PRÉVIA- SÚMULA 312 - SENTENÇA MANTIDA EM REEXAME NECESSÁRIO. 1 - Estando comprovado nos autos o pagamento dos tributos que recaem sobre o veículo, assim como a existência de recurso administrativo e/ou judicial pendente de julgamento, ofende direito líquido e certo do impetrante condicionar a renovação do licenciamento de veículo - Certificado de Registro de Licenciamento de Veículo - ao prévio pagamento de multas, ainda mais quando dispõe o Estado de meios judiciais para cobrá-las. 2 - É ilegítima a recusa da Autoridade em fornecer o Certificado de Registro de Licenciamento de veículo ao argumento de existir multa por infração de trânsito não paga, principalmente quando não há prova da regular e prévia notificação ao suposto infrator. (TJ-MG. Apelação cível nº 10024056995236001 - 21/07/2006) (grifo nosso).

APELAÇÃO CÍVEL - ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA -MULTAS DE TRÂNSITO - PAGAMENTO PRÉVIO - ÜCENCIAMENTO -SENTENÇA QUE CONCEDE EM PARTE A ORDEM PARA DETERMINAR O LICENCIAMENTO INDEPENDENTEMENTE DO PAGAMENTO DAS MULTAS - REEXAME Necessário suscitado e Recurso voluntário pela FESP - Desprovímento de rigor./. Reexame necessário não conhecido porque não superado o valor de alçada - Inteligência do art. 475 , § 2º ,do CPC - Precedentes da Corte e do C. STJ.2. O condicionamento do licenciamento do veículo ao pagamento prévio de multas constitui ato ilegal, pois a Administração Pública possui meios apropriados para a cobrança de multas tanto administrativamente como judicialmente - Súmula n. 127 do C. STJ - Precedentes desta Corte - Segurança cabível neste particular apenas.Sentença mantida - Reexame Necessário não conhecido e Recurso da FESP desprovido. (TJ-SP - Apelação cível nº 0138619-66.2007.8.26.0000 - 06/06/2011) (grifo nosso).

 

Diante das decisões supracitadas, vê-se que alguns tribunais tem se posicionado no sentido que, tais atos (multas de trânsito), quando influenciadoras em valores pecuniários (no licenciamento de veículos), exigi-se a cobrança por ação própria na via judicial. Assim, entendem ser ato ilegal o condicionamento do licenciamento do veículo ao pagamento prévio da multa de trânsito quando a Administração Pública possui meios apropriados para a cobrança das mesmas, seja administrativamente como judicialmente.

 

Nessa mesma linha, é o entendimento do professor Carvalho Filho (2012, p. 87):

Impõem-se, ainda, duas observações [nota nossa: sobre a auto-executoriedade]. A primeira consiste no fato de que há atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, como é o caso das multas, cuja cobrança só é efetivamente concretizada pela ação própria na via judicial [...].

 

Para tanto, conclui-se que a exegese empregada ao art. 131, § 2º, do CTB acaba concedendo à administração pública um poder de auto-executoriedade para certos atos administrativos (multas de trânsito), constituindo ato ilegal, aos olhos de alguns tribunais, o condicionamento do licenciamento do veículo ao pagamento prévio de multas.

 

6.2 - O POSICIONAMENTO ATUAL

 

Outro ponto a considerar é o de que a auto-executoriedade não depende de autorização de qualquer outro Poder, desde que a lei autorize o administrador a praticar o ato de forma imediata.

 

A despeito da multa não ser autoexecutória, muitos assim entendem, ser possível que seu pagamento se configure como condição para que a Administração pratique outro ato em favor do interessado, exigindo, contudo, que tal condição tenha expressa previsão em lei.

 

De voz autorizada tanto na doutrina quanto na jurisprudência, o professor Carvalho Filho (2012, p. 88), corrobora sobre o tema: “Se a lei fez expressamente a previsão, não há fundamento para impugnar a exigência”.

 

Neste mesmo sentido, o STJ tem entendido que, tendo em vista previsão expressa no Código de Trânsito Brasileiro, a multa de transito poderia figurar como condição para outro ato administrativo. É o que se vê logo abaixo:

ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. LICENCIAMENTO DE VEÍCULO. NOTIFICAÇÃO DA AUTUAÇÃO. AFERIÇÃO DA EXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. IRREGULAR NOTIFICAÇÃO. SÚMULA 127 /STJ. 1. Aferir a existência ou não de direito líquido e certo à concessão da segurança demanda exceder os fundamentos colacionados no acórdão combatido, com a incursão no conteúdo fático-probatório dos autos, o que implica reexame de provas - inviável em recurso especial, nos termos do enunciado 7 da Súmula desta Corte de Justiça. 2. O entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que é ilegal, como condição para o licenciamento do veículo, a exigência do pagamento de multa imposta sem prévia notificação ao infrator para defender-se em processo administrativo. Não havendo a prévia e regular notificação ao infrator, para fins de defesa, tem garantido o direito de renovar licenciamento de veículo com multas pendentes de pagamento. Aplicação do enunciado 127 da Súmula do STJ: "É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado" (STJ. AgRg no Ag nº  1378215 SP 2011/0000444-2, segunda turma, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS - 04/04/2011) (grifo nosso).

 

Assim, para o atual posicionamento, tanto na doutrina administrativa quanto na jurisprudência, é possível condicionar a expedição do licenciamento do veículo ao pagamento de multas pendentes, desde que a Administração Pública não deixe de observar, ao proprietário do veículo, notificação de penalidade para apresentação de defesa e do contraditório, pois com esta é que a sanção se torna exigível.

 

Por tanto, a exigência de pagamento dos encargos sobre o automóvel para que se possa licenciá-lo, disposta no art. 131, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro, legitima a conduta do DETRAN, não se aplicando o verbete nº 127 da Súmula do STJ, quando o proprietário foi previa e regularmente notificado das infrações.

 

Assim, não se tem dúvida da flagrante inconstitucionalidade do § 2º do art. 131, que, por esta razão, deveria desaparecer do atual Código de Trânsito Brasileiro, já que a Administração Pública dispõe de instrumentos próprios para receber tais dívidas.


Neste contexto, aos olhos de outro aspecto, registra-se ainda que, como o licenciamento não tem função arrecadatória e sim assecuratória (como ato típico do poder de polícia), a exigência do pagamento de multas de trânsito, ainda que fosse a título legal, atenta contra o princípio da razoabilidade, posto que a fixação deste requisito em lei viola a necessária pertinência pública protegidos com a licença (a segurança das vias públicas, o sossego público [ruídos] e a proteção ambiental [emissão de gases]).

 

Assim, diante todos esses diapasões, não se tem outra visão se não que o legislador derivado, ao instituir o requisito financeiro nos critérios para a obtenção do licenciamento, no caso do artigo 131, §2º, que exige o recolhimento de multas como elemento essencial ao ato de licenciamento, preferiu sacrificar a razoabilidade, em prol a não permitir que as multas impostas viessem a permanecer indefinidamente no ordenamento jurídico. Isto porque, a razão deflagradora do ato de licenciar não tem um viés arrecadatóriamas sim, de natureza assecuratória, como típico ato do poder de polícia do Estado, estando o verbete em expressa contrariedade com os fins almejados pela República Federativa do Brasil, despojado no artigo 3º, tais como a construção de uma sociedade livre justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, tendente à redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem-estar da coletividade.

 

8 - A VINCULAÇÃO DA LIBERAÇÃO DO VEÍCULO AO PRÉVIO PAGAMENTO DO ENCARGO EM LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA

 

Outro aspecto relevante advindo do novo regulamento do trânsito no Brasil e objeto, também, aqui focado, fora às indevidas vinculações da liberação dos veículos a certas condições.  Ou seja, ao constatarem a infração, na prática, os agentes das autoridades de trânsito, providenciam a remoção do veículo para o pátio de recolhimento, aplicando a penalidade de apreensão sem garantir o devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa.

 

Tal aspecto é preconizado no verbete 262, §2º, do CTB[20], em muito é questionado, uma vez que, ao veículo apreendido em decorrência de penalidade aplicada e recolhido ao depósito da Administração, para a sua liberação, é atribuído a condição de quitação dos encargos relativos às multas e outros previstos em legislação específica (tributos, por exempo), ferindo todas as garantias inerentes ao due processo f law, acarretando, por conseguinte, outras penalidade acessórias.

 

Como se não bastasse, o assunto se torna ainda mais polêmico, quando em torno deste, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta-se pela legalidade do condicionamento, na hipótese de veículos apreendidos, ao pagamento da multa e outros encargos previsto em legislação especial, desde que existido previamente notificação das infrações. É o que se ver logo abaixo:

ADMINISTRATIVO. TRANSPORTE IRREGULAR DE PASSAGEIROS. ART. 231, VIII, DO CTB. RETENÇÃO DO VEÍCULO. LIBERAÇÃO CONDICIONADA AO PAGAMENTO DE MULTAS. IMPOSSIBILIDADE. 1. É ilegítimo o ato de autoridade que condiciona a liberação de veículo retido por realizar transporte rodoviário interestadual de passageiros, no regime de afretamento, sem a devida autorização, ao pagamento da multa. Precedentes. 2. A infração tipificada no art. 230, V, do CTB, enseja aplicação da pena de multa e a apreensão do veículo, com a conseqüente remoção ao depósito. Para a infração do art. 231, VIII (caso dos autos), a lei comina somente pena de multa, fixando como medida administrativa a retenção do veículo até que seja sanada a irregularidade que deu azo à aplicação da penalidade pecuniária. 3. Na hipótese de veículos apreendidos, o art. 262, § 2º, do CTB autoriza o agente público a condicionar a restituição ao pagamento da multa e dos encargos, previsão legal que inexiste para os veículos somente retidos (grifo nosso). (STJ – Resp nº 792555-BA, Relator Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 04/05/2006, SEGUNDA TURMA. DJ 18/05/2006).

 

Tal orientação, despojada pelo Egrégio STJ, transformou o dispositivo 262, §2º, do CTB, num excelente negócio em todo o País, terceirizando os pátios de apreensão de veículos, fixando os preços do reboque e das diárias em valores exorbitantes. Assim sendo, a administração dos pátios tornou-se uma atividade altamente lucrativa, gerando dividendos para as empresas que os administram e para o próprio Poder Público.

 

Contudo, para a infelicidade de alguns, esse entendimento, ora já firmado pela Egrágia Corte, encontra-se ratificado e sumulado no enunciado 127 do STJ, tal qual “é ilegal a exigência do pagamento de multas como condição para restituição do veículo ao proprietário, exceto se houver a devida notificação das infrações”.

 

Portanto, o Superior Tribunal de Justiça, por meio de interpretação conforme a Constituição Federal, entende que o preposto da Administração de trânsito não poderia exigir o pagamento de multas das quais o interessado ainda não foi notificado, em razão da garantia do devido processo legal e da ampla defesa. Todavia, se as multas em cobrança já fossem devidamente notificadas, restando escoado o prazo para defesa, nada impediria que a autoridade de trânsito condiciona-se a liberação do veículo à respectiva quitação dos encargos relativos à multa.

 

Neste sentido, firma-se a jurisprudência no sentido de que, desde que não escoado o prazo para defesa, a Administração só pode condicionar a liberação do veículo ao pagamento das despesas com remoção e estadia. É o que se vê a seguir:

Agravo regimental NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. TRÂNSITO. APREENSÃO DE VEÍCULO. LIBERAÇÃO CONDICIONADA AO PAGAMENTO DE MULTAS E DESPESAS DE REMOÇÃO E ESTADA. LIMITAÇÃO DE 30 DIAS. MATÉRIA SUBMETIDA AO RITO DO ARTIGO 543-C DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E DA RESOLUÇÃO Nº 8/2008 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (RECURSOS REPETITIVOS). AGRAVO IMPROVIDO. 1. "É firme o entendimento nesta Corte no sentido de que é legal a exigência de prévio pagamento das multas de trânsito, tributos e despesas com remoção e estada no depósito para liberação de veículo apreendido, sendo que as taxas de estada somente poderão ser cobradas até os 30 primeiros dias." (AgRgAg nº 1.076.546/RJ, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, in DJe 21/5/2009). 2. Agravo regimental improvido. (STJ - AgRg no Ag: 1279415 RJ 2010/0030491-7, Relator: Ministro HAMILTON CARVALHIDO, Data de Julgamento: 04/05/2010, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/05/2010).

 

APELAÇÃO CÍVEL. DETRAN. APREENSÃO DE VEÍCULO. LIBERAÇÃO CONDICIONADA AO PAGAMENTO DAS MULTAS JÁ VENCIDAS, DESPESAS COM REMOÇÃO E ESTADA LIMITADAS A TRINTA DIAS. Segundo entendimento do STJ (Repercussão Geral), a liberação de veículo apreendido por ausência de registro e licenciamento fica condicionada ao pagamento das multas já vencidas e das despesas com remoção e depósito, estas limitadas aos primeiros trinta dias (Resp nº 1104775). Na hipótese dos autos, existindo multas de trânsito vencidas, poderão ser exigidas como condição para a liberação do veículo, quer por ter se esgotado o prazo para defesa sem manifestação do interessado, quer por já ter sido julgada a impugnação ou o recurso administrativo. O veículo somente pode trafegar com o licenciamento, cuja expedição depende da quitação das multas já vencidas, nos termos do art. 131, § 2º, do CTB. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70054284328, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 10/07/2013). (TJ-RS - AC: 70054284328 RS , Relator: Marco Aurélio Heinz, Data de Julgamento: 10/07/2013, Vigésima Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 22/07/2013).

 

A despeito do assunto, também, este já fora traçado pelo renomado professor Carvalho Filho (2012, p. 88), corroborando sobre o tema: “Se a lei fez expressamente a previsão, não há fundamento para impugnar a exigência”.

 

Assim, alheios a todas estas artimanhas e partindo do pressuposto de que a Administração Pública deve atuar na conformidade da lei, a fiscalização e a imposição de sanções nada mais são do que o efetivo cumprimento do mandamento legal. Nesse caminho, de nada adiantaria prescrever-se determinado comportamento, sendo inane e ineficiente, se não houvesse uma consequência para o seu cumprimento. 

 

Assim, nas palavras de Hely Lopes Meirelles (2008, p. 142) dialoga: “se não fosse coercitivo e não estivesse aparelhado de sanções para os casos de desobediência à ordem legal da autoridade competente, esse seria inane e ineficiente”.  

 

8.1 - DA INDEVIDA VINCULAÇÃO AO PRÉVIO PAGAMENTO DO IPVA

 

Tecida todas essas considerações, destaca-se o mais importante das ponderações registradas até aqui, que é a exigência do pagamento do IPVA como condição para a liberação do veículo.

 

Inúmeras são as pessoas que, nos dias de hoje, ficam na eminência de ter seu veiculo apreendido por não pagar o IPVA. Quem nunca já se passou, “ao terminar de fazer a velha curva”, dentro de uma “cilada”, “armadilha”, denominada “BLITZ”, articulado(a) Detran/PM/Transalvador/Polícia Rodoviária (Estadual ou Federal),  com “direito” de ser guinchado e levado para o "curral" da Administração Pública, com todas as despesas pelo serviços públicos prestados? Isso sem acrescentar os riscos de danos para com o veículo, não almejando a possibilidade de ter seu bem desaparecido nas dependências do órgão[21].

 

Sob esse contexto, a Administração Pública, através do exercício do poder de Polícia administrativa, muitas das vezes tem agido em desconformidade com o Princípio da Não Limitação ao Tráfego de Bens, ora almejado na doutrina tributária e expressa na Constituição Federal, a seguir exposto:

Art. 150: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...)

V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público.

 

Segundo esse princípio, ora esculpido no verbete 150, V, da CF, o trânsito de pessoas e bens, entre Municípios, Estados e o Distrito Federal, não pode ser impedido por decorrência da imposição de um tributo, no caso em estudo o IPVA. Desta forma, o tráfego entre estas unidades da federação não será fato gerador de qualquer tributo, funcionando, verdadeiramente, como mecanismos de defesa do contribuinte frente a voracidade do Estado no campo tributário.

 

Nos dizeres da doutrina de Hugo de Brito Machado (2008, p. 58), registra-se: “tais princípios existem para proteger o cidadão contra os abusos do Poder. Em face do elemento teleológico, portanto, o intérprete, que tem consciência dessa finalidade, busca nesses princípios a efetiva proteção do contribuinte”. 

 

Percebe-se, portanto, que o legislador constituinte, de forma sucinta, pretendeu evitar que o Poder Público, no que concerne para a liberação do veículo apreendidos, se valesse do tributo para atingir, mesmo de modo reflexo ou indireto, as liberdades patrimoniais.

 

Com efeito, traçadas essas ponderações, não poderia o Administrante ou seus prepostos, em decorrência no disposto art. 262, §2º, do CTB, condicionar a liberação do veículo apreendido ao prévio pagamento do IPVA, nem mesmo guinchá-lo pelo atraso ou a falta do mesmo.

 

Vale ressaltar, que liberação do veículo condicionada ao pagamento de multas vencidas e outros débitos do veículo, anteriores à infração que originou sua retenção, desde que não vinculada ao IPVA, é uma exigência legal e preponderante das características do poder de policia, quais sejam a auto-executoriedade e exigibilidade, como assim já fora trabalhado.

 

Como se não bastasse, esse entendimento, ora desmioçado até aqui, encontra-se guarida na jurisprudência, conforme se vê:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONDICIONAMENTO DE LIBERAÇAO DE MERCADORIAS APREENDIDAS AO PAGAMENTO DE TRIBUTOS. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1 Na esteira do entendimento amplamente dominante no âmbito do STJ, tendo em vista que a Fazenda possui meios próprios para a cobrança de créditos tributários, não se pode admitir ato administrativo com vistas a "[...]impedir ou cercear a atividade profissional do contribuinte, para compeli-lo ao pagamento de débito, uma vez que este procedimento redundaria no bloqueio de atividades lícitas, mercê de representar hipótese da autotutela, medida excepcional ante o monopólio da jurisdição nas mãos do Estado-Juiz.[...]" (STJ - REsp 714751/MT; Rel. Min. LUIZ FUX - 1ª Turma - 04/08/2005 - DJ: 29.08.2005, p. 197) 2 - Recurso conhecido e provido para reformar a decisão de primeiro grau, determinando a liberação das mercadorias apreendidas referenciadas nos autos originários independentemente do pagamento de débitos tributários pendentes (grifo nosso). (TJ-ES - AI: 24079007779 ES 24079007779, Relator: ARNALDO SANTOS SOUZA. Data de Julgamento: 22/04/2008, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 28/05/2008).

 

Cumpre destacar ainda, que tal entendimento encontra-se consolidado no Supremo Tribunal Federal, nas Súmulas de números 70 e 323:

SÚMULA Nº 70

É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo

SÚMULA Nº 323

É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

 

Dito isso, a apreensão de automóveis e o óbice à liberação exclusivamente em virtude do não recolhimento do IPVA constituem verdadeiras sanções políticas impostas pelo Fisco, posto que visam compelir o pagamento de tributo, em claro desrespeito às garantias fundamentais do contribuinte. Alem do mais, a situação agrava-se com o acréscimo dos valores do reboque e da diária, piorando ainda mais quando leiloado.

 

Aqui, não se nega que os atos da administração tributária sejam atribuídos de imperatividade, mas sim o dever do Fisco valer-se do devido processo legal, consubstanciado no direito à ampla defesa e ao contraditório, formalizando a exigência da obrigação tributária por meio de lançamento fiscal e, em seguida, notificar o contribuinte para que, querendo, apresente impugnação administrativa. Por conseguinte, não sendo apresentada defesa ou sobrevindo decisão irrecorrível na esfera administrativa, constitui-se definitivamente o crédito tributário, o qual deverá ser inscrito em dívida ativa para instruir a Execução Fiscal a ser proposta.

 

Ora, se a Fazenda Pública dispõe de procedimentos específicos para a cobrançado crédito tributário – que, aliás, goza de relevantes garantias e privilégios -, não lhe é facultado o emprego de outros instrumentos que constrinjam o contribuinte ao recolhimento do tributo.

 

Além disso, a apreensão de veículos e o óbice à liberação como forma de cobrança do IPVA, para este a que subscreve, além de serem meios desrazoavel e desproporcional, trata-se de uma verdadeira situação grosseira utilizados para invadir o patrimônio do administrado, sem a observância do principio do caráter não-confiscatório dos tributos,  previsto no artigo 150, inciso IV, da CF/88:“sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco”.

 

É bem lembrado, que a vedação instituída pelo artigo é genérica, portanto aplicável não só a impostos, como é o caso do IPVA, e sim, a todas as espécies tributárias, tal qual se faz ao licenciamento.

 

Por fim, conclui-se, portanto que, apesar das aberrações jurídicas encontradas ao longo de todo o CTB, certamente este coação grosseira não era a intenção do legislador ordinário ao instituir o artigo 262, §2º.

 

Por outro lado, sob um olhar crítico, porém restrito ao âmbito acadêmico, não duvido que esta dificuldade enfrentada por toda sociedade, quase sempre, vem aos rastros deixados pelos administradores que, ora posto para a gestão dessas entidades do Sistema Nacional de Trânsito, e muitas das vezes sem base técnica para o cargo que exerce, interpretam a lei a seu bel prazer e, por ato involuntário, conseguem "extorquir" cada vez mais os contribuintes e, alem do mais, enriquecer empresários (como atividade de reboque e pátio), com interesses muitas vezes escusos, não se preocupando nem um pouco com a sociedade que, ainda que indiretamente, os remunera.

 

9 - A TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE E A COMUNICAÇÃO DE VENDA À ENTIDADE DE TRÂNSITO

 

O ultimo elemento relevante a ser tratado nesse trabalho, são as discussões que rodeiam sobre o dispositivo 134, do CTB[22], qual seja à possibilidade de imputar-se ao antigo proprietário de veículo automotor, as infrações cometidas após ter sido feita a alienação do veículo, embora não oficializada a venda perante o órgão competente. Por conseguinte, ignorando o Detran inteiramente da mudança de propriedade de fato, este tem atribuído não só multas mas, também, pontuações no prontuário do proprietário anterior, procedendo-se com abertura de processo administrativo de suspensão de direito de dirigir ao alienante por infrações qual, de fato, não cometera.

 

O dispositivo, ora mencionado, tem ensejado interpretações as mais diversas possíveis, levando às indagações quanto à natureza jurídica da obrigação imputada.

 

Há muitos que entendem que regra contida no verbete 134, do CTB, violaria o denominado “princípio da intranscendência”, previsto no art. 5º, XLV, CF/88, sendo sustentada, inclusive, pela inconstitucionalidade do dispositivo

 

Antes de prosseguirmos, vale registrar, como nos ensina a melhor doutrina de José Afonso da Silva (2007, p. 142 e 143), referente à sanção penal, corroborando a ideia de que: “a pena tem finalidade retributiva, pois, se ela é uma reação ao mal do crime, claro está que só pode recair sobre quem praticou esse mal”.

 

A situação agrava-se ainda mais quando, na mesma toada, o próprio STF, em acórdão decidido em 27.05.2004, reconhece que tal posicionamento, afirmando que o princípio da intranscendência se aplicaria, igualmente, na esfera administrativa, ficando consignado:

As consequências gravosas resultantes do ato de incrição no CADIN (Lei nº 10.522/2002), por configurarem limitação de direitos, não podem ultrapassar a esfera individual das empresas governamentais ou das entidades paraestatais alegadamente devedoras, que nesse cadastro federal tenham sido incluídas, sob pena de violação ao princípio da intranscendência (ou da personalidade) das sanções e das medidas restritivas de ordem jurídica. Disso resulta, considerando o princípio em questão, a consequente impossibilidade de o Estado-membro sofrer limitações em sua esfera jurídica, motivadas pela só circunstância de, a ele, enquanto ente político maior, acharem-se administrativamente vinculadas às entidades paraestatais, as empresas governamentais ou as sociedades sujeitas ao seu poder de controle. (Questão de Ordem em Ação Cautelar 266-4, São Paulo, rel. Min. Celso de Mello, j. 27.05.2004) (grifo nosso).

 

Dito isso, é de perceber que a questão é complexa, devendo, primeiramente, ser examinada sob outro foco, até porque a própria lei, sob o prisma jurídico 257, do CTB, criou a responsabilidade solidaria com o intuito de alcançar o proprietário quando o real infrator não for identificado nas infrações de transito. Prever ainda no §7º, que ao proprietário caberá sempre a responsabilidade pela infração referente à prévia regularização e preenchimento das formalidades e condições exigidas para o trânsito do veículo na via terrestre.

 

Nesse sentido, pelo administrante, o art. 134, do CTB é interpretado sob a luz do verbete 257 e seus parágrafos, fazendo o proprietário anterior responsável pela desídia do seu proceder, qual seja a não comunicação da transferência ao DETRAN, ensejando não só uma multa, mas também atribuindo pontuação no seu prontuário. 

 

Diante disso, antes de adentramos sob a análise de tais questionamentos, faz necessário à invocação do fundamento contido no artigo 1.226 da Lei nº 10.406/02, que instituiu o Código Civil, ante as facetas jurídicas que tem adotado o Administrante na aplicação do preceito ordinário.

 

9.1 - DOS DIREITOS REAIS SOBRE COISAS MÓVEIS

 

Da análise do dispositivo 1.226, do Código Civil, esse preceitua: Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição.

 

Em outras palavras, podemos dizer que, a propriedade (um dos direitos reais, relacionados no artigo 1.225 do CC) dos bens móveis (como os veículos automotores) é transferida por ocasião da realização do negócio jurídico, entre pessoas capazes e mediante forma prescrita ou não proibida em lei, diferentemente do que ocorre com bens imóveis que, para os quais, se exige a transcrição (registro da escritura, no Cartório de Registro de Imóveis). Neste toada, segundo a ideia contida do mencionado 1.226, CC, a transferência acontece no momento em que ocorre a entrega do veículo ao novo dono, mediante o pagamento ou promessa de pagamento, estabelecida contratualmente entre as partes interessadas.

 

Dito isso, conclui-se então, que a regularização do documento junto ao DETRAN, tem como finalidade somente proporcionar o devido controle do órgão de trânsito para com os dados do real proprietário face possibilidade ao efetivo exercício do Poder de Polícia Administrativa, quais sejam para a correspondente expedição das notificações de trânsito ou imposição de penalidades.

 

Assim, para a Administração, enquanto não houver a comunicação prevista no art. 134 do CTB, a titularidade da propriedade será de quem consta no registro antigo. Desse modo, enquanto não encaminhar ao órgão executivo de trânsito estadual (DETRAN) cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente datado e assinado, no mesmo prazo de trinta dias, a contar da venda do bem, qualquer infração (multa) deverá ser comunicada ao proprietário que consta na sua base de dados.

 

Desta feita, de forma esplêndida, a Administração Pública entende que, ao efetuar a aquisição, assumi o anterior proprietário o risco de celebrar a avença sem a segurança devida, uma vez que a lei vincula ao proprietário do veículo a obrigação relativos a este, devendo, pelo mesmo, ter realizado a comunicação de transferência do veículo, junto ao DETRAN, prevista no art. 134, do CTB. É o que se ver no artigo 257, §2, do CTB:

Art. 257. As penalidades serão impostas ao condutor, ao proprietário do veículo, ao embarcador e ao transportador, salvo os casos de descumprimento de obrigações e deveres impostos a pessoas físicas ou jurídicas expressamente mencionados neste Código.

§ 2º Ao proprietário caberá sempre a responsabilidade pela infração referente à prévia regularização e preenchimento das formalidades e condições exigidas para o trânsito do veículo na via terrestre, conservação e inalterabilidade de suas características, componentes, agregados, habilitação legal e compatível de seus condutores, quando esta for exigida, e outras disposições que deva observar.

 

Sob este mesma linha, não providenciada o atendimento à exigência de informar ao DETRAN a mudança do direito de propriedade sobre o veículo automotor, inequivocadamente, o anterior proprietário estará sujeito à penalidade de multa, no valor de R$ 127,69 e 5 pontos no prontuário, prevista no artigo 233 do Código de Trânsito Brasileiro.

 

Esse entendimento, ora, é corroborado pela jurisprudência do STJ, que tem interpretando o art. 134 do CTB, no mesmo sentido, avalizando a responsabilização do proprietário do veículo, que não comunica a sua alienação, por infrações, mesmo sem a sua participação. É o que se ver a seguir:

 

MULTA DE TRÂNSITO. TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO. INOBSERVÂNCIA DO ÔNUS DE INFORMAR AO ÓRGÃO DE TRÂNSITO. DESINCUMBÊNCIA DAS INFRAÇÕES. IMPOSSIBILIDADE. I - O artigo 134 do Código de Trânsito Brasileiro dispõe que, no caso de transferência de propriedade de veículo, deve o antigo proprietário encaminhar ao órgão de trânsito, dentro do prazo legal, o comprovante de transferência de propriedade, sob pena de se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas. II - Na hipótese dos autos, em que não houve a comunicação ao órgão executivo de trânsito acerca da transferência de propriedade do veículo alienado, deverá o antigo proprietário responder solidariamente pelas penalidades impostas. Precedentes: REsp nº 722927/RS, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ de 17/08/2006 e REsp nº 762.974/RS, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJ de 19/12/2005. III - Recurso especial provido. (STJ - REsp: 970961 RS 2007/0172744-0, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 19/02/2008, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 26.03.2008) (grifo nosso).

 

ADMINISTRATIVO. ALIENAÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. MULTAS, RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ALIENANTE. INTERPRETAÇÃO DO ART. 134 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. 1. "Alienado veículo automotor sem que se faça o registro, ou ao menos a comunicação da venda, estabelece-se, entre o novo e o antigo proprietário, vínculo de solidariedade pelas infrações cometidas, só afastadas quando é o Detran comunicado da alienação, com a indicação do nome e endereço do novo adquirente. Não havendo dúvidas, in casu, de que as infrações não foram cometidas no período em que tinha o recorrido a propriedade do veículo, não deve ele sofrer qualquer tipo de sanção" (REsp 965.847⁄PR, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU de 14.03.08). 2. Recurso especial não provido (REsp 1024815⁄RS, Rel. Ministro  Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 7⁄8⁄2008, DJe 4⁄9⁄2008) (grifo nosso).

 

Todavia, cuida-se, portanto, em dizer, que a solidariedade sob examine, é para o pagamento das multas que recaem sobre o veículo, não havendo menção a destinação quanto as pontuações no prontuário do proprietário anterior, como em práxis vem ocorrendo. Ou seja, esse vinculo de solidariedade entre o novo e o antigo proprietário, pelas infrações cometidas, sofre certa mitigação no caso das pontuações, quando comprovado, que as infrações fora cometidas após aquisição do veículo com terceiro, independentemente a observância às regras contida no verbete 134 do CTB.

 

Esse entendimento, ora defendido por este a que subscreve, é abraçado pela jurisprudência do STJ, ao qual se pode ver logo abaixo:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ALIENAÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. MULTAS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ALIENANTE. INTERPRETAÇÃO DO ART. 134 DO CTB. RELATIVIZAÇÃO. PRECEDENTES. 1. Há nos autos prova de que a ora agravada transferiu a propriedade do veículo antes da ocorrência dos fatos geradores das obrigações, ou seja, as infrações de trânsito ocorreram quando o veículo já estava em propriedade do novo comprador. 2. O art. 134 do Código de Trânsito Brasileiro dispõe que, no caso de transferência de propriedade de veículo, deve o antigo proprietário encaminhar ao órgão de trânsito, dentro do prazo legal, o comprovante de transferência de propriedade, sob pena de se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas. 3. Ocorre que tal regra sofre mitigação quando ficar comprovado nos autos que as infrações foram cometidas após aquisição do veículo por terceiro, mesmo que não ocorra a transferência, nos termos do art. 134 do CTB, afastando a responsabilidade do antigo proprietário. Precedentes. Súmula 83/STJ. 4. Mostra-se despropositada a argumentação de inobservância da cláusula de reserva de plenário (art. 97 da CRFB) e do enunciado 10 da Súmula vinculante do STF, pois, ao contrário do afirmado pelo agravante, na decisão recorrida, não houve declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos legais suscitados, tampouco o seu afastamento, mas apenas a sua exegese. Agravo regimental improvido. (STJ - AgRg nos EDcl no AREsp: 299103 RS 2013/0042350-5, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 20/08/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/08/2013) (grifo nosso).

 

Com efeito, a alienação do veículo não desincumbe o proprietário anterior do seu ônus probandi, restando irretorquível as autuações geradoras de encargos ao tempo da aquisição à comunicação de venda, considerando que estas consubstancia-se em ato administrativo que goza de presunção de veracidade e legitimidade relativa, podendo ser elidida, pelos interessados (tanto o proprietário anterior quanto o proprietário posterior), com provas em sentido contrário.

 

Portanto, galgados pela aplicação do princípio da intranscendência na esfera administrativa, ora expresso pelo STF, esse entendimento não poderia ser diferente, tendo em vista que a intenção do legislador era evitar a burla perante os pagamentos de impostos, multa, encargos e taxas, geradores de transtornos materiais para o estado.

 

Assim, toda essa questão não alcança a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos praticados na direção do veículo. Isto porque, como já fora mencionado, tal regra sofre mitigação quando ficar comprovado nos autos que as infrações foram cometidas após aquisição do veículo por terceiro, mesmo que não ocorra a transferência, nos termos do art. 134 do CTB. 

 

Dito isso, percebe-se que o ato ensejador de abertura de processo administrativo de suspensão de direito de dirigir por infrações cometidas após aquisição do veículo com terceiro, se elidida com provas em sentido contrário, deverá ser, pela Administração Pública de Trânsito, objeto de arquivamento, sob pena do administrante atuar sob abuso de poder, no que concerne ao  desvio de finalidade para com a intenção do legislador ordinário, sob o preceito articulado no artigo 134 do CTB.

 

10 - CONCLUSÃO

 

Postas todas essas elucidações, não há qualquer estranheza em admitir que o cidadão, para efetividade de seus direitos e garantias fundamentais, deve ter no Poder Judiciário, não apenas o legislador negativo, mas também o legislador positivo-supletivo, sempre que a omissão do Poder Legislativo comprometer a plenitude daquela.

 

Ora, o Poder de Policia não se trata de uma autorização legislativa para a Administração adotar providencia a partir de escolhas pessoais, mas exige uma atuação legal e transparente, atentando–se para os princípios administrativos que regulam a autuação estatal.

 

Exercer o Poder de Polícia Administrativa de trânsito não significa apenas punir, mas as sansões, quando impostas, devem primar pela legalidade e todos os seus decorrentes princípios, que consubstanciam o chamado “devido processo legal”. Há, entretanto, que se entender que o sancionamento não é (pelo menos, não deve ser) o objeto principal das limitações impostas aos indivíduos, mas possui uma finalidade utilitarista, para evitar reincidências futuras e servir de exemplo à sociedade.

 

Com efeito, sob o olhar crítico, porém restrito ao âmbito acadêmico, o autor a que esta subscreve, não duvida, que essas entranhas postos a fora, quais sejam: a apreensão de veículos e o óbice à liberação como forma de cobrança do IPVA e as discussões que rodeiam sobre o dispositivo 134, do CTB, quase sempre, vêm aos rastros deixados pelos Administrantes que, ora posto para a gestão dessas entidades do Sistema Nacional de Trânsito, e muitas das vezes sem base técnica para o cargo que exerce, interpretam a lei a seu bel prazer.

 

Na exegese empregada ao art. 131, § 2º, do CTB, é de perceber, também, que o legislador Ordinário, nesses casos, não quis permitir que as multas impostas viessem a permanecer indefinidamente no ordenamento jurídico sem a quitação por parte do infrator, prevalecendo uma verdadeira situação grosseira por parte da legislação ordinária.

 

Outrora, com vista à inconstitucionalidade por parte do artigo 161, do CTB, frente à posição privilegiada dada pelo legislador ordinário às Resoluções do CONTRAN, a competência para criar infrações às condutas no trânsito, cabe exclusivamente à lei em sentido formal. Posto isso, percebe-se que, o Legislador Derivado, ao instituir diretrizes no trânsito, preferiu sacrificar, em prol de um sistema mais dinâmico, parte de sua competência em razão da lentidão que é o seu procedimento parlamentar.

 

Por essas teses, sendo o ato administrativo ilegal, abusivo ou inconstitucional, não poderá produzir os efeitos pretendidos pela Administração Pública, tampouco poderá criar obrigações legítimas em relação aos administrados. No dizer dos militares “ordem absurda não se cumpre”. Dessa forma, a oposição ao ato ilegal, abusivo ou inconstitucional constitui direito do cidadão, não podendo gerar consequências negativas àquele que age em exercício regular de direito, podendo estes, se assim couber o caso, exercer o direito o direito de resistência, dentro dos parâmetros estabelecidos em lei, a quaisquer ordens que ofendam os seus direitos, liberdades e garantias.  

 

Disto isso, reforço à ideia posto no início deste trabalho, que o presente não esgotou todas as variantes das irregularidades por parte da Administração de Trânsito, pois, assim sendo, este seria suficiente para então ser objeto de outras teses.

 

Finaliza-se o elaborado trabalho de conclusão de curso, esperando que com este, se contribua para com o meio acadêmico, a sociedade e para com os administrantes que, ora posto para a gestão dessas entidades do Sistema Nacional de Trânsito, data vênia, “desça do pedestal” e dê mais importância para o que é atividade pública, em especial ao tema aqui trabalho que, apesar de representar tamanha complexidade, hoje, aos olhos deste a que subscreve, trata-se de atividade essencial.

 

 

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