3 – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO COMO "SER"
A grande maioria dos institutos jurídicos tem frustrada a expectativa de serem utilizados efetivamente para o fim para o qual foram moldados; em relação ao instituto do Consentimento Livre e Esclarecido e ao Termo (TCLE) que o corporifica não foi diferente. Concebido para corporificar o consentimento livre e esclarecido de sujeitos ou grupos de pesquisa, o TCLE passou a ser utilizado como documento hábil para prevenir responsabilidades dos responsáveis pelas pesquisas. Como diz Joaquim Clotet, José Roberto Goldim e Carlos Fernando Francisconi, "Para muitos, o Consentimento Informado tem apenas o significado de gerar uma prova deste processo de informação, na expectativa de eximir o profissional de futuras conseqüências advindas dos mesmos." [27]
A partir da observação da realidade, os autores acima pontuaram:
"Em alguns projetos de pesquisa os Termos de Consentimento Informado são tão longos e de difícil compreensão que não poderiam ser utilizados na prática de forma adequada. Estes documentos poderiam ser caracterizados apenas como instrumentos burocráticos, com a finalidade de cumprir exigências de normas nacionais e internacionais. Na realidade alguns deles tem uma redação tão técnica e detalhada que sua finalidade parece ser outra. Poderiam ser caracterizados como pretensos termos de isenção de responsabilidade para o pesquisador e eventuais patrocinadores, na medida em que todas as informações estão ali contidas e o participante autorizou a realização dos procedimentos." [28]
Não quero dizer que conceber o Termo de Consentimento como um documento destinado a fazer prova a favor do médico ou do pesquisador em eventual litígio jurídico seja de todo errado, mas o grande problema é que ao se conceber o Termo de Consentimento Livre e Voluntário apenas com essa finalidade acaba-se se esquecendo que, sobretudo, demanda um processo informativo destinado a obter o consentimento livre e esclarecido do sujeito quanto à participação em uma pesquisa, contrariando, assim, não apenas o espírito da Resolução CNS n.º 196/96 e das normas internacionais, que têm o CLE e o TCLE como instrumentos de proteção da liberdade e dignidade dos sujeitos da pesquisa, mas em especial a Constituição Federal que tem a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, II).
Os reflexos dessa dissociação na prática são desastrosos: pesquisas sem consentimento informado; exigência de consentimento para uma série de procedimentos (o bundled consent); TCLEs com informação insuficiente, com linguagem inacessível, demasiadamente técnica, de conhecimento restrito à comunidade científica, indutores da participação, termos longos e resultado de traduções de idiomas estrangeiros para o nacional, termos cujo objetivo é tão-somente proteger os pesquisadores; execução do processo de obtenção do consentimento por pessoa diversa da que redigiu o termo e sem qualificação para prover a informação ampla e irrestrita ao sujeito da pesquisa; demasiada importância ao termo em si, como se estivesse dissociado do processo de que faz parte; obtenção do consentimento a posteriori, quando já realizada a pesquisa, especialmente no âmbito das instituições de ensino, especialmente fundamental; termos obtidos de pessoas que demonstram evidente grau de vulnerabilidade (militares, funcionários etc), sem um cuidado adicional para com a constatação dessa vulnerabilidade e com a observância da Resolução CNS n.º 196/96, quando diz que as pesquisas com pessoas vulneráveis somente podem ser realizadas quando impossível de o serem com pessoas plenamente capazes.
Tão verdadeiras são essas assertivas que, como informam José Roberto Goldim e Carlos Fernando Francisconi, "Aproximadamente 60% dos projetos submetidos ao Grupo de Pesquisa e Pós Graduação do HCPA, para serem realizados na Instituição, retornam aos seus autores para que o Termo de Consentimento seja corrigido ou aprimorado." [29]
CONCLUSÃO
Constatou-se, ao longo do presente artigo, que se criou toda uma teoria a respeito do processo de obtenção do consentimento livre e esclarecido, bem como da sua corporificação em um documento escrito, com a finalidade de se resguardar a dignidade do ser humano, enquanto sujeito da pesquisa, mediante o respeito à sua autonomia, mas que, na prática, aquilo que é pregado pela teoria acaba não sendo seguido, evidenciando, portanto, uma distância entre o mundo do "dever ser" e do "ser".
Essa dissociação, em grande parte, deve-se à falta de plena ciência, por parte dos agentes que lidam com a pesquisa, quanto aos riscos a ela inerentes e o seu caráter invasivo, os quais por vulnerabilizarem o sujeito da pesquisa e a sociedade, ensejam a necessidade de proteção dos mesmos, a qual só se perfaz mediante condutas estribadas na Ética. Parece faltar, portanto, um pouco de reflexão, de cuidado, de bom senso, daqueles que intervêm nas pesquisas.
Á vista disso, imperativa se faz essa reflexão, seja partindo dos agentes que participam das pesquisas (uma auto-reflexão), seja partindo do CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), para o qual, aliás, a Resolução CNS n.º 196/96, atribui o dever de motivar a reflexão ética constante e os instrumentos necessários para tanto.
Acredita-se que êxito considerável pode ser obtido pela reflexão aqui proposta, no que concerne ao reforço da eticidade da pesquisa, contribuindo para reduzir o espaço entre o "Consentimento Livre e Esclarecido" enquanto "dever ser" e enquanto "ser".
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Notas
01
Em sua dissertação de mestrado, Sérgio Slawka questiona a concretização de uma decisão efetivamente autônoma e genuína do sujeito da pesquisa face aos atuais contornos do processo de obtenção do consentimento livre e esclarecido. (SLAWKA, S.. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área da saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Departamento de Medicina Preventiva).02
"A Bioética nasce oficialmente quando o oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter criou o neologismo bioethics para indicar um novo campo de pesquisa e de atuação da ética. Para esse autor, o novo campo teria caráter interdisciplinar, com marcado conteúdo ecológico, e deveria preocupar-se com a sobrevivência da espécie humana (...)." SCHRAMM, F. R.. Cadernos Adenauer III (2002), n.º 1, p. 40.03
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PALÁCIOS, M.; OLINTO A. PEGORARO, A. M. (org.). Ética, ciência e saúde: desafios da bioética. Petrópolis/RJ: Vozes, 2001, p. 168-169.07
Enquanto a Bioética é conhecida como "o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais" (LEPARNEUR, Hubert. Força e fraqueza dos princípios da bioética. Bioética - v. 4 nº 2 , Brasília, Conselho Federal de Medicna, 1996 fls 138), o Biodireito, a partir de um compromisso interdisciplinar com a Bioética, visa, através de seu principal elemento que é a "coercibilidade", exercer a função de indicador as condutas justas, ou procedimentos apropriados para que as decisões e as opções tenham todas as chances de resolver os problemas suscitados pelas novas tecnologias. (GUSMÃO, P. D. de. Introdução ao Estudo do Direito. 19º ed. Rev. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 201).08
SLAWKA, S.. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área da saúde: uma revisão critica, p. 25-33.09
Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos. Preparadas pelo Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS), em colaboração com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Traduzida por Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 111.10
CLOTET, J. O consentimento informado: uma questão do interesse de todos, p. 9.11
Os dados para a presente pesquisa foram obtidos junto às seguintes fontes: SLAWKA, S.. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área da saúde: uma revisão crítica, p. 36-37 e CLOTET, J.; FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 30-56.12
VARGA, A. C. Problemas de Bioética, p. 535.13
O caso Tuskegee. Quando a ciência se torna eticamente inadequada. Disponível online: http://www.ufrgs.br/bioetica/tueke2.htm. Acessado em 20 de maio de 2006.14
CLOTET, J., FRANCISCONI, C. F., GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento Informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 14.15
CLOTET, J., FRANCISCONI, C. F., GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento Informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 14.16
CLOTET. J.. O consentimento informado nos Comitês de Ética em Pesquisa e na prática médica, p. 51-59.17
SANTOS, M. C. C. L.. O Equilíbrio de um pêndulo. Bioética e a Lei: implicações médico-legais, p. 60.18
ALMEIDA, J. L. T. de. Respeito à autonomia do paciente e consentimento livre e esclarecido: uma abordagem principialista da relação médico-paciente, p. 61.19
CLOTET, J., FRANCISCONI, C. F., GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento Informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 111.20
GIOSTRI, H. T. Responsabilidade Médica. As obrigações de meio e de resultado: avaliação, uso e adequação, p.83.21
FRANÇA, G. V.. Flagrantes médico-legais III, p. 56.22
CLOTET, J.; FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 72.23
Id, ibidem, p. 74.24
CLOTET. J.. O consentimento informado nos Comitês de Ética em Pesquisa e na prática médica, p. 67.25
É o que consta, aliás, do folder esclarecendo perguntas sobre a pesquisas em seres humanos, constante da página do Conselho Nacional de Saúde: www.cns.gov.br.26
CLOTET, J.; FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 70.27
CLOTET, J.; FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 9.28
Id, ibidem, p. 80-81.29
GOLDIM, J.; FRANCISCONI, C. F.. Termo de Consentimento Informado para Pesquisa. Auxílio para sua estruturação. Disponível [online] no endereço: http://www.ufrgs.br/bioetica/textos.htm. Acessado em 19/05/2006.