A inconstitucionalidade e a violação do princípio nemo tenetur se detegere, na obrigação à exame toxicológico por parte dos militares estaduais no Código de Ética e disciplina dos militares estaduais do Espírito Santo.

22/01/2021 às 08:22
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O novo Código de Ètica e Disciplina dos Militares Estaduais do Estado do Espírito Santo, veio para substituir o Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais (RDME), para se adequar à lei federal de nº 13.967/2019. Mas apresenta inconstitucionalidades.

O Código de Ética e Disciplina dos Militares Estaduais do Estado do Espírito Santo, aprovado sem discussão, atropelando o devido processo regimental e ferindo o disposto no artigo 65 da Constituição Estadual, na última sessão do dia 22 de Dezembro de 2020, na Assembleia Legislativa, trouxe inúmeros abusos e inconstitucionalidades.

Contextualizando o assunto, o Código de Ética e Disciplina dos Militares Estaduais (CEDME), PLC 44/2020, veio sob a justificativa de adequar a persecução e a penalização disciplinar militar à lei federal 13.967/2019, que alterou o artigo 18 do Decreto-Lei 667/1969, com o propósito de dar fim às prisões administrativas, ao mesmo tempo em que deveria trazer aos novos códigos disciplinares militares no Brasil afora, uma atualização das garantias constitucionais contidas na Constituição Federal de 1988, mormente no que se refere ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. Infelizmente não foi o que ocorreu.

Sendo este apenas o primeiro de uma série de artigos que tratarão do mesmo tema e, respeitados os posicionamentos contrários, foi selecionado o artigo 15, incisos V e VI, que tratam sobre a possibilidade de abertura de processo disciplinar demissionário nos seguintes termos:

Art. 15. São infrações disciplinares passíveis de apuração por meio de Processo Administrativo Demissionário, àquelas em que:

(...)

V – recusar-se a submeter-se ao Exame ou à inspeção Toxicológica, ou quando convocado, não comparecer sem motivo justificado, por duas vezes;

VI – for considerado “inapto” em Inspeção Toxicológica, por uso de substâncias psicotrópicas ilícitas;

(...)

Veja que aqui não se está a falar de regra de concurso público para ingresso na carreira militar, evidente que se deve exigir dos que pretendem integrar a Polícia Militar do Estado do Espírito Santo, perfeita condição de saúde. O que não se pode fazer é exigir que o militar não adoeça; que após o seu ingresso em perfeitas condições, passando a desempenhar um trabalho que é reconhecidamente um dos mais desgastantes do mundo em termos físicos e psicológicos, não tenha problema de saúde, sob pena de demissão.

Há muito tempo a Classificação Internacional das Doenças (CID), classificou a dependência de álcool e outras substâncias psicoativas como transtornos mentais de comportamento, CID 10 – F 19 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas.

Inclusive, no site oficial da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo (PMES), no ícone de serviços sociais, há a informação do Programa de Reabilitação do Toxicômano e Alcoolista (PRESTA), que funciona dentro do Hospital da Polícia Militar (HPM) e que é, segundo definição contida no próprio site, “um programa formado por profissionais qualificados em diversas áreas, que atuam com o objetivo de fazer a prevenção e oferecer tratamento ao dependente químico, visando sua reintegração à família e à sociedade, contribuindo para a melhoria de sua qualidade de vida”.

Ora, se a própria instituição possui um programa de recuperação e apoio para militares que estejam em situação de alcoolemia e toxicomania, reconhece, portanto, que é matéria de interesse social e de saúde. Se assim não fosse, surgiriam questionamentos inconvenientes para que a administração pública militar respondesse. Como será tratado o militar que procure ajuda no PRESTA? Será tratado como confissão de infração disciplinar tal pedido de ajuda? Serão os militares da área de saúde obrigados a comunicar aos superiores hierárquicos desses militares suposta infração?  

Neste sentido, ao se reconhecer o possível usuário de drogas, toxicômano, como um indivíduo doente e que requer, por esta condição, apoio e tratamento médico, já estaria evidenciada a abusividade de se submeter um militar estadual a processo demissionário por este motivo.

Mas, se a empatia humana não gera, por si só, motivo para a invalidação destas infrações disciplinares, pode-se apontar matéria de direito que, com certeza, encerrará qualquer dúvida quanto à legitimidade e a inconstitucionalidade destes dispositivos.

O assunto não é novo, em 2008 foi elaborado um Projeto de Lei (PL 4.443/2008), de autoria do então Deputado Federal Paulo Lima, que tinha o intuito de proibir o uso de substâncias tóxicas por bombeiros, policiais civis e policiais militares, tendo sido rejeitado tal projeto por considerar que o exame seria discriminatório contra os profissionais de segurança pública, já que outros profissionais não estariam sujeitos às mesmas obrigações.

Uma PEC, desta vez de autoria do Senador Styvenson Valentim, a PEC 87/2019, revive esta pretensão, a de tornar obrigatório o exame toxicológico periódico para os profissionais da segurança pública, citando inclusive, veja a ironia, o exemplo do Espírito Santo, onde a recusa em se submeter ao exame acarreta o afastamento do profissional e abertura de um processo administrativo disciplinar. A PEC atualmente tramita na Comissão de Justiça e Cidadania (CCJ), onde aguarda a designação de relator.

Percebe-se, portanto, que ao se ter uma proposta de PEC tentando tornar o exame toxicológico obrigatório para os profissionais de segurança pública, usando como exemplo o que ocorre na PMES, presume-se logicamente que o que esta sendo feito requer uma convalidação constitucional, é um daqueles casos em que o exemplo, ao contrário de validar uma posição, denuncia a existência de uma ilegalidade.

O princípio do nemo tenetur se detegere, que é o direito de não produzir provas contra si mesmo, está positivado no art. 5º, inciso LXIII da Constituição Federal, o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado, reconhecendo o direito de qualquer investigado de não produzir provas contra si mesmo perante autoridade administrativa, policial ou judiciária.

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Nos ensinamentos de Marcelo Novelino, citando Renato Brasileiro de Lima, de tal princípio decorrem outros direitos, como o direito de não ser constrangido a confessar a prática de crime, a inexigibilidade de dizer a verdade, o direito de não praticar qualquer comportamento ativo que possa incriminá-lo e o direito de não produzir prova incriminadora invasiva sem consentimento.

Cícero Robson Coimbra Neves, em seu Manual de Direito Processual Penal Militar, destaca o caso Miranda v. Arizona (Miranda rules, Miranda Rights), decisão da Suprema Corte Norte Americana que anulou uma condenação judicial pelo “simples” fato de que o acusado não foi advertido sobre seu direito de silenciar. Cita ainda a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecidos como Pacto de São José da Costa Rica, reconhecido no Brasil pelo decreto nº 678 de 1992, que em sua alínea g do nº 2 do artigo 8º diz:

“Artigo 8º Garantias judiciais:

(...)

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

(...)

g – direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”.

Observe que o princípio do nemo tenetur se detegere, se reveste em mais do que um direito ao silêncio, é um direito mais amplo de não auto incriminação, uma garantia de que a não colaboração, não será interpretada em desfavor do indiciado, investigado ou acusado.

Até agora foram citadas fontes de direito constitucional, internacional, processual penal e processual penal militar, mas o que diz o direito administrativo acerca do tema?

Ronaldo João Roth, juiz auditor da Justiça Militar do estado de São Paulo, citando Jorge Alberto Romeiro, em sua obra “Temas de Direito Militar”, preleciona que há íntima relação entre o direito administrativo militar com o direito penal e processual militar, reconhecendo que o direito disciplinar militar deve seguir o mesmo caminho de respeito aos princípios constitucionais que norteiam aqueles.

Artigo do site Âmbito Jurídico, Vigência, validade e eficácia da norma jurídica em Hans Kelsen e em Alf Ross”, tem-se que para Hans Kelsen, o que fundamenta a validade de uma norma é outra norma, imediatamente superior, e assim por diante até se chegar à constituição, criando, assim, uma unidade. 

Assim, sendo o CEDME lei complementar estadual, se submete aos princípios gerais do direito, à Constituição Estadual, às leis internacionais recepcionadas pelo direito brasileiro e a própria Constituição Federal Brasileira, bem como à ampla jurisprudência e doutrina de direito militar.

O Superior Tribunal de Justiça tem posição firmada no sentido de garantir as garantias fundamentais, ao servidor público acusado em processo administrativo disciplinar. Neste sentido:

RECURSO ORDINÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - EMBRIAGUEZ HABITUAL NO SERVIÇO - COAÇÃO DO SERVIDOR DE PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO, MEDIANTE A COLETA DE SANGUE, NA COMPANHIA DE POLICIAIS MILITARES - PRINCÍPIO DO "NEMO TENETUR SE DETEGERE" - VÍCIO FORMAL DO PROCESSO ADMINISTRATIVO - CERCEAMENTO DE DEFESA - DIREITO DO SERVIDOR À LICENÇA PARA TRATAMENTO DE SAÚDE E, INCLUSIVE, À APOSENTADORIA POR INVALIDEZ - RECURSO PROVIDO.1. É inconstitucional qualquer decisão contrária ao princípio nemo tenetur se detegere, o que decorre da inteligência do art. 5º, LXIII, da Constituição da República e art. 8º, § 2º, g, do Pacto de São José da Costa Rica. Precedentes. 2. Ocorre vício formal no processo administrativo disciplinar, por cerceamento de defesa, quando o servidor é obrigado a fazer prova contra si mesmo, implicando a possibilidade de invalidação da penalidade aplicada pelo Poder Judiciário, por meio de mandado de segurança. 3. A embriaguez habitual no serviço, ao contrário da embriaguez eventual, trata-se de patologia, associada a distúrbios psicológicos e mentais de que sofre o servidor.4. O servidor acometido de dependência crônica de alcoolismo deve ser licenciado, mesmo compulsoriamente, para tratamento de saúde e, se for o caso, aposentado, por invalidez, mas, nunca, demitido, por ser titular de direito subjetivo à saúde e vitima do insucesso das políticas públicas sociais do Estado. 5. Recurso provido. (RMS 18.017/SP, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 09/02/2006, DJ 02/05/2006, p. 390)

Por todo o exposto, vê-se claramente que os dispositivos da norma em comento estão eivados de vício de origem e, se aplicada antes de qualquer controle de constitucionalidade, de vício formal, por constituir processo administrativo disciplinar com cerceamento de defesa em seu sentido lato.

Conclui-se, portanto, que o CEDME em seu artigo 15, incisos V e VI, desvirtuou o espírito da lei federal 13.967/2019, que tinha por escopo propiciar um melhor ambiente jurídico para os militares estaduais de todo país, abolindo a famigerada prisão administrativa, e levando a estes servidores especiais as garantias constitucionais e processuais que já são amplamente praticadas, inclusive no âmbito da Justiça Militar.  

Referências:

  1. https://www.medicinanet.com.br/cid10/1520/f19_transtornos_mentais_e_comportamentais_devidos_ao_uso_de_multiplas_drogas_e_ao_uso_de_outras_substancias_psicoativas.
  2.  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.
  3. https://pm.es.gov.br/presta
  4. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/06/03/pec-preve-a-realizacao-de-exame-toxicologico-para-policiais-e-bombeiros
  5. Novelino, Marcelo. “Manual de Direito Constitucional”. 14. Ed., ver., ampl. E atual.- Salvador: Ed. Juspodivm, 2019, p. 461.
  6. Neves, Cícero Robson Coimbra. Manual de Direito Processual Penal Militar – volume único – Salvador: Editora juspodivm, 2021, p. 127.
  7. Roth, Ronaldo João. Temas de Direito militar – 1 Ed., São Paulo: Ed. Suprema Cultura, 2004, p. 232.
  8. https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-112/vigencia-validade-e-eficacia-da-norma-juridica-em-hans-kelsen-e-em-alf-ross/
  9. https://jus.com.br/artigos/32318/direito-ao-silencio-no-processo-administrativo-disciplinar.
Sobre o autor
Bruno Puppim de Oliveira

Advogado, policial militar reformado, pós graduando em Direito Público.

Informações sobre o texto

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