Ilícitos relacionados à inobservância das filas de vacinação da Covid-19

23/01/2021 às 12:32
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O presente artigo tem por objetivo tecer brevíssimas considerações acerca dos possíveis ilícitos relativos à ausência de observância na ordem das filas na aplicação da vacina Coronavac no Brasil, abordando possíveis tipificações no âmbito penal e civil.

     O presente artigo tem por objetivo tecer brevíssimas considerações acerca dos  possíveis ilícitos relativos à ausência de observância na ordem das filas na aplicação da vacina Coronavac no Brasil, ante a divulgação na mídia relativamente à ausência de observância da ordem legal de prioridade estabelecida no plano nacional do Ministério da Saúde (https://oglobo.globo.com/brasil/antes-criticos-da-vacina-politicos-apadrinham-inicio-da-imunizacao-em-5-estados-ha-casos-de-fura-filas-24848300. )

   Inicialmente, ilustra-se o exemplo do Prefeito ou agente público que, utilizando-se da influência inerente ao cargo, não atente à observância dos grupos prioritários estabelecidos nos planos municipal, estadual ou nacional de operacionalização de vacinação contra a Covid-19 (Disponível em  https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2020/dezembro/16/plano_vacinacao_versao_eletronica-1.pdf).

    Referida conduta poderá repercutir nas penas do crime de abuso de autoridade (art. 33 da Lei 13.869/2019):

Art. 33.  Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido

      De outra parte, caso o agente público exija que seja vacinado no lugar de outras pessoas que teriam prioridade legal, poderá incidir no  crime de concussão ( artigo 316 do Código Penal- CP),  porquanto o núcleo do verbo estabelecido no  tipo penal  previu qualquer vantagem indevida, não  tendo a lei restringido especificamente ao benefício econômico.

          Nesse sentido, colaciona-se o seguinte entendimento doutrinário:

Discute-se, ainda, a respeito da natureza da indevida vantagem exigida pelo funcionário. Alguns doutrinadores, a exemplo de Damásio de Jesus, aduzem que a vantagem pode ser patrimonial ou econômica, presente ou futura, beneficiando o próprio agente ou terceiro. A segunda posição advoga a tese ampla do conceito de indevida vantagem. Mirabete preconiza que, ‘ referindo-se a lei, porém, a qualquer vantagem e não sendo a concussão crime patrimonial, entendemos, como Bento de Farias, que a vantagem pode ser expressa por dinheiro ou qualquer outra utilidade, seja ou não de ordem patrimonial, proporcionando um lucro ou proveito. Acreditamos assistir razão à segunda posição, que adota um conceito amplo de vantagem indevida. Isso porque, conforme esclarecido por Mirabete, não estamos no Título do Código Penal correspondente aos crimes contra o patrimônio, o que nos permite ampliar o raciocínio, a fim de entender que a vantagem indevida, mencionada no texto do art. 316 do Código Penal, pode ser de qualquer natureza (sentimental, moral, sexual, etc) (GRECO, p. 1101)

       Com efeito, quando o legislador quis efetivar a restrição para as hipóteses de vantagem econômica, assim o fez de forma expressa, como, por exemplo, no crime de extorsão previsto no art. 158 do Código Penal (“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa: Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.”).

       Em relação ao particular que oferecer vantagem indevida ao servidor público para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício (v.g proveito econômico indevido com a finalidade de burlar o critério de prioridade na vacinação) haverá a incidência, em tese, do delito de corrupção ativa (artigo 333 do Código Penal); se o funcionário público aceitar o benefício indevido, a conduta  deste estará subsumida no crime de corrupção passiva (art. 317 do CP).

      No caso de o agente público, motivado por questões de  “camaradagem”, amizade, ou outro elemento subjetivo especial (finalidade de satisfazer interesse ou sentimento pessoal), permitir que o extraneus (particular) seja vacinação em detrimento de outras pessoas integrantes do grupo prioritário legal, incidirá, em princípio, nas penas do art. 319 do Código Penal (delito de prevaricação).

      Não é outro o entendimento da abalizada  doutrina:

        (…) exige-se o elemento subjetivo do tipo compreendido  com a expressão “ para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Sem essa finalidade específica, a conduta será atípica. Interesse pessoal é a vantagem pretendida pelo funcionário público, seja moral ou material. Sentimento diz respeito à afetação do funcionário para com determinada pessoa, como simpatia, ódio, vingança, etc (GUEIROS  e JAPIASSÚ, p. 1025).

      Outra exemplificação possível é na hipótese de  preenchimento de formulário para fins de vacinação  com dados falsos em seu conteúdo, o que poderá resultar na consumação do  crime de falsidade ideológica (artigo 299 do Código Penal) ou, no caso de assinatura falsificada aposta em documento impresso, no delito de falsificação de documento público (art. 297 do Código Penal),  caso a documentação seja emitida por Órgão Público.

          Considerando que a vacina é bem público, o desvio na ordem de imunização (filas de vacinas contra a Covid-19) configurará, em tese, o crime de  peculato- desvio (“Art. 312 – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio. Pena – reclusão, de dois a doze anos, e multa …”) atribuído ao  agente público responsável.

         Ainda que o valor unitário da vacina seja de ínfimo valor econômico, haverá a tipificação penal,  já que o entendimento majoritário na doutrina e jurisprudência é sentido da não incidência do princípio da insignificância em relação aos crimes contra a administração pública, ante o fato de o bem jurídico tutelado ser a moralidade administrativa e, por conseguinte, insuscetível de valoração econômica, nos termos da súmula 599 do Superior Tribunal de Justiça : “o princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública”.

         Especificamente em relação à não aplicação do princípio da bagatela ao crime de peculato, decidiu a 5ª Turma do STJ:

“(….) É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de não ser possível a aplicação do princípio da insignificância ao crime de peculato e aos demais  delitos contra a Administração Pública, pois o bem  jurídico tutelado pelo tipo penal incriminador é a moralidade administrativa, insuscetível de valoração econômica “(STJ, 5ª Turma, HC 310.458/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Dje 26/10/2016)

        Caso a conduta seja atribuída a Prefeito, subsumir-se-á na seguinte tipificação prevista no  artigo 1º, I, do Decreto-Lei 201/67:

“Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

I – apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio;

(…)”

         Por outro lado , haverá repercussão na esfera cível (ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei 8429/92), por violação aos princípios da legalidade, impessoalidade e/ou moralidade, podendo-se extrair, a título de exemplificação, a ação proposta pelos Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público do Estado da Bahia-MP/BA (subscrita pelos procuradores da República Carlos Victor de Oliveira Pires,  Marília Siqueira da Costa, e a promotora de Justiça Tatyandes Mereira Cades), em detrimento de Prefeito, que “furou” a fila para receber a primeira dose da CoronaVac em Candiba/BA (disponível em http://www.mpf.mp.br/ba/sala-de-imprensa/noticias-ba/covid-19-mpf-e-mp-ba-acionam-por-improbidade-prefeito-que-furou-fila-e-recebeu-a-primeira-dose-da-coronavac-em-candiba-ba).

          No que se refere à incidência de dano moral coletivo, este ocorrerá se   houver afronta  a valores fundamentais de uma coletividade, o que incidirá   na hipótese de comprovação de determinado esquema fraudulento na operacionalização do plano de imunização do poder público contra a Covid-19 (v.g.: inobservância  das ordens estabelecidas nas filas da vacinação), porquanto haveria lesão na esfera moral de toda a comunidade, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ):

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(….) XXI- O dano moral coletivo, compreendido como o resultado de lesão à esfera extrapatrimonial de determinada comunidade, dá-se quando a  conduta agride, de modo ilegal ou intolerável, os valores normativos fundamentais da sociedade em si considerada, a provocar repulsa e indignação na consciência coletiva (arts. 1º da Lei n.º 7.347/1985, 6º, VI, do CDC e 944 do CC, bem como Enunciado n. 456 da V Jornada de Direito Civil). XXII- Entenda-se o dano moral coletivo como o de natureza transindividual que atinge classe específica ou não de pessoas. É passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem, a sentimento e à moral coletiva dos indivíduos como síntese das individualidades envolvidas a partir de uma mesma relação jurídica-base. O dano extrapatrimonial   coletivo prescinde da comprovação  de dor, sofrimento ou abalo psicológico suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos  (…) (STJ, 2ª Turma, Agint no Resp 1712940/PE, Rel. Francisco Galvão, Dje 09/09/2019)

         Enfim, é necessário que todos se conscientizem acerca da importância relativa à observância dos critérios legais na ordem de vacinação estipulada em relação aos grupos prioritários, haja vista a necessidade de preservação da saúde e da vida daqueles que necessitam da imunização contra a Covid-19 no menor prazo possível, atentando-se, por conseguinte, aos princípios da solidariedade, legalidade, e da dignidade da pessoa humana.

* O autor é procurador da República, especialista em direito penal e processo penal, professor, autor de obra jurídica e articulista.

REFERÊNCIAS

Antes Críticos da vacina, políticos apadrinham início da imunização; em cinco estados, há casos de fura-filas. Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/antes-criticos-da-vacina-politicos-apadrinham-inicio-da-imunizacao-em-5-estados-ha-casos-de-fura-filas-24848300. Acesso em 21 de jan. 2021.

Covid-19: MPF e MP/BA acionam por improbidade prefeito que furou fila e recebeu a primeira dose da CoronaVac em Candiba (BA). Disponível em http://www.mpf.mp.br/ba/sala-de-imprensa/noticias-ba/covid-19-mpf-e-mp-ba-acionam-por-improbidade-prefeito-que-furou-fila-e-recebeu-a-primeira-dose-da-coronavac-em-candiba-ba. Acesso em 21 de jan. 2021.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Niterói/RJ: Impetus, 2017.

GUEIROS, Artur; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo. Direito Penal Volume Único.  São Paulo: Atlas, 2020.

Plano nacional de operacionalização da vacinação contra a Covid-19. Disponível em https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2020/dezembro/16/plano_vacinacao_versao_eletronica-1.pdf Acesso em 21 de jan. 2021.

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Sobre o autor
Leandro Bastos Nunes

Procurador da República. Ex-Advogado da União. Especialista em direito penal e processo penal. Articulista. Autor da obra "Evasão de divisas" (Editora JusPodivm). Professor da pós-graduação em direito penal econômico da FTC (Faculdade de Tecnologia e Ciências), e em cursos do Ministério Público da União. Palestrante em crimes financeiros.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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