1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DA INTERNET
Antes de qualquer coisa é necessário trazer um conceito acerca da internet, também conhecida como a rede mundial de computadores, e neste sentido há o artigo 5º, I, da lei 12.965 de 2014: “o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por diferentes redes”.
O seu surgimento ocorreu em meio a corrida espacial quando a agência de projetos avançados do Departamento de Defesa norte-americano (ARPA) elaborou um sistema de telecomunicações diferente de todos que existiam até então (PAESANI, 2014).
As suas particularidades consistiam no fato de o sistema garantir que mesmo com um ataque nuclear não silenciasse a transmissão de informações do comando dos Estados Unidos, além disto, garantisse, a comunicação entre locais estratégicos do país distantes.
Para tanto, Paul Barran notou que um sistema centralizado seria vulnerável e prejudicaria toda a rede em um caso de ataque, a solução apresentada por ele era sistematizar e uma forma de teia, tal feito ficou conhecido como diagrama distribuído de Barran. A ideia apresentada caiu como uma luva, eis que os dados não ficam retidos a um só administrador e a informação pode ser levada de um ponto ao outro com maior facilidade (MARTINELLI, 2015).
Destaca-se do diagrama de Paul a redundância dos dados, pois para que o sistema funcione os dados distribuídos entre a rede são repetidos ao montante de pontos existentes, ou seja, pequenas redes locais (conhecidas como rede LAN) ligadas a outras pequenas redes formando uma teia de redes (conhecida como rede WAN) (PAESANI, 2014).
Com esta solução proposta, a comunicação até então militar tomou uma proporção maior permitindo a conexão entre locais distantes com garantias contra-ataques inimigos.
Paesani completa que a internet tomou força quando o Departamento de Pesquisas Avançadas da Universidade da Califórnia criou um sistema de princípios e regras para utilização/controle da internet permitindo diversas redes incompatíveis comunicarem-se entre si, conhecido como protocolo TCP/IP.
Atualmente, a comunicação permitida pela internet interliga dispositivos eletrônicos no mundo inteiro, como também, facilita o acesso a informações sem medidas.
Sobre o assunto completa Paesani:
[...] permite o acesso a uma quantidade de informações praticamente inesgotáveis, anulando toda distância de lugar e tempo. [...] a tecnologia da informação abre uma via rápida para o crescimento baseado no conhecimento, como ocorreu com as exportações de software da Índia (PAESANI, 2014, p. 10-11).
Outro fator importante para o crescimento no número de usuários na internet foi o nascimento do conhecido WWW, ou então, World Wide Web, no ano de 1989 no Laboratório Europeu de Física de altas energias. A sua importância é levantada em razão de facilitar o uso da internet através de hipertextos, ou seja, um documento cujos textos, imagens e sons são correlacionados com outros documentos apenas a um clique, sem a necessidade de conhecer os inúmeros protocolos de acesso e código-fonte (PAESSANI, 2014).
Neste sentido Marcacini (2020) aduz que as características típicas da informação digital proporcionaram seu rápido crescimento seja pela sua fácil replicação das informações e dados em infinitas cópias, bem como, os infindáveis meios de guardá-las ad eternum1.
Desta forma, a transmissão de dados pela banda larga constitui a grande agitação das comunicações, eis que transformou a sociedade, permitindo a realização de videoconferências, teletrabalho, locadoras de filmes e músicas hospedadas na rede mundial, além do armazenamento de informações pessoais por parte empresas e pessoas interessadas surgindo então novos conflitos sociais (PAESSANI, 2014).
Diante de tais fatos, grandes são as consequências no meio jurídico. As principais consequências relevantes serão analisadas no tópico a seguir.
2. PONDERAÇÕES ACERCA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO AMBIENTE VIRTUAL
Dados os fatos históricos acerca do surgimento da internet e as suas implicações ao longo da história, é necessário fazermos uma análise do campo dos direitos fundamentais.
2.1 Conceitos e síntese histórica dos Direitos Fundamentais
Inicialmente é necessário estudar as bases que formaram a ideia de direitos fundamentais. Para tanto, estão os princípios legais básicos que provam logicamente a existência de direitos básicos do ser humano, podemos apontar dois princípios: Estado de direito e dignidade humana (CAVALCANTE FILHO, 2016).
Acerca do primeiro princípio, José Afonso (2006) nos ensina que o conceito clássico de Estado de Direito se dá por três características: a) submissão (dos governantes e dos cidadãos) ao império da lei; b) separação de poderes; c) garantia dos direitos fundamentais.
Sobre o princípio da dignidade humana, nos aduz Cunha Jr (2010) que se trata de um princípio de conceito aberto, que em poucas palavras, ocupa-se em reconhecer a todos os seres humanos, pelo simples fato de serem humanos, alguns direitos básicos.
Com base nisso, podemos definir os direitos fundamentais como os direitos considerados básicos para qualquer ser humano, independentemente de condições pessoais específicas estando entre os valores mais caros da humanidade. Para tanto, servindo de esteio à garantia de um mínimo necessário para uma convivência social (MASSON, 2016, p. 190-191).
Estes direitos foram desenvolvidos ao longo da história, sendo um processo bem vagaroso. Há controvérsias quanto ao seu nascimento, pois diversos autores apontam momentos diversos da história. Martins (2017) cita que para alguns historiadores e doutrinadores, o marco da origem dos Direitos individuais surgiu com o Código de Hamurabi na Babilônia, considerado o primeiro código jurídico a disciplinar a vida em sociedade.
Porém, Alexandre de Moraes (2011) é bem enfático em ensinar que:
A origem dos direitos individuais do homem pode ser apontada no antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C., onde já eram previstos alguns mecanismos para proteção individual em relação ao Estado. O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação a governantes
[...]
Contudo, foi o Direito romano que estabeleceu um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais em relação aos arbítrios estatais. A Lei das doze tábuas pode ser considerada a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão. (MORAES, 2011. p. 24-25)
Estes direitos foram desenvolvidos ao longo da história, sendo um processo bem vagaroso, como na Inglaterra em 1215 com o João sem Terra2; em 1628 com o petition of rights3; em 1679 com o habeas corpus4; e muitos outros marcos importantes (MARTINS 2017).
Didaticamente foram reunidos direitos de diferentes grupos de vários momentos da história e divididos estes momentos em gerações ou dimensões, embora todos tenham importância jurídica (MASSON, 2016, p. 190-191).
Os direitos classificados como sendo de primeira geração são os responsáveis por desenvolver, no início do século XIX, os direitos civis e políticos clássicos, essencialmente ligados ao valor da liberdade.
Neste sentido, nos aduz Sarlet (2012):
Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notória inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. São, posteriormente, complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc.) e pelos direitos de participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a democracia (SARLET, 2012, p. 32).
Após isto, em decorrência da revolução industrial que levou ao grande crescimento demográfico urbano, iniciou a corrida pelos direitos de segunda geração que acentuam o princípio da igualdade entre os homens (MASSON, 2016, p. 192).
Importante salientar a importância dos direitos de segunda geração que, embora, conste a liberdade, já garantida nos de primeira geração, é muito além, eis que engloba aqui os direitos de liberdades sociais, como nos ensina Sarlet (2012):
Ainda na esfera dos direitos da segunda dimensão, há que atentar para a circunstância de que estes não englobam apenas direitos de cunho positivo, mas também as assim denominadas “liberdades sociais”, do que dão conta os exemplos da liberdade de sindicalização, do direito de greve, bem como do reconhecimento de direitos fundamentais aos trabalhadores, tais como o direito a férias e ao repouso semanal remunerado, a garantia de um salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho, apenas para citar alguns dos mais representativos (SARLET, 2012, p. 33).
Mais adiante, em um momento de conflitos mundiais, após a guerra fria no final do século XX, surgiu a terceira geração dos direitos. Neste momento, apareceram os direitos de solidariedade que englobam, dentre outros, os direitos difusos relacionados à sociedade como ao desenvolvimento, o progresso, à autodeterminação dos povos, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à ideia de patrimônio comum mundial, os direitos consumeristas. Nas palavras de Sarlet “a nota distintiva destes direitos da terceira dimensão reside basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável” (2011, p. 34).
De toda a sorte, cremos na importância da positivação ou na consagração de tais direitos para a humanidade, pois apenas assim estaremos prosseguindo pela evolução.
Visto o estudo do conceito e evolução histórica dos direitos fundamentais, passa-se a explanação específica do direito fundamental à privacidade.
2.2 A privacidade como Direito fundamental
Embora a Constituição Federal do Brasil não mencione diretamente a existência do Direito de privacidade, no inciso X, do artigo 5º, divide seu conceito entre intimidade, vida privada e honra5.
O direito à privacidade encontra-se entre os direitos fundamentais de primeira geração, e tem como premissa proteger a intimidade (AGRA, 2018, p. 231).
Acerca deste direito e as suas garantias Walber Agra (2018, p. 231-232) aduz que:
São garantias para a proteção dos cidadãos contra os avanços tecnológicos que permitem devassar a vida das pessoas. [...] Intimidade é a esfera de vida que só ao cidadão em particular diz respeito, não pertencendo a mais ninguém; é o espaço de sua individualidade. [...] Vida privada significa as relações pertinentes ao cidadão e aos seus familiares, englobando as pessoas que partilham do seu cotidiano.
O seu surgimento se deu em razão do processo de erosão e degradação dos direitos e liberdades fundamentais, sobretudo em face do uso de novas tecnologias (SARLET, 2017).
Sobre o assunto Martinelli sinaliza ser necessário diferenciar liberdade da liberdade jurídica6, pois a primeira está intrínseca ao ser, já a segunda é a sua positivação. Sendo que a liberdade demonstra ser inalcançável para outro indivíduo, mesmo que cerceada, ou seja, ao “afirma que o homem é livre, isso não quer dizer que o ordenamento jurídico não se aplique a ele, mas tão-somente que ele é livre ainda que suas ações resultem numa sanção legal” (2015, p. 45).
Completa ainda o professor que:
A liberdade possui uma estreita ligação com o domínio privado, pois, após o limite até onde a esfera do social conseguiu invadir, o ser é livre para decidir quem terá acesso às informações de sua privacidade, sua vida privada ou sua intimidade. [...]
Logo, a intimidade se torna vulnerável a partir do momento em que o indivíduo confia em um dispositivo que, no seu entendimento, teria o condão de garantir a segurança de suas informações íntimas (MARTINELLI, 2015, p. 46)
Nathalia Masson ao explicar o Direito à privacidade sob a ótica da carta magna destrincha o inciso X, do art. 5º, em três partes. Sendo, o Direito à intimidade - considerada a parte mais pura da privacidade “[...] Representa, pois, o direito de possuir uma vida secreta e inacessível a terceiros, evitando ingerências de qualquer tipo” (2016, p. 218) -, o Direito à vida privada “é mais abrangente e contém a intimidade, pois abarca as relações pessoais, negociais ou afetivas, incluindo seus momentos de lazer, seus hábitos e seus dados pessoais [...]” (2016, p. 219) -, por fim, o Direito à honra e a imagem “aspecto subjetivo, relacionado a afeição e o apreço que se tem por si mesmo, como o aspecto objetivo, referente ao conceito social que a pessoa desfruta diante da opinião pública” (2016, p. 219).
Outrossim, Leite (2016) ao tratar privacidade cita John Locke buscando definir a privacidade afirmando que o indivíduo somente adquire a liberdade, a partir da autonomia de sua vida particular aos seus atos etcs.
A partir da conclusão de John Locke a liberdade está diretamente ligada à privacidade do indivíduo, por isto, a razão de estar incluída nos direitos fundamentais.
Dessa forma, no próximo tópico do presente trabalho será analisado o conflito entre o direito fundamental à privacidade, isto é, à liberdade de expressão, informação e comunicação, e o direito à segurança pública, em contrapartida, ao ambiente da rede de internet.
2.3 Colisão entre o Direito fundamental à privacidade e a internet
Ante a evolução da humanidade, com especial a forma de comunicação, a sociedade moderna evoluiu da pedra talhada ao papel, do código Morse7 à localização por GPS8, da carta ao correio eletrônico, do telegrama à videoconferência e por aí vai (WATFE, 2006).
Nesta toada, a transmissão de informações entre os diversos usuários espalhados pelo mundo ligados a internet desconstruiu as barreiras físicas entres as pessoas e em qualquer lugar do mundo (WATFE, 2006).
Vários foram os benefícios para a humanidade com este acesso amplo permitido pela internet, por exemplo, no fato de possibilitar a troca de informações para diferentes regiões com alta velocidade. Todavia, as desvantagens se inclinaram à ameaça aos direitos fundamentais, seja pela intervenção do Estado, seja pela ferida ao direito da privacidade (WATFE, 2006).
Diante de tais fatos, alguns autores, dentre eles Antônio Carlos Wolkmer (2013) e Martinelli (2015), incluem os direitos relativos à internet, digital ou cibernética como Direitos fundamentais de quinta geração.
Oliveira com mais detalhes se preocupa em incluir no rol dos direitos de quinta geração “desenvolvimento de softwares, a biociências, sucessão dos filhos havidos por inseminação artificial, clonagem [...] alguns desses direitos possuem guarida no panorama legislativo, com o advento da lei de Biossegurança” (2015, p. 299).
Sobre o assunto, o é plausível o entendimento apresentado pelo Ministro Herman Benjamin, no Recurso Especial nº 1.117.633/RO, ao afirmar que "a internet é o espaço por excelência da liberdade, o que não significa dizer que seja um universo sem lei e infenso à responsabilidade pelos abusos que lá venham a ocorrer".
Neste sentido, com a mesma preocupação o Tribunal Mexicano prolatou decisões visando regulamentar o ambiente virtual em período leitoral, Meyer (2020, p. 321) como vemos:
O Tribunal Electoral compreendeu que tal meio potencializa a liberdade de expressão por quatro elementos diferenciadores:
1) suposta universalidade de acesso, pelo qual todos os atores políticos poderiam se utilizar de forma gratuita esse instrumento de comunicação; [...]
3) não discriminação, em compasso com uma atuação estatal proativa, o ambiente virtual permite que minorias se expressem no ambiente público com maior liberdade;
4) possibilidade de proteção da privacidade daqueles que estão se expressando na internet (GRIFO NOSSO)
Completou ainda Meyer sobre a decisão da justiça mexicana:
Nessa perspectiva, o tribunal alcançou duas conclusões teóricas sobre o alcance da liberdade de expressão:
1) a internet se apresenta como um meio potencializador da comunicação política e por isso deve ser regulada em prol de se garantir maior liberdade de seus usuários; e,
2) a comunicação política alcança uma proteção especial durante o período eleitoral, especialmente no ambiente virtual diante da facilidade de acesso por qualquer cidadão do debate público e pelo intercâmbio célere de informações que se dá de maneira orgânica entre os usuários das redes (MEYER, 2020, P. 321. GRIFO NOSSO)
No mesmo sentido, o Ministério das Relações Exteriores, Itamaraty, conforme em sua nota número 94, no ano de 2017, foi aprovada, por consenso, a resolução sobre o direito à privacidade na era digital. O documento visa os países participantes a respeitar e proteger o direito à privacidade, além de prover medidas de reparação. Ao todo foram 68 países que participaram da resolução (ITAMARATY, 2017).
Além do exposto, a revolução causada pela internet até pela acepção da palavra, isto é, junção das palavras inglesas inter (tradução direta, internacional) + net (tradução direta, rede) proporcionou ao ser humano novas formas de se conectar (BATISTA e EUFRÁSIO, 2016).
Nestas novas formas de conexão estão as mídias sociais, como explica Soily Braga (2016, p. 90):
As redes sociais têm uso massivo no mundo e isso traz consequências na habilidade das pessoas, no jeito que a informação circula na pós-modernidade, nas construções de valores e dentre outros. Dentro do Facebook, nos encontramos muito mais próximos das pessoas que em outro espaço. Há uma representação do indivíduo ou de uma instituição através do autor.
A problemática das mídias sociais está na possibilidade de manifestação de opinião, publicação de fotos particulares, registros de informações como de locais frequentados e muito mais, sem qualquer limite estabelecido entre certo ou errado, tempo ou lugar e afins. Quanto a isto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu artigo 4º, foi enfática ao conceituar liberdade de expressão, se não vejamos:
A liberdade consiste em poder fazer tudo àquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei (FRANÇA apud FILHO, 1978, p. 201).
Neste diapasão, podemos observar que existe uma garantia fundamental que protege o indivíduo, ainda que no ambiente virtual. Entretanto, é notório que o uso da rede internet vem sendo no sentido da não observância legal (MARTINELLI, 2015).
Por conseguinte, observamos que a necessidade de preservar a privacidade e a liberdade ultrapassa a esta seara, sendo necessário a criação de uma legislação forte o suficiente, tema do tópico do assunto posterior.