LIQUIDEZ: a adequada metáfora da modernidade

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26/01/2021 às 01:57
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Bauman foi o pensador que melhor analisou e diagnosticou a Idade Contemporânea. Apontando suas características, contradições e principais mazelas.

LIQUIDEZ: a adequada metáfora da modernidade

Palavras-Chave: Pós-modernismo. Modernidade Líquida. Idade Contemporânea. Relações sociais e políticas.

Os líquidos não mantêm sua forma com facilidade. Os fluídos não fixam o espaço e nem prendem o tempo. Enquanto que os sólidos têm dimensões espaciais claras e definidas, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo) ou o tornam irrelevante, os fluídos não se atêm muito a qualquer forma e, estão constantemente prontos ou propensos a mudá-la; assim o que conta é o tempo, mais que o espaço que lhes toca ocupar. Os líquidos preenchem o espaço apenas por um momento.

Concluímos que, em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os fluídos, ao contrário, o tempo é o que importa. As descrições de líquidos são fatos instantâneos e que precisam ser datados.

Desta forma, a extraordinária mobilidade dos fluídos é o que os associa à leveza. E associamos à essa leveza ou ausência de peso, e, ainda, à mobilidade e à inconstância, sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos.

Eis as razões pelas quais consideramos a fluidez ou liquidez como metáforas adequadas para captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras dentro história da modernidade.

Numa visão individualizada e privatizada de modernidade é o peso da responsabilidade pelos fracassos que caem principalmente sobre os largos ombros dos indivíduos.

Então é chegada a hora da liquefação dos padrões de dependência e interação. Tratam-se de padrões maleáveis, numa forma não experimentada pelas gerações passadas e, que nem poderiam imaginar, tal qual os fluídos, eles não mantêm a forma por muito tempo. Afinal, dar-lhes a forma é mais fácil que mantê-los nesta.

Os sólidos são moldados para sempre, por outro lado, manter os fluídos em uma determinada forma requer muita atenção, vigilância constante e o esforço perpétuo e, manter o sucesso do esforço é mesmo difícil é hercúleo.

O advento da modernidade fluída trouxe profunda mudança na condição humana. E o fato de que a estrutura sistêmica seja remota e inalcançável, aliado ao estado fluído e não estruturado do cenário direto da vida política, o que requer que repensemos os velhos conceitos que habitavam e cercavam nossas narrativas.

Como zumbis, como mortos-vivos esses conceitos perambulam em farrapos. A principal questão prática consiste em saber, se a ressureição ainda que em nova forma ou reencarnação é possível. E, se não o for, como fazer para quer esses velhos conceitos tenham um enterro digno, decente e eficaz.

O que nos leva a cogitar sobre o “fim da história da pós-modernidade”, da segunda modernidade e, ainda da sobremodernidade para articular a intuição de uma mudança radical.

No arranjo do convívio humano e nas condições sociais sob as quais a política-vida se desenvolve hoje, ademais, devemos reconhecer o longo esforço para acelerar a velocidade do movimento que chegou ao seu “limite natural”.

Afinal, a liberdade é uma benção ou uma maldição? O que realmente significa a liberdade? Ou será uma maldição disfarçada de benção ou uma benção temida como maldição?

A libertação é chibatada ou misericórdia? O que é libertação?

Tais questionamentos intrigaram os pensadores durante a maior parte da era moderna que punha a “libertação” no topo da lista para a reforma política e nos píncaros dos valores.

Quando então ficou claro que a liberdade custava a chegar e que os deveriam gozar, relutavam em dar-lhes as boas-vindas.

Existiram basicamente dois tipos de resposta, a saber: A primeira resposta lançava a dúvida sobre a prontidão do “povo comum” para a liberdade.

E, nesse sentido, é conveniente recordar das palavras de Herbert Sebastian Agar[1] que disse in litteris; “ a verdade que torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem não ouvir”.

A segunda resposta inclinava-se a aceitar que os homens podem ou não estar inteiramente equivocados, quando questionam os benefícios que as liberdades oferecidas podem, de fato, lhes trazer.

O indivíduo submete à sociedade, e tal submissão é a condição de sua libertação. Para o homem, a liberdade consiste em não estar sujeito às forças físicas cegas. E, mesmo opondo-se ao forte apelo da sociedade e, se torna até certo ponto dependente dela.

Porém, é uma dependência libertadora e não há nessa afirmação nenhuma contradição. Não há apenas ausência de contradição entre a dependência e libertação, pois não há outro caminho para se buscar libertação senão submeter-se à sociedade e seguir suas normas e regras.

A liberdade não pode ser adquirida contra a sociedade. O resultado da rebelião contra as normas, mesmo que os rebelados não tenham se tornado bárbaros de uma vez por todas, e, perdido a capacidade de julgar sua própria condição, é sentir uma agonia contínua de indecisão ligada ao Estado de incerteza sobre as intenções e movimentos dos outros ao redor, o que transforma a vida num inferno.

Enfim, o que há de errado na sociedade contemporânea?

Afirmou Cornelius Castoriadis[2] que essa sociedade deixou de se questionar. Não reconhece qualquer alternativa para si mesma, e, portanto, sente-se absolvida do dever de examinar, demonstrar e justificar a validade de sus suposições tácitas e declaradas.

O que não significa que tenha suprimido o pensamento crítico, não deixou os membros da sociedade contemporânea reticentes e nem temerosos em lhes dar voz.

Ao revés, essa sociedade de “indivíduos livres” fez da crítica da realidade, da insatisfação, com o presente como parte inevitável e obrigatória dos afazeres da vida de cada um de seus membros.

Porém, essa reflexão não vai longe o suficiente para alcançar complexos mecanismos capazes de conectar nossos movimentos com os resultados, de unir a dinâmica metafísica, com a dialética lógica. Também não se conhecem as condições que mantêm tais mecanismos em operação.

É verdade que somos predispostos à crítica, somos mais assertivos e intransigentes em nossas críticas (por vezes, tão ácidas e cruéis) principalmente de nossos ancestrais em vida cotidiana, mas nossa crítica é, de certa forma, desdentada, pois é inútil e não afeta a agenda estabelecida para nossas escolhas na “política-vida”.

Conforme bem alertou L. Strauss[3], a liberdade sem precedentes acarretou também impotência sem precedentes, acarretou também uma impotência sem precedentes.

A modernidade pesada, sólida e condensada (sistêmica) quando vigorava a teoria crítica que era impregnada da tendência ao totalitarismo. Dotada de homogeneidade compulsória que é onipresente e, geograficamente situada no horizonte, reconhecido como destino último, tal qual uma bomba nunca inteiramente desarmada ou como um fantasma nunca totalmente exorcizado.

Tal modernidade dura e sólida era inimiga declarada da contingência da verdade, da ambiguidade, da instabilidade e idiossincrasia. Tal modernidade pesada e condensada declarou guerra às anomalias e, esperava-se que a liberdade e autonomias individuais fossem as primeiras vítimas dessa saga.

Entre os principais princípios norteadores da modernidade dura estavam a fábrica fordista que reduziria as atividades humanas a simples movimentos, coordenados, rotineiros e predeterminados e, que deveriam ser seguidos de forma obediente e mecânica, sem envolver as faculdades mentais e, excluindo toda a espontaneidade e a iniciativa individual.

Duas são as principais características que notabilizam a modernidade líquida: a primeira se refere ao gradual colapso e o célere declínio da antiga ilusão moderna (de que há um fim do caminho em que andamos, um telos [4]alcançável, da mudança histórica) de que haja um estado de perfeição a ser atingido pelo futuro próximo.

De que haja um tipo de sociedade boa, justa, solidária e sem conflitos em todos ou sentidos, ou apenas em alguns de seus aspectos; a postulação de equilíbrio firme existente entre a oferta e procura e a satisfação de todas as necessidades da ordem perfeita, onde tudo tem um “lugar certo”, nada que seja deslocado persiste e nenhum lugar é posto em dúvida; de que as coisas humanas se tornam absolutamente transparentes, porque se sabe tudo que deve ser sabido; a ideia do completo domínio do futuro, o que colocaria um fim a toda contingência, a toda disputa, ambivalência, bem como as imprevistas consequências das inciativas humanas.

A segunda característica é a desregulamentação e a privatização de tarefas e deveres modernizados pois, o que era considerado tarefa para razão humana, encarada como dotação e propriedade coletiva da espécie humana foi fragmentado e individualizado e atribuído às vísceras e a energia dos indivíduos, deixando à administração dos indivíduos e seus recursos.

Assim a individualização hoje significa algo bem diferente do que significava há cem anos e, do que implicava nos primeiros tempos da era moderna, os tempos da exaltada emancipação do homem na trama estreita da dependência, da vigilância e da imposição comunitária.

A individualização hoje consiste em transformar a identidade humana em um dado, uma tarefa e ainda encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e suportar as consequências, tais como os efeitos colaterais de sua realização.

Noutros termos, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure, independentemente da autonomia de fato, também ter sido estabelecida. Para assumir o abismo existente entre a individualidade como fatalidade e a individualidade como capacidade realista e prática de autoafirmação está aumentando.

É melhor ser afastado da individualidade por atribuição, como individuação, o termo escolhido por Beck[5] para distinguir o indivíduo autossustentado e auto-impulsionado daquele que não tem escolha senão a de agir, ainda que contrafatualmente, como se a individualização tivesse sido alcançada.

Saltar sobre esse referido abismo, é parte crucial dessa capacidade.

A individualização chegou para ficar, pois toda a elaboração sobre os meios de enfrentar seu impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir do reconhecimento desse fato. A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas, uma liberdade sem precedentes de experimentar, mas traz junto a tarefa também sem precedentes de igualmente enfrentar as consequências.

O abismo instaurado entre o direito à autoafirmação e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa autoafirmação algo factível ou irrealista, parece ser a principal contradição da modernidade fluída, contradição, que por tentativa e erro, traz a reflexão crítica e a experimentação corajosa de que precisamos aprender a manejar coletivamente.

Ao tempo da modernidade pesada segundo os termos de Max Weber[6] era também a era da racionalidade instrumental[7], o tempo era o meio que precisava ser administrado prudentemente para que o retorno de valor, que era o espaço, pudesse ser maximizado; na era da modernidade leve, a eficácia do tempo como meio de alcançar valor tendente a aproximar-se ao infinito, como o efeito paradoxal de nivelar por cima, ou antes, por baixo, o valor de todas as unidades no campo dos objetivos potenciais.

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O ponto de interrogação moveu-se do lado dos meios para o lado dos fins. Se aplicado à relação tempo-espaço, isso significa que, como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo período de tempo, (isto é, em tempo nenhum), nenhuma parte do espaço é privilegiada, nenhum tem um valor especial.
 

Se todas as partes do espaço podem ser alcançadas a qualquer momento, não há razão para alcançar qualquer uma delas num dado momento e, nem tampouco razão para se preocupar em garantir o direito de acesso a qualquer uma delas.

Se soubermos que podemos visitar um lugar em qualquer momento que quisermos, não há urgência em visita-lo em gastar dinheiro em uma passagem validade para sempre. Há ainda menos razão para suportar o gasto da supervisão e administração permanentes, do laborioso e arriscado cultivo de terras que podem ser facilmente ocupadas e abandonadas conforme os interesses momentâneos e relevâncias tópicas.    

O tempo instantâneo e sem substância do mundo leve, é também um tempo sem consequências. A instantaneidade significa realização imediata, no ato, mas também a exaustão e o desaparecimento do interesse.

A distância em tempo que separa o começo do fim está diminuindo, ou mesmo desaparecendo; as duas noções, que outrora, eram usadas para marcar a passagem do tempo, e, portanto, para calcular seu valor perdido, perderam muito de seu significado, bem como todos os significados de onde derivava de sua rígida oposição.

Há apenas momentos, pontos sem dimensões, há apenas momento de tempo que contém alguns aspectos vitais e cometidos de auto-aniquilação.

O trabalho sem corpo da era da modernidade leve, não mais amarra o capital, permite ao capital ser extraterritorial, volátil e inconstante. Eis o fenômeno da globalização.

A descorporificação do trabalho anuncia a ausência de peso do capital. Sua dependência mútua fora unilateralmente rompida, enquanto a capacidade do trabalho é, como antes, incompleta e irrealizável isoladamente, o inverso não confiante em que não haverá escassez destas ou de parceiros com quem compartilhá-las.

O capital pode viajar rápido e leve e sua leveza e mobilidade se tornaram as fontes mais importantes da incerteza para todo o resto. Sendo essa a principal origem da dominação e das divisões sociais vigentes.

Conclui-se que a infinidade de possibilidades esvaziou a infinitude do tempo, de seu poder sedutor, a durabilidade perde sua atração e passa de um recurso para ser apenas um risco. Talvez seja mais adequado observar que a própria linha de demarcação entre o durável e o transitório, outro foco de disputa surge para a engenharia, foi substituída pela polícia de fronteira e por batalhões de construtores.

A desvalorização da imortalidade não pode senão anunciar a rebelião cultural, defensavelmente o marco mais decisivo da história cultural da humanidade.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução de Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

_________________. A mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

CÔRTES, Mariana. Modernidade, assimilação e ambivalência no Brasil. A construção social da ambivalência na sociedade brasileira contemporânea. Disponível em:http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Mariana-Cortes.pdf.  Acesso em 05.04.2017.

DOS SANTOS, Robison. Considerações sobre a perfectibilidade humana a partir de Rousseau e Kant. Estudos Kantianos (EK) volume 1, n.2. 2014.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade. Estadual Paulista, 1991.

HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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