1. LIBERDADES MODERNAS: DIREITOS DE PRIMEIRA GERAÇÃO:
O Direito, por ciência social que é, evolui com a própria evolução da sociedade. Diferentemente das ciências exatas, o direito constrói-se socialmente, renova-se com a criação de novos direitos, reconquista alguns amiúde perdidos ou evolui e aperfeiçoa os já existentes, tornando-se assim dinâmico como a sociedade para responder aos anseios e necessidades desta.
José Afonso da Silva nos ensina que cada passo na etapa da evolução da Humanidade importa na conquista de novos direitos. Mais que conquista, o reconhecimento desses direitos caracteriza-se como reconquista de algo que, em termos primitivos, se perdeu, quando a sociedade se dividiu entre proprietários e não proprietários[1].
Neste diapasão, Rudolph von Jhering[2] explica que se pode encontrar o motivo do desaparecimento de muitos direitos e garantias fundamentais com o surgimento da propriedade privada. Com a subordinação decorrente das relações da propriedade territorial, há o surgimento da escravidão sistemática, diretamente relacionada com a aquisição de bens. Há, também, o surgimento do Estado repressor com seu aparato para sustentar esse sistema de dominação.
Morgan sustenta a idéia que chegará um dia onde
o intelecto humano se elevará até dominar a propriedade e definir as relações do Estado com a propriedade que salvaguarda e as obrigações e limitações de direitos do seu dono. Os interesses da sociedade são maiores que os dos indivíduos e devem ser colocados em uma relação justa e harmônica. A democracia no governo, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e privilégios e a educação universal antecipam o próximo plano mais elevado da sociedade, ao qual a experiência, o intelecto e o saber tendem firmemente. Será uma ressurreição, em forma mais elevada, da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gentes [3].
Marco importante na evolução da sociedade e do direito foi a criação e desenvolvimento dos direitos fundamentais, cuja gênese se deu na segunda metade do século XVIII como resultado dos diversos movimentos de reforma que culminaram na criação do Estado moderno.
Dentre as fontes de criação dos direitos fundamentais, a doutrina francesa destaca as condições reais ou históricas e as condições subjetivas ou ideais ou lógicas, que passamos a apontar brevemente:
Do ponto de vista histórico, a humanidade enfrentava um contraste existente entre a monarquia absolutista, criadora de uma sociedade estamentada e estagnada que conflitava com a nova sociedade causada pela expansão comercial e cultural do século XVIII. Essa contradição entre uma superestrutura atrofiada e uma sociedade progressista não poderia deixar de provocar uma crise muito grave na vida da nação, produzindo um efeito tão forte que, como nos ensina Giorgio Del Vecchio[4], em certo ponto as autoridades estabelecidas se encontraram na impossibilidade de ir adiante no governo, cedendo à necessidade histórica do desaparecimento do absolutismo.
Subjetivamente, o pensamento cristão primitivo (pois o cristianismo do século XVIII favorecia o absolutismo), o jusnaturalismo e o pensamento iluminista contrapunham-se ao método absolutista vigente, defendendo a igualdade entre todos os homens e a dignidade da pessoa humana. O cristianismo, em especial, é de suma importância nesse processo. A idéia de que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus assume alto valor intrínseco, gerando a visão antropocentrista com reflexos no direito positivado.
Essas condições, tanto históricas quanto subjetivas, tiveram decisiva influência sobre a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, e sobre a Declaração francesa, de 1789. Por isso, com maior freqüência, situa-se o ponto fulcral do desenvolvimento dos direitos fundamentais na segunda metade do século XVIII, sobretudo com o Bill of Rigths de Virgínia, quando se dá a positivação dos direitos tidos como inerentes ao homem, até ali mais afeiçoados a reivindicações políticas e filosóficas do que as normas jurídicas obrigatórias, exigíveis judicialmente, como nos ensina Branco.[5]
Neste cenário, devemos destacar a Revolução Francesa como marco da positivação dos direitos fundamentais com a célebre Declaração dos Direitos do Homem, em 1789, pois tal declaração, embora menos abrangente do que suas contemporâneas, não se dirigia a uma camada social privilegiada, mas “tinha por destinatário o gênero humano. Por esta razão, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade” [6].
A conquista importante de tais declarações seriam os direitos fundamentais. Segundo Canotilho,
A função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico subjetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). [7]
Ainda, os direitos fundamentais seriam, segundo a lição de Carl Schimitt[8], aqueles que recebem hoje da Constituição um grau mais elevado de garantia ou de segurança; ou são imutáveis (unabänderliche) ou pelo menos de mudança dificultada (erschwert).
Do ponto de vista material, para Schimitt, os direitos fundamentais variam conforme a ideologia, a modalidade de Estado, a espécie de valores e princípios que a Constituição consagra. Em suma, cada Estado tem seus direitos fundamentais específicos.
Podemos, ainda, para facilitar o entendimento, dividir os direitos fundamentais de acordo com a sua evolução histórica.
Os direitos positivados com as Revoluções americana e francesa, por serem os primeiros, são chamados de direitos de primeira geração. Comumente, a doutrina os classifica como postulados de abstenção dos governantes. Ou seja: surgem para conceder à população o direito de opor-se negativamente à determinadas imposições do Estado, criando obrigações de não fazer, de não intervenção estatal,ressaltando a liberdade individual, objeto de estudo deste capítulo.
Neste sentido ainda, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, comentando a respeito dos direitos fundamentais, preleciona que “a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, complementaria o lema da o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade”.
Já os direitos de segunda geração são os direitos sociais, culturais e econômicos, exercidos pela coletividade e têm como data de origem o século XX. Nasceram em decorrência do princípio da igualdade e dominaram as constituições pós 2ª Guerra Mundial.
Os de terceira geração consagram o princípio da solidariedade, sendo um importante marco no desenvolvimento dos direitos fundamentais, pois visa uma maior abrangência destes, protegendo bens não mais de homens isoladamente, mas de grupos ou coletividades, tal como o direito à paz, meio ambiente e proteção à patrimônios culturais da humanidade.
Bonavides[9] ainda advoga a idéia de direitos fundamentais de quarta e de quinta geração, sendo os de quarta o direito à democracia, à informação e ao pluralismo (democracia positivada); e o de quinta como o direito à paz. No entanto, para o presente estudo, nos deteremos na análise apenas dos direitos fundamentais de primeira geração.
- Liberdade Religiosa – Origem histórica:
O desenvolvimento das garantias fundamentais ocasionou no seu reconhecimento praticamente global por todas as Constituições dos Estados Modernos.
Já encontramos a liberdade religiosa nas primeiras Declarações dos Direitos do Homem, e em algumas constituições confederadas da América, como na do Estado da Virgínia (1776), nas Constituições dos Estados de Pensilvânia e de Maryland (1776), e na primeira emenda da Constituição Federal dos Estados Unidos a América.
O direito de liberdade religiosa foi, também, recepcionado na França pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em 3 de novembro de 1789.
Segundo Pavan[10], foi devido à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 que se difundiu amplamente a liberdade religiosa como um direito de cada pessoa. Graças à ela, todos os países da América Latina reconheceram este direito, bem como na maioria dos países da África e da Ásia.
Quer tenhamos como base a tradição jurídica francesa ou americana, concordamos com o autor supracitado, que defende a idéia de que a liberdade religiosa tem uma origem tríplice:
A primeira motivação se encontra na desconfiança sobre o poder cognitivo da razão. Ou seja: se para alguns existem dúvidas quanto a existência ou não de um ser transcendental; e se mesmo entre os que estão plenamente convencidos dessa existência surgem divergências quanto ao modo de buscá-lo e servi-lo; resta evidenciada divergência no assunto.
Se existem divergências, a liberdade religiosa surge como uma dedução da impossibilidade de proclamar uma religião como a oficial de um Estado, posto que pessoas diferentes pensam diferentemente, e chegam a conclusões diversas.
Essa diversidade de pensamentos resulta na necessidade da liberdade, para que cada um busque a Deus da maneira que melhor lhe aprouver, ou até mesmo não creia nele.
A segunda razão para o surgimento da liberdade religiosa é menos filosófico e mais pragmático que o primeiro: a diversificação da sociedade.
Com o desenvolvimento econômico, científico e cultural na Europa, houve o surgimento de uma sociedade pluralista, composta de pessoas do norte da África, noroeste da Ásia, judeus, árabes, judeus, dentre outros grupos menores.
Pessoas diferentes, com crenças diferentes.
No entanto, diversidade essencial para o desenvolvimento europeu.
Era imperioso no desenvolvimento europeu que houvesse um espírito de tolerância e boa vontade para com os diferentes, para que se alcançasse um bem comum, a saber, desenvolvimento social.
Por terceiro, a própria conscientização dos seres humanos da dignidade da pessoa humana.
Tal conscientização levou ao reconhecimento de que, acima da busca de uma verdade universal; que ocasionaria com a imposição de uma religião universal; existe a dignidade humana, que seria violentada caso alguém fosse forçado a crer em algo que discorda ou até mesmo abomina.
Do exposto, podemos assinalar estes três aspectos como os principais para o surgimento e desenvolvimento da liberdade religiosa, sendo burilados no transcorrer da história até os dias de hoje, como veremos em capítulo posterior.
Entretanto, antes de adentrarmos no desenvolvimento das liberdades de pensamento, convém efetuarmos algumas considerações sobre o terceiro elemento da tríade responsável pela sua formação: a dignidade da pessoa humana.
- O supraprincípio da dignidade da pessoa humana:
Na lição de Moraes, a dignidade da pessoa humana “é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida”.[11]
Esta autodeterminação tem características tanto negativas quanto positivas. Mira, também, afastar a intervenção maciça das ideologias e concepções estatais na esfera individual dos que estão sob seu domínio.
Szaniawski, em importante estudo sobre os direitos de personalidade, admite ser a dignidade da pessoa humana algo difícil de definir.[12]
Para ele, a dignidade apresenta tamanha quantidade de formas e meios de se apresentar, além de ter um conceito específico e determinado para cada ciência que resolve apontar a dignidade apenas do ponto de vista jurídico – é um atributo da pessoa humana o qual deve ser tanto a base para a atuação estatal quanto a finalidade de todos os seus atos.
Citando Coing[13], o princípio da dignidade da pessoa humana tem dois aspectos.
O primeiro é a proteção da integridade da pessoa humana, que deve ser protegida de toda e qualquer ofensa, física ou psíquica. Seria, então, de caráter negativo, pois impediria que terceiros praticassem atos que atentassem contra a dignidade do indivíduo.
O segundo aspecto da dignidade humana assume um caráter positivo. É a liberdade de autodeterminação do indivíduo. A possibilidade de ir, vir, permanecer e ter suas convicções filosóficas e religiosas, exercer a sua cidadania, faz parte da dignidade da pessoa humana. “Sob um ponto de vista mais amplo, a dignidade da pessoa humana expressa o direito de a pessoa ser respeitada como ser intelectual”. [14]
Tal é a importância da dignidade da pessoa humana que alguns autores a definem como um supraprincípio, posto que, além de ser um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, é a base e o fim de todos os princípios. Os princípios constitucionais e infraconstitucionais posteriores têm como escopo garantir a dignidade da pessoa humana.
Além disso, em todas as questões onde discutem-se princípios equivalentes, deve-se usar a dignidade da pessoa humana como elemento fundamental para a decisão. Segundo Moraes, “somente excepcionalmente podem ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos” (grifado no original).[15]
Digno de nota que a dignidade da pessoa humana é anterior ao próprio direito. A pessoa já nasce com sua dignidade, independentemente de qualquer garantia legal posterior.
A dignidade é anterior ao direito, não necessitando, por conseguinte, ser reconhecida juridicamente para existir. Sua existência e eficácia prescinde de legitimação, mediante reconhecimento expresso pelo ordenamento jurídico.[16]
Numa breve síntese histórica, a dignidade da pessoa humana surgiu com o cristianismo, onde o homem passou a ser valorizado como ser individual, e foi sendo desenvolvida até a Idade Média, onde foi um dos fundamentos do humanismo.
Na Idade Média podemos destacar a doutrina do antropocentrismo, o homem como o centro da razão; inicialmente do ponto de vista político, posteriormente para os outros campos do conhecimento; como o elemento mais determinante para a formação da dignidade da pessoa humana.
E, neste ponto, convém considerarmos que o antropocentrismo suporta até mesmo o teocentrismo em pequena escala ou individualmente.
No antropocentrismo permite-se que o homem, quer individualmente ou em grupo, seja o senhor das suas próprias razões e emoções. Desliga-se da maciça intervenção estatal/religiosa, para dar ao homem a possibilidade de autogerir-se filosoficamente ou religiosamente.
Essa modificação do centro da razão dá, indubitavelmente, a possibilidade de que cada um faça sua escolha, inclusive, de manter-se em um pensamento teocêntrico.
Já com o Iluminismo, com a razão sendo o ponto principal da busca pelo conhecimento, a dignidade da pessoa humana foi fundamental para elaborar os direitos fundamentais de primeira geração, estudados no início do capítulo, principalmente liberdade e igualdade.
Consubstanciado nisto, podemos afirmar com razão que o princípio da dignidade da pessoa humana é um supraprincípio e anterior ao próprio direito moderno, pois foi a base da formação de todo o pensamento jurídico atual.
E, enquanto princípio, é uma idéia geral que deve ser utilizado tanto como meio interpretativo quanto como alicerce para as normas, assim como o princípio da igualdade, reserva legal, inviolabilidade de domicílio, dentre outros.
Ainda, na mesma linha de raciocínio de Szaniawski[17], o princípio da dignidade pode ser vislumbrado sob dois aspectos. O primeiro, a dignidade como a expressão da essência da pessoa humana e, de outro, o fundamento da ordem política e de paz social, como uma fonte de direitos.
Continuando, como fonte de direitos, a dignidade humana deve ser encarada como “princípio matriz, gerador de outros direitos fundamentais, ao atuar possui eficácia vinculante em relação ao próprio poder público e seus órgãos e em relação aos particulares, podendo, inclusive, trazer limitações às liberdades públicas”[18].
Em suma, por ser um supraprincípio, não pode ser limitado pelos outros. Não se pode, por exemplo, em nome do princípio da legalidade, preterir a dignidade da pessoa humana. Ainda mais que as leis foram feitas para as pessoas, e não da maneira contrária.
Após essas considerações, vejamos como a liberdade de pensamento, especificamente a liberdade religiosa, evoluiu no Brasil, à luz da dignidade da pessoa humana.
2. DESENVOLVIMENTO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL
Conforme considerado no capítulo anterior, item 1.2, o fator determinante para o surgimento e desenvolvimento da garantia das liberdades de pensamento, especificamente na espécie liberdade religiosa, foi a pluralização da sociedade.
Em solo pátrio, não foi outro o motivo.
Como bem assevera o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, nosso país sempre teve uma afinidade com o pensamento estrangeiro, notadamente o europeu e, por vezes, implantava idéias aqui que mal haviam acabado de surgirem em terras estrangeiras.[19]
Neste afã, não raras vezes o enxerto legal produzia verdadeiros descalabros legais, mistos do pensamento evoluído, empírico e já consolidado europeu com o de uma nação relativamente nova, sociedade ainda escravagista e intelectualmente dependente.
Com o surgimento da liberdade religiosa nas cartas européias, a nossa primeira constituição republicana, datada de 1891, já anunciava a liberdade religiosa por separar o Estado da Igreja Católica.
2.1. Fase do Estado Religioso:
Antes da Constituição de 1891, ainda no Brasil Colônia, éramos um Estado religioso. Mariano nos retrata o período da seguinte maneira:
“[...] o Estado regulou com mão de ferro o campo religioso: estabeleceu o catolicismo como religião oficial, concedeu-lhe o monopólio religioso, subvencionou-o, reprimiu as crenças e práticas religiosas de índios e escravos negros e impediu a entrada das religiões concorrentes, sobretudo a protestante, e seu livre exercício no país”[20]
Com a instituição do Império, a Constituição Imperial de 1824 manteve a religiosidade estatal, expressa em seu artigo 5º, que determinava a religião Católica Apostólica Romana era a religião do Império.
Ari Pedro Oro traça um quadro da situação do Brasil Império da seguinte forma:
Idêntica situação se manteve no Brasil Império. O artigo 5 da Constituição Imperial de 25 de março de 1824, outorgada por D. Pedro I, dizia: ‘a religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do império’. Um corolário deste artigo é de que professar a religião católica torna-se condição para alguém ser eleito deputado (Artigo 95, parágrafo 3. da Constituição). Mas, em função do regime do padroado – segundo o qual o Poder Executivo possui a obrigação de proteger a religião do Estado, mas ao mesmo tempo detém prerrogativas constitucionais como nomear bispos e fiscalizar a igreja em assuntos administrativos e econômicos, bem como aprovar ou não bulas pontifícias, mesmo aquelas dedicadas exclusivamente a temas religiosos (Artigo 102) – a relação entre o poder civil e o poder eclesiástico foi de crescente oposição e mesmo conflitos, ficando este último cada vez mais em situação de submissão ao poder político.[21]
Com efeito, com o Padroado, o próprio monarca detinha o poder religioso sendo, então, a autoridade máxima detentora dos 3 poderes, ou 4 (legislativo, executivo, judiciário e moderador), além do poder eclesiástico a ele conferido.
Embora não se chegasse ao extremo de outras culturas, onde o próprio chefe de Estado é considerado um deus em si, a centralização dos poderes no monarca acabava criando um estado religioso.
2.2. Transição para o Estado Laico:
Da nossa história, dois grandes conflitos contribuíram para o rompimento entre a Igreja e o Estado.
Oro nos ajuda a entender:
[...] durante o período imperial, ocorreram, entre outros, dois grandes conflitos entre a Igreja e o Estado e que contribuíram para a separação entre esses poderes. Trata-se da “Cisma de Feijó” (1827-1838) e a “Questão Religiosa” (1872-1875).
O primeiro conflito girou em torno do celibato do clero, defendido pelo padre Diogo Antonio Feijó e outros parlamentares, e da não confirmação por parte da Santa Sé da nomeação do padre Antonio Maria de Moura para o bispado do Rio de Janeiro, por ele ter assinado projetos contrários aos preceitos eclesiásticos então vigentes. Segundo Scampini, “essa recusa da Santa Sé foi interpretada como uma violação do art. 102 da Constituição que estabelecia o direito do governo imperial de nomear os bispos: essa recusa constituía uma afronta à soberania da nação”. Por isso, o Regente Pe. Feijó manifestou, em 1836, claramente o intento de separar a igreja brasileira da igreja romana, fato que gerou importantes embates que somente foram superados com a retirada do Pe. Feijó da regência imperial e com a renúncia do Pe. Moura ao bispado do Rio de Janeiro.
O segundo conflito ocorreu quando o bispo de Olinda, Frei Vital Maria, resolveu aplicar, em 1872, os preceitos das encíclicas Quanta Cura, Syllabus de Erros e Qui Pluribus, do papa Pio IX, as quais sustentavam a proibição da comunhão entre católicos e maçons, prática comum no país. Com base nestes documentos, o mencionado bispo recusou a celebração comemorativa da fundação de uma loja maçônica em Pernambuco e ordenou às confrarias religiosas que expulsassem seus membros ligados às “sociedades secretas”. Tais medidas foram também adotadas por D. Antônio Macedo Costa, bispo do Pará. A maçonaria reagiu recorrendo ao governo imperial que, em razão da sustentação das medidas por parte de ambos os bispos, condenou-os, em 1874, a quatro anos de prisão em regime de trabalho forçado, anistiados no ano seguinte. [22]
Esses dois conflitos, juntamente com a pressão exercida pela Inglaterra para que os ingleses residentes aqui tivessem liberdade de culto, foram marcos importantes para a determinação da liberdade religiosa em nossa Constituição.
Entretanto, como assinala Oro[23], a Constituição de 1824, embora não estabelecesse um Estado laico, trazia avanços na questão da liberdade religiosa, pois permitia a liberdade de cultos, desde que não desrespeitassem a religião oficial, não ofendessem a moral pública, e que os cultos fossem realizados no ambiente doméstico.
Tais dispositivos constitucionais explicam o porque de as igrejas protestantes terem o aspecto, algumas até os dias de hoje, de casas, e não de templos.
2.3. Da secularização estatal
A Proclamação da República do Brasil, em 15 de novembro de 1889, resultou em nossa primeira Constituição Republicana, datada de 1891.
Nesta, houve a efetiva separação entre Igreja/Estado, garantindo, pela primeira vez em nossa história, a liberdade religiosa para todas as crenças.
Oro[24] esclarece que três grupos foram preponderantes na separação Igreja/Estado: os republicanos, os positivistas e os protestantes, somando-se a eles os maçons, que se enquadravam nestes três grupos.
No entanto, como veremos no capítulo adiante, não existiram sempre a garantia dos três elementos da liberdade religiosa (liberdade de crença, culto e organização religiosa) constantes na Constituição de 1891 e seguintes.
Algumas vezes, como na Constituição de 1967, algum elemento era suprimido.
A partir da Constituição de 1891, estava garantido, ao menos legalmente, a liberdade religiosa no Brasil
Diz-se apenas legalmente porque embora houvesse a previsão legal, os outros cultos, principalmente os africanos, eram vistos com grande preconceito pela sociedade, sendo até mesmo a prática de magia ou macumba reprimidos pelas autoridades.
Podemos dizer que a laicização do Estado era apenas aparente porque, como todo processo histórico ou social, não há um rompimento total com um modelo antigo e a implantação instantânea de um novo pensamento. Não houve o absoluto rompimento com a Igreja Católica e a instantânea secularização do Estado. Emprestamos, novamente, o artigo de Oro:
“[...] a secularização do Estado brasileiro e a instauração oficial da liberdade religiosa não retirou alguns privilégios da Igreja Católica. Por exemplo, o clero católico conseguiu evitar o confisco de seus bens, as ordens e congregações religiosas tiveram permissão para continuar funcianando, algumas subvenções ainda permaneceram e em algumas localidades do território nacional a obtenção de documentos continuaram a passar através dos religiosos. Além disso, segundo Sérgio Micelli, após a separação republicana, “a Igreja ainda ocupava espaços consideráveis nas áreas da saúde, educação, lazer e cultura, ou seja, ela presidia à organização das festas e comemorações coletas (procissões, quermesses, etc.), fazendo praticamente coincidir o calendário de festas e eventos religiosos com os momentos fortes de efusão coletiva e doméstiva. A administração dos sacramentos, por sua vez, ritmava e sancionava os eventos-chaves do itinerário pessoal e familiar dos grupos dirigentes. Ungia os dirigentes das irmandades, os detentores de mandatos parlamentares e executivos, dispensava diplomas e certificados escolares, sacramentava formaturas, inaugurações, posses e acordos políticos, benzia prédios públicos, residências, fazendas, geria hospitais, asilos, escolas, marcando presença em quaisquer dimensões da vida social”.[25]
Ou seja, mesmo com a secularização do Estado, este ainda manteve fortes vínculos com a Igreja Católica, preservando os seus ensinamentos e doutrinas em parcela significativa da sociedade.
Até mesmo muitas das leis infraconstitucionais flertavam com a doutrina católica, como exemplo, a proibição do divórcio.
A Constituição de 1934 não trouxe nenhuma alteração na questão de liberdade religiosa com relação às que a antecederam.
No mesmo sentido a de 1946, que repisou a de 1934 e, consequentemente, a de 1891.
Já com o grande fluxo migratório ocasionado com as guerras na Europa, o Brasil adentra na década de 50 com uma população diversificada com variados credos, o que reflete na Constituição de 1967, que, além de garantir a liberdade já esculpida nas Cartas anteriores, veda a subvenção ou embaraço dos cultos religiosos, em seu artigo 9, apontando para uma proteção maior da diversidade religiosa e distanciando da doutrina católica.
Convém, neste ponto, ponderar as constantes supressões ocorridas nos direitos ocasionados durante a Ditadura Militar.
Por fim, temos a Constituição de 1988, que reconheceu amplamente o direito à liberdade religiosa em todas as formas: liberdade de crença, culto e organização religiosa, bem como prevendo meios de disseminação da cultura religiosa ao permitir a assistência religiosa em entidades civis e militares (inciso VII, artigo 5º, CF/88).
Analisamos, no próximo capítulo, a liberdade religiosa juntamente com o gênero da qual deriva na Constituição Federal de 1988.
2.4. Liberdade de pensamento na Constituição Federal de 1988:
Utilizando a definição de Sampaio Dória, a liberdade de pensamento “é o direito de exprimir, por qualquer forma, o que se pense em ciência, religião, arte ou o que for”. [26]
Está, portanto profundamente relacionada com o que a pessoa é no íntimo sem, entretanto, se encerrar aí.
De nada adianta a pessoa ter liberdade para pensar ou crer no que desejar sem poder exteriorizar tais pensamentos. Seria uma garantia inócua.
Além disso, por mais avançado que seja o Estado ou os governantes à frente dele, não conseguiriam adentrar na esfera íntima, a saber, nos pensamentos da pessoa, para permiti-las, proibi-las ou coagi-las de crer em algo.
Aí, pois, a necessidade e a importância das liberdades de pensamento.
Por não serem apenas a permissão estatal de a pessoa crer ou não em algo, ela se exterioriza criando a possibilidade que a pessoa, além de crer, exprima os seus pensamentos.
Envolve, pois, um direito negativo contra a imposição estatal que viole ou ameace violar as crenças íntimas da pessoa.
E em nossa Carta Magna o direito à liberdade de pensamento encontra-se esculpido no do artigo 5º, da seguinte maneira:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros a aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
No caput da cláusula pétrea encontramos o direito puro e simples à liberdade. Na seqüência da leitura, extraímos tal direito complementado, garantindo-se a liberdade religiosa, política e filosófica, que protege, inclusive, o próprio direito a não professar crença alguma.
Não poderia passar despercebido que, antes mesmo do artigo 5º, o preâmbulo de nossa Constituição declara que a Constituição da República Federativa do Brasil destina-se a assegurar a liberdade como um dos seus valores supremos e que é promulgada sob a proteção de Deus, invocando, assim, claramente a crença em uma entidade transcendental ao próprio Estado. Convém, então, examinarmos brevemente o preâmbulo constitucional para depois adentrarmos na norma constitucional em si.
2.4.1. O PREÂMBULO[27]:
Durante a história das nossas Constituições, poucos foram os doutrinadores que se debruçaram sobre o preâmbulo constitucional.
Hoje, há uma maior atenção ao prólogo constitucional, não sendo raras as decisões que o utilizam como linha auxiliar na interpretação dos dispositivos constitucionais.
E, como leciona Jorge Miranda[28], o preâmbulo constitucional não é efetivamente uma norma constitucional. Em qualquer conflito existente entre o texto constitucional expresso e o preâmbulo, deve sempre ser considerada a eficácia do próprio artigo da Constituição em detrimento ao intróito. Isoladamente, este não cria direitos ou deveres.
Entretanto, não é por mera formalidade ou simples tradição do constituinte que encontramos o prelúdio constitucional. “O preâmbulo não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem”.[29]
Como o detentor do poder constituinte originário é o povo, a Constituição traz a ideologia, aspirações, objetivos e comportamentos sociais do próprio povo. É o povo que, inicialmente, estabelece a finalidade do Estado e limita o conteúdo da Constituição, não a Constituição que os impõe por um ou poucos indivíduos sobre a maioria (excetuando-se, obviamente, as Constituições outorgadas, próprias dos regimes autoritários).
Portanto, é a crença em Deus uma característica do povo brasileiro.
Sérgio Luiz Souza Araújo tece importantes comentários a respeito da proteção divina que paira sobre a nação brasileira constante do preâmbulo. Convém reproduzirmos:
“Quando o Preâmbulo faz a invocação da proteção de Deus, está a demonstrar algo extraordinário: a importância de Deus. Isso torna relativa toda soberania social. Afasta-se toda tirania absolutista que sacraliza o poder e pretende fazer de um dirigente um Deus na terra. A economia, a política, a ciência e as artes não podem separar-se da fé que lhes determina seus fins divinos e humanos. A vida, em todas as dimensões, encontra em Deus sua unidade. Ele é a origem e o fim, o exterior e o interior. Ademais, mostra fé na transcendência da pessoa humana, pois o homem, assediado por suas cobiças e pelas solicitações exteriores, é constantemente ameaçado de se dispersar no múltiplo. A fé é de modo indivisível essa reintegração de nosso ser fragmentário à unidade e à liberdade divinas. É com fé em Deus que se encontra o caminho e a esperança de transformação da sociedade para melhor. O homem vive em um mundo em que ele tem o poder não apenas de transformar mas de transcender. Quando não sente a necessidade dessa ultrapassagem, uma sociedade se desintegra. Compreender a vida em sua totalidade é, em primeiro lugar, perceber que o mundo não é o jogo de forças inconscientes e sem objetivos. Não é apenas experiência exterior dos fatos, mas descoberta interior dos sentidos. Não podemos aceitar uma vida social que desloque o homem e desintegre a sociedade. Uma fé ligando o homem à sua origem e ao seu fim é que dá um sentido à sua vida, criando para o homem uma dimensão transcendental para o seu ser. ”Desde antes da existência dos mundos e do devir dos mundos, o Ser divino é ele próprio o amor, o amante e o amado”[30]
Em síntese: o preâmbulo da Constituição não é norma constitucional. Entretanto, devido à sua origem e conteúdo, na lição de Alexandre de Moraes[31], traça as diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas da Constituição, sendo uma de suas linhas mestras interpretativas.
Passemos, agora, para a análise do inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal.
2.4.2. LIBERDADE RELIGIOSA:
A liberdade religiosa constante do inciso VI do artigo 5º, segundo José Afonso da Silva [32] abrange três elementos nucleares: a) a liberdade de crença; b) a liberdade de culto e c) a liberdade de organização religiosa. As três liberdades estão garantidas em nossa Constituição no inciso acima transcrito. Importante para o nosso estudo fazermos uma breve análise de cada uma destas liberdades.
2.4.2.1. Liberdade de crença:
Esta liberdade, direito constitucional de primeira geração, é sem dúvida, o mais elementar dos direitos religiosos. Com ele, o legislador concede ao indivíduo o direito de crer em algo ou, como visto no início deste capítulo, até mesmo de não crer em absolutamente nada. E embora seja o alicerce sobre o qual se edificam os direitos à liberdade de culto e organização religiosa, como vimos no capítulo anterior, a norma ficou ausente na Constituição de 1967/1969, voltando ao ordenamento pátrio apenas em 1988.
É digno de nota que o Estado, embora conceda tal direito, não tem o controle sobre as crenças professadas pelos indivíduos por ele governado. A crença é algo sobremaneira íntimo, que o ser leva consigo dentro de si, sendo “o constrangimento à pessoa humana, de forma a constrangê-lo a renunciar sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e à própria diversidade espiritual”.[33]
Os Estados que proscrevem a existência de religiões organizadas ou qualquer tipo de manifestação religiosa não podem adentrar na esfera espiritual e proibir seus naturais de crerem em algo, da mesma forma que estados religiosos não conseguem proibir alguém de ser ateu. É questão de foro íntimo que transcende enormemente a lei positivada.
Portanto, o Estado brasileiro não tem controle sobre as crenças pessoais. Nem poderia. No entanto, permite, constitucionalmente, que cada um creia no que lhe parece como a verdadeira fé.
Baseado nessa garantia, constroem-se a liberdade de culto e de organização religiosa.
2.4.2.2. Liberdade de culto:
A simples liberdade de crença não traduz todos os elementos da religiosidade.
Como apregoa José Afonso da Silva[34],
[...]a religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidades aos hábitos, às tradições, na forma indicada pela religião escolhida. Na síntese de Pontes de Miranda: “Compreendem-se na liberdade de orar e a de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para isso”. A Constituição do Império não reconhecia a liberdade de culto com essa extensão para todas as religiões, mas somente para a católica, que era a religião oficial do Império. As outras eram toleradas apenas “com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo (art. 5º).
Ou seja, a nossa Constituição vai além de simplesmente permitir a crença em algo. Ela permite e protege a realização dos cultos.
O próprio Código Penal[35]um capítulo que trata dos “Crimes contra o sentimento religioso”. No artigo 208 está tipificada a conduta de quem escarnece, impede, perturba ou vilipendia publicamente ato ou objeto de culto religioso.
2.4.2.3. Liberdade de organização religiosa:
Por fim, além de permitir a crença e proteger as liturgias, o Estado não interfere na organização interna das instituições religiosas. Não interfere economicamente ou administrativamente, muito menos ideologicamente.
Citando exemplo de Branco[36], “não pode impor a igualdade de sexos na entidade ligada a uma religião que não a acolha”.
Baseado em tal garantia, as entidades religiosas são livres para se gerirem e se organizarem da melhor maneira que lhes aprouver, desde que seus atos não vão contra a ordem pública e os bons costumes
2.5. Limitação às liberdades de pensamento:
Obviamente que sob a sombra das liberdades de pensamento em qualquer um de seus aspectos não se pode praticar atos ilícitos. Existem limitações ao exercício de qualquer liberdade.
Não se pode, por exemplo, em nome da liberdade religiosa, praticar atos que atentem contra a vida humana, ou perturbar a paz e o sossego por usar volume acima do permitido em cultos, ou até mesmo praticar atos que vão contra a saúde pública, moral e bons costumes.
Nesse sentido, já houve julgamento pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
Crime contra a saúde pública – Curandeirismo – Acusado que, sem conhecimento de Medicina, grosseiramente diagnostica e trata doenças físicas e psíquicas, mediante pagamento, através de liturgia da crença e sob invocação de entidade sobrenatural 0 Prática que não se confunde com religião – Garantia constitucional a liberdade de crença que não autoriza prática de terapêutica a pretexto de livre exercício de culto religioso 0 Aplicação do art. 284, II e III, do CP. (RT 671/362).
Também o STJ já decidiu que não é abarcado pela liberdade religiosa o curandeirismo (RHC 62240, RTJ, 114/1038, Rel. Min. Francisco Rezek).
Embora se presuma que religião alguma contrarie a moral e os bons costumes, por vezes a liberdade religiosa entra em conflito com outros direitos constitucionalmente garantidos.
É o caso de cultos onde o nível de barulho das pregações ou cânticos é por demais insuportável que acaba com a paz e tranqüilidade da vizinhança, perturbando-lhes até mesmo o sono. Há a violação da ordem pública. E, consoante a isso, temos o seguinte entendimento:
Ato Administrativo – Templo religioso – Igreja Universal do Reino de Deus – Fechamento – Cultos ruidosos, disseminados por aparelhagem de som – Prejuízo ao sossego da vizinhança – Exercício do Poder de Polícia que não afronta a liberdade de culto – inexistência de afronta ao art. 5º, VI, da Constituição da República/88 – Município que é competente para proibir a prática religiosa quando ela se torna abusiva e anti-social – Inexistência de decreto-lei Complementar a ser resguardado (Apelação Cível 146.692-1 – Rel. Andrade Marques – Diadema – 1.10.1991).
Do acima exposto, percebemos que o direito à liberdade religiosa em nossa Constituição é amplo.
Entretanto, todo direito limita-se quando esbarra em outro direito.
Nestes casos, faz-se o uso da técnica jurídica para apontar o rumo a ser tomado em caso de colisões, ou que direito deve prevalecer em relação aos demais.
No próximo capítulo, consideraremos as normas gerais de resolução de conflitos entre leis e princípios constitucionais.
3. DO CONFLITO DE NORMAS CONSTITUCIONAIS
Conforme demonstrado no primeiro capítulo, os direitos fundamentais surgiram, inicialmente, como obrigações negativas em relação ao Estado ou terceiros. É o direito de o Estado não impedir determinados atos ou modos de vida (liberdade de pensamento), não alterar posições jurídicas realizadas em consonância à lei (segurança jurídica), não agir arbitrariamente segundo o determinismo de seus representantes (positivação normativa e repartição de poderes).
Algumas vezes, entretanto, para uma mesma situação fático-jurídica, encontramos dois ou mais direitos fundamentais que lutam entre si.
Tal conflito entre direitos é denominado antinomia.
A antinomia pode dar-se entre duas leis, entre uma lei e um princípio ou entre dois princípios.
Na lição de Branco[37], nas situações onde haja o conflito entre leis, e sendo elas equivalentes, não há a possibilidade de graduar uma em detrimento à outra. A solução apenas se dá com a retirada do ordenamento jurídico de uma das normas em questão.
Ainda, quando o conflito é entre princípios, o mesmo advoga que, por serem os princípios “normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas”[38], não podem ser excluídos do ordenamento jurídico. São postulações abstratas e gerais que se aplicam em vários casos. Cabe ao julgador sopesar entre os dois ou mais princípios em litígio para decidir qual deverá prevalecer.
Podemos encontrar um exemplo de antinomia nos incisos XXII e XXIII, do artigo 5º, da Constituição Federal.
No inciso XXII encontramos a garantia do direito à propriedade. Já no XXIII, a propriedade deverá atender à sua função social.
Para que a propriedade atenda sua função social, é necessário, algumas vezes, que os direitos de propriedade garantidos a uma determinada pessoa sejam transferidos à outra. É o caso da reforma agrária.
Então, um proprietário que não colima o fim social pode perder o seu direito de propriedade?
Surge a antinomia entre o direito à propriedade, defendido pelo proprietário original, e o princípio da função social explicitado no inciso posterior.
Como o julgador não pode permanecer sem julgar um caso concreto como esse, qual o procedimento a ser tomado?
Para ajuda do entendimento, precisamos, por primeiro, definir se a antinomia é real ou apenas aparente.
As antinomias reais ocorrem, segundo Gilberto Haddad Jabur[39] quando o conflito é entre normas de mesma hierarquia jurídica, as normas sejam incompatíveis entre si (emitam comandos opostos), ambas sejam vigentes e pertencentes a um mesmo ordenamento e que haja a necessidade de decisão sobre o caso. Nestes casos, há uma lacuna de conflito, posto que inexiste uma metodologia para resolver o caso. A solução se dá com a retirada de uma das normas do ordenamento jurídico.
Já a antinomia aparente pode ser resolvida com os métodos tradicionais de hermenêutica jurídica: hierárquico (lei hierarquicamente superior derroga inferior), cronológico (lei posterior derroga anterior) e especialidade (especial derroga geral).
Nos casos de antinomia aparente, além dos três métodos de interpretação acima expostos, faz-se imperiosa uma interpretação sistematizada com o restante do ordenamento jurídico, além dos outros métodos de interpretação da lei, como históricos, sociais ou lógicos.
É o caso de fugir da simples leitura seca do dispositivo legal para analisar o alcance da lei e a intenção do legislador.
Ensina-nos Jabur:
É na tentativa de descobrir o espírito da lei que repousa o emprego da lógica. O intérprete deve se preocupar em depurar o conteúdo integral do texto, não apenas decompondo seus vocábulos e significados, mas examinando o que sua construção pretendeu exprimir ... O intérprete não pode ficar à mercê apenas dos ensinamentos e didática hauridos pelos estudiosos do direito; precisa saber alcançar, manuseando o texto, o sentido e a força da lei.[40]
Portanto, no caso acima apresentado, deve o juiz fazer a interpretação sistemática do caso, analisando se a terra está cumprindo a sua função social e, em não sendo o caso, autorizar a desapropriação tanto amparado pelo preâmbulo constitucional, que sinaliza a harmonia social, quanto pelos princípios fundamentais da República contidos no artigo 3º, que, dentre outros, objetiva a construção de uma sociedade justa, solidária e livre da pobreza e marginalização pela diminuição das desigualdades sociais. Ademais, a própria existência do instituto de desapropriação revela a inclinação dos legisladores em relativizar o direito de propriedade.
Na consideração de todos os elementos, para a formação do juízo, em todas as questões, deve sempre existir um princípio que nunca pode ser preterido: o da proporcionalidade.
Ademais, conforme considerado no item 1.3, todos os princípios e normas repousam no superprincípio da dignidade humana.
Emprestamos as palavras de Branco:
O juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao princípio da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja útil para a solição do problema, que não haja outro meio menos danoso para atingir o resultado desejado e que seja proporcional em sentido estrito, isto é, que o ônus imposto ao sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende obter com a solução. Devem-se, comprimir, no menos grau possível, os direitos em causa, preservando-se a sua essência, o seu núcleo essencial.[41]
E, como visto, as colisões podem ser tanto entre direitos, quanto entre normas ou princípios constitucionais.
Para solucionar estes conflitos aparentes, somente a análise de cada caso em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, pode resultar no julgamento mais próximo do justo ou da elaboração da lei mais próxima do ideal, garantindo-se a dignidade humana.
Para tanto, analisaremos um caso onde a liberdade de pensamento, mais especificamente, a liberdade religiosa, conflita aparentemente com outro direito constitucional: o direito à vida.
4. ANÁLISE DA QUESTÃO DO SANGUE E AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ:
Não é incomum no noticiário encontrarmos notícias relacionadas às Testemunhas de Jeová e a sua recusa em se submeterem a tratamentos médicos que envolvam a transfusão de sangue.
Infelizmente, não é incomum também a tendência da mídia em deturpar essas notícias e retratar os fiéis como fanáticos retrógrados que, diante de uma emergência médica, preferem recusar qualquer intervenção médica e morrerem.
Até mesmo em algumas decisões judiciais destes casos, percebemos, também, a forma preconceituosa que algumas vezes os casos são julgados.
Em um dos julgados[42], que examinaremos mais à frente, o apelante é classificado como adepto à seita das Testemunhas de Jeová.
O termo seita, embora alguns tentem justificar o seu uso dizendo que é qualquer ramo que diverge do galho principal, sempre denota um tratamento pejorativo.
Os sectários, comumente, não seguem raciocínio lógico ou racional, sendo levados pela emoção ou paixão e tendo um homem como líder espiritual, encerrando-se também muitas vezes com a morte do mesmo.
Seja qual for a definição utilizada para seita, denota preconceito.
A análise das motivações das Testemunhas de Jeová em recusarem sangue será de grande valia para o estudo das imbricações jurídicas envolvidas na questão, além de ter a modesta contribuição para servir como orientação em outros casos análogos envolvendo dogmas da fé e liberdade de pensamento.
4.1. Origem da crença:
A interpretação de três textos básicos da Bíblia, a saber, Gênesis 9:3,4; Levítico 17:10 e Atos 15:19-21, motiva os fiéis a recusarem o sangue de qualquer modo: na culinária ou em tratamentos de saúde.
O primeiro texto refere-se à ordem dada a Noé ao sair da Arca, logo após o Dilúvio. Deus disse-lhe que tudo lhe estava disponível como alimento, exceto a carne com o seu sangue, que deveria ser derramado na terra.
Já em Levítico, dentre as ordens dadas ao povo de Israel que caminhava rumo à Terra Prometida, estava a expressa proibição do uso de qualquer modo do sangue, sendo apenas aceitável que este fosse derramado na terra. O desobediente era punido com a morte.
Ainda, nas escrituras gregas-cristãs, no livro de Atos, foi novamente dada a ordem. Transcrevemos:
19. Por isso, a minha decisão é não afligir a esses das nações que se voltam para Deus, 20. mas escrever-lhes que se abstenham das coisas poluídas por ídolos, e da fornicação, e do estrangulado, e do sangue. 21. Pois, desde os tempos antigos, Moisés tem tido em cidade após cidade os que o pregam, porque ele está sendo lido em voz alta nas sinagogas, cada sábado.[43]
Embora o cerne da discussão não seja a legitimidade ou não da proibição, o fato é que as Testemunhas de Jeová confiam na Bíblia como um todo, acreditando ser esta a própria palavra inspirada por Deus, rejeitando, assim, qualquer uso do sangue, tanto na culinária, proibição mais compreensível; quanto na medicina por meio das transfusões, a postura mais atacada.
Para elas, a questão é de suma importância, uma verdade imutável de sua fé e que deve ser respeitada, posto que, da leitura de Atos, o consumo de sangue está ao lado de idolatria e fornicação.
A fornicação, ou relações sexuais fora do matrimônio, também é condenada pela doutrina das Testemunhas de Jeová.
A transfusão sanguínea forçada seria, portanto, equivalente a uma relação sexual ou fornicação forçada. Sim, um estupro!
Ademais, a recusa fundamentada às transfusões de sangue total ou de quaisquer de suas 4 principais frações – plasma, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos ou plaquetas –é uma escolha consciente, baseada em princípios bíblicos, na razão e convicções religiosas e filosóficas do crente, que não significa, necessariamente, uma escolha pela morte em um ato suicida.
Não é, ao contrário do que muitas vezes é retratado, uma postura de sectários guiados pela cega crença em algo absurdo ou inexplicável.
Pelo contrário, a determinação em buscar tratamentos alternativos à transfusão vem contribuindo para o avanço da medicina e sendo, cada vez mais, uma alternativa médica, e não religiosa.
4.2. Alternativas às transfusões de sangue:
Como já mencionado, a imagem de um grupo de pessoas que, ante o surgimento de uma emergência médica ou necessidade de uma intervenção cirúrgica, preferem, como primeira e única opção, a morte ante a terapia, não se coaduna com a realidade.
Antes, as Testemunhas de Jeová encaram a vida como uma dádiva divina, prezando-a muito e procurando tratamentos alternativos à transfusão.
Juntamente com eles, um número cada vez maior de pessoas, não por princípios religiosos, mas sim amparados pela liberdade de pensamento, escolhem o tratamento alternativo ao uso do sangue devido aos riscos de infecção e complicações pós operatórias relacionados à transfusão.
Ademais, as Testemunhas de Jeová possuem um órgão de pessoas treinadas, composto inclusive por médicos e advogados, que prestam um serviço de mediação junto a hospitais e tribunais para defenderem o direito de recusa às transfusões e, junto com a equipe médica responsável, buscarem alternativas seguras e eficazes à transfusão.
Este órgão, a COLIH – Comissão de Ligação com Hospitais – tem promovido o debate saudável entre médicos que optam por respeitar a escolha das Testemunhas de Jeová e os pacientes, garantindo um desenvolvimento na medicina sem sangue, o que só resulta em benefícios para ambas as classes.
Abaixo, alistamos algumas das alternativas aceitáveis para as Testemunhas de Jeová[44]:
RECUPERAÇÃO INTRA OPERATÓRIA DE CÉLULAS: Reduz a perda de sangue. Durante a cirurgia, o sangue de ferimentos ou de uma cavidade do corpo é recuperado. Ele é lavado, filtrado e, após isso, é devolvido ao paciente, em um processo contínuo.
HEMODILUIÇÃO: Reduz a perda de sangue. Durante a cirurgia o sangue é desviado para bolsas e substituído por expansores de volume que não contêm sangue. Desse modo, o sangue que ainda resta no paciente é diluído, contendo menos glóbulos vermelhos. Durante a cirurgia ou no término dela, o sangue desviado é devolvido ao paciente.
MÁQUINA CORAÇÃO-PULMÃO: Mantém a circulação. O sangue é desviado para uma máquina coração-pulmão artificial onde é oxigenado e devolvido ao paciente.
DIÁLISE: funciona como um órgão. Na hemodiálise, o sangue circula em uma máquina, onde é filtrado e depurado antes de retornar ao paciente.
TAMPÃO SANGUÍNEO PERIDURAL: Impede a perda do líquido espinhal. Uma pequena quantidade do sangue do próprio paciente é injetada na membrana em volta da medula espinhal. Esse procedimento é utilizado para fechar um ponto de punção em que há vazamento do líquido espinhal.
PLASMAFÉRESE: Trata doenças. O sangue é retirado do paciente e filtrado para remover o plasma. Um substituto do plasma é adicionado e o sangue é devolvido ao paciente. Alguns médicos talvez usem o plasma de outra pessoa para substituir o do paciente. Quando este é o caso, essa opção é inaceitável.
TÉCNICA DE MARCAÇÃO: Diagnostica e trata doenças. Parte do sangue é retirada, misturada a medicamentos e devolvida ao paciente. O tempo que o sangue fica fora do corpo do paciente pode variar.
GEL DE PLAQUETAS AUTÓLOGAS: Fecha ferimentos, reduz a hemorragia. O sangue é retirado e concentrado em uma solução rica em plaquetas e glóbulos brancos. Essa solução é aplicada nos locais de cirurgia ou ferimentos.
EXPANSORES DE VOLUME: Mantém o volume do sangue. Após a perda de grande quantidade de plasma, substâncias sintéticas podem ser utilizadas para evitar o choque anafilático, mantendo a mesma quantidade de sangue bombeada pelo coração, evitando a transfusão.
Além destes métodos, vários outros podem ser utilizados com dispositivos que minimizam a perda sanguínea, como cirurgias à laser e a eletrocauterização; quanto com técnicas que limitam a perda de sangue, como a hemodiluição hipervolêmica, que é o aumento do volume sanguíneo anteriormente à cirurgia, mantendo o nível próximo do normal após a cirurgia e ainda o controle da perda de sangue durante a própria cirurgia.
Convém ressaltar que cada um dos dispositivos e técnicas acima listados possuem dois ou mais tratamentos semelhantes, que não se citam por este estudo não ter como escopo ser um compêndio em medicina e sim, neste subitem, trazer algumas técnicas alternativas.
As técnicas acima apresentadas apresentam, além de uma alternativa ao uso do sangue, proporcionam um pós-operatório mais célere e com menos risco de infecções.
Por isso, muitos médicos que conheceram os benefícios da cirurgia sem sangue e os em decorrência do tratamento de Testemunhas de Jeová recomendam este tratamento até aqueles que não professam essa crença, devido a não existência do risco de doenças infecciosas transmitidas pelo sangue ou hemoderivados, além das reações de possível rejeição após a transfusão.
4.3. Análise Jurídica da Recusa e a descoberta da dignidade humana:
Os nossos tribunais, por vezes, têm reconhecido em casos de recusa de transfusão de sangue a colisão de direitos fundamentais.
É o caso que vemos na ementa abaixo colacionada, citada de forma breve anteriormente, onde o Desembargador Boris Kauffmann, na Apelação Cível n.º 132.720-4/9-00, da Comarca de Limeira, decidiu em desfavor do religioso:
TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NECESSIDADE DE TRANSFUSÃO DE SANGUE, SOB PENA DE RISCO DE MORTE, SEGUNDO CONCLUSÃO DO MÉDICO QUE ATENDE O PACIENTE. RECUSA DOS FAMILIARES COM APOIO NA LIBERDADE DE CRENÇA. DIREITO À VIDA QUE SE SOBREPÕE AOS DEMAIS DIREITOS. SENTENÇA AUTORIZANDO A TERAPÊUTICA RECUSADA. RECURSO DESPROVIDO.
Em síntese, o julgador valorou e graduou os direitos fundamentais e, reconhecendo um conflito entre eles, autorizou a transfusão em função da manutenção da vida.
Entretanto, como vimos no capítulo reservado às antinomias, para que haja uma colisão de direitos fundamentais é necessário que haja um litígio entre direitos, uma lide.
E lide, segundo o conceito clássico de Carnelutti, é o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida.
Para que haja, portanto, lide entre os direitos ou princípios fundamentais, é necessário que haja pluralidade de partes. Faz-se mister que o direito fundamental de uma pessoa colida com o direito fundamental de outra pessoa.
É o caso do exemplo citado sobre a colisão de interesses no conflito sobre o direito de propriedade. Ou, ainda, o exemplo comumente citado na doutrina e visto com bastante constância na prática: o direito à liberdade de expressão em conflito com o da intimidade da vida privada.
O Estado, embora responsável pela guarda e proteção do direito à vida, não é o detentor deste direito. O cidadão é o seu possuidor.
Da mesma forma, o direito à liberdade religiosa tem o mesmo detentor.
E, ambos os direitos, são construídos sobre o alicerce da dignidade humana.
Assim, nas questões onde as liberdades religiosas e algum outro direito fundamental encontram-se reunidos na mesma pessoa, há a concorrência de direitos, não o conflito.
A metodologia para resolver questões que envolvem a concorrência de direitos é a análise da situação em concreto, sob o prisma da dignidade da pessoa humana.
Se, no caso das transfusões, existem métodos alternativos e a necessidade de preservar outros valores, como a honra e a liberdade de se autogerir, não há justificativa válida para autorizar uma atitude invasiva para transfundir sangue.
Leiria[45], em artigo bem ponderado, faz a referência há várias decisões ao redor do mundo onde ante o surgimento da questão foi possível decidir em favor dos religiosos.
Destacamos a decisão do processo n.º 024.08.997938-9, que tramitou perante a 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte.
Nestes autos, foi reconhecido que a escolha consciente do paciente, ante a existência de métodos alternativos, deve ser respeitada.
Certamente, seria uma garantia inócua se o Estado permitisse a livre determinação das pessoas baseada em suas crenças e princípios íntimos e depois os impedisse de se gerirem segundo esses suas escolhas.
E, embora haja a idéia de que nenhum direito é absoluto, encontrando limites quando esbarra em outro direito, o direito à vida também não é absoluto
Há situações onde o próprio direito à vida é relativizado quando analisado sob a ótica da dignidade da pessoa humana. É o que acontece no aborto previsto no artigo 128 do Código Penal:
Artigo 128. Não se pune o Aborto praticado por médico: Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
A vida, bem protegido em legislação internacional, constitucional e infra-constitucional tem início com a fecundação.
É pacífico o entendimento de que, a união dos 23 cromossomos masculinos com os 23 femininos resulta no surgimento de um terceiro ser, diferente dos outros dois que o geraram e também com características e peculiaridades próprias já presentes em seu código genético.
Ao arrepio do bem considerado maior e digno de toda a proteção do Direito, permite-se o aborto do feto fruto de um estupro. E por quê?
Faz-se isso porque se julga que, entre a vida do feto e a vida da vítima do estupro, há uma distinção entre os dois: a dignidade da pessoa humana.
Embora de nada tenha culpa a criança que está sendo gerada, entende-se que seria indigno para a gestante levar consigo o fruto de uma violência sexual. Os transtornos psicológicos seriam uma segunda violência à vítima.
Vê-se, então, que o direito à vida não é considerado absoluto e digno de proteção acima de qualquer outro direito. Em determinadas situações, o direito à vida mais o direito à dignidade são preponderantes à escolha de diretrizes decisórias.
Apesar de não concordarmos com a questão do aborto, concordamos com a idéia de que, acima da vida, existe a vida com seus adicionais. Em louvável acerto jurídico e humanista, na questão onde discutia-se o Desembargador Alberto Vilas Boas, nos autos do Agravo n.º 1.0701.07.191519-6/001, da Comarca de Uberaba, votou da seguinte maneira:
O direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam. (grifamos)
No mesmo julgado, Vilas Boas ainda remeteu à Lei 9.434/97, que disciplina os transplantes de órgãos. O transplante somente é possível com o consentimento expresso do receptor, que deve ser alertado dos riscos e conseqüências do transplante. Sua vontade deve prevalecer, mesmo diante do iminente perigo na recusa.
Em outra decisão, ação de obrigação de fazer intentada pelo Hospital de Caridade São Vicente de Paulo, que tramitou perante a 6ª Vara Cível de Judiai, feito n.º 170/2006, a petição inicial foi indeferida por inépcia, posto que inexistente qualquer fundamento jurídico que fundamentasse o pedido do Hospital para forçar a transfusão.
Ainda, autos n.º 0024 08 102781-5, que tramitou perante a 3ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte/MG, foi decidido pelo Juiz Raimundo Messias Júnior que, em alusão ao inciso III, do artigo 1º da CRFB, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República. Eivado nisto, cita-se Kant, onde o homem não é o meio para as outras pessoas, mas sim o fim em si mesmo. Portanto, é a dignidade de cada ser humano, em cada caso concreto que deve ser levada em conta ao se decidir.
Baseado nisto, foi indeferido o pedido de tutela antecipado proposto pelo Hospital que visava realizar a transfusão de sangue, e foi extinto o processo pelos mesmos fundamentos da decisão ora comentada.
Por fim, Wagner Barbosa Milward de Azevedo, Juiz de Direito da 4ª Vara Cível da Cidade e Comarca de Uberlândia/MG, reconhece que a transfusão de sangue não é sinônimo de tratamento médico com máxima eficácia, e que se o Estado concede o direito à liberdade religiosa, não pode, posteriormente, querer atropelar tal concessão, exigindo a transfusão forçada. Por esta razão, indeferiu o pedido do parquet para autorização de transfusão.
Percebemos, pois, que embora houvesse uma postura rígida em autorizar as transfusões de sangue, cada vez mais os Tribunais vêm entendendo que, acima do desesperado afã de se manter a vida acima de qualquer custo, ao arrepio de qualquer outra norma ou princípio, convém balancear o direito à vida com os outros direitos também garantidos constitucionalmente, não podendo relevar a dignidade humana.
Tal caminho deve ser levado em consideração tanto quando existente a concorrência entre direitos quando da ocasião de conflito.
CONCLUSÃO
Analisamos, à luz da doutrina e jurisprudência, a importância da dignidade da pessoa humana na escolha das decisões de cada caso concreto onde há a luta entre direitos.
Embora por muito tempo fosse considerada a colisão de direitos nos casos envolvendo a liberdade de pensamento com outras garantias, cada vez mais vem se decidindo com preponderância na dignidade de cada indivíduo e percebendo a concorrência dos direitos fundamentais que justificam, inclusive, a busca dos métodos alternativos.
Desse modo, concluímos que a questão nevrálgica, que seria o modo como as liberdades de pensamento e os dogmas religiosos se interagem, pode ter seus conflitos resolvidos quando se observa a dignidade da pessoa humana.
Não podemos apontar uma fórmula geral para todos os casos onde a fé conflita com o direito. Devido à particularidade de cada caso e a sensibilidade das emoções envolvidas, cabe ao julgador buscar compreender a questão envolvida e buscar uma solução que mantenha a dignidade humana.
Esta dignidade, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, “guarda íntima relação com as complexas, e, de modo geral, imprevisíveis e praticamente incalculáveis manifestações da personalidade humana”[46], o que dificulta a própria definição do seu conteúdo.
Daí, importante o diálogo entre filósofos e juristas, bem como, a análise das pessoas e do meio social envolvente de cada relação.
Segundo a linha de raciocínio de Sarlet[47], ainda, não cabe apenas ao Direito ou à Filosofia decidirem qual deve ser o conteúdo da dignidade e, a partir de então, traçar as diretrizes. O que cabe é analisar cada situação onde se faz necessária a proteção da dignidade humana como única.
Como demonstrado também, o direito é uma ciência social, que se constrói progressivamente. Foi assim com o surgimento e desenvolvimento dos direitos fundamentais, que continuam evoluindo, e é assim com a gênese de novos direitos e o seu desenvolvimento.
Dentre a variedade de princípios e normas que já existiram e que a cada dia surgem, bem como a pluralidade de partes e situações que envolvem o assunto, imperioso é considerarmos um bem como absoluto: a dignidade da pessoa humana.
Somente tendo como base este supraprincípio poderemos construir uma sociedade mais livre e justa, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, objetivos estes fundamentais de nossa República Federativa.
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