América latina: integração, inclusão social e desenvolvimento justo

[America Latina: integration, social inclusion and fair development]

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05/02/2021 às 15:02
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O artigo trata da dicotomia entre diplomas internacionais ou brasileiros existentes e a desditosa realidade dos países latino-americanos, procurando apontar soluções para um desenvolvimento mais justo, igualitário, inclusivo e sustentável na região.

RESUMO: Apesar de grandes expectativas com relação às vantagens e oportunidades da integração econômica (sob os mais variados formatos), convive-se já de algum tempo, na América Latina, e no Brasil em particular, com a escalada da violência. E, não por acaso, um enorme contingente de pessoas sente na pele e na alma o crescimento da miséria, da fome e da exclusão social. Todas elas são vítimas de uma perversa lógica econômica internacional que relega o lado humano e o desenvolvimento social a um plano secundário. Ora, diante das notórias desigualdades sociais que assolam a América Latina e o Caribe, agravadas por desgovernos, pela falta de um efetivo compromisso das autoridades com as camadas mais pobres e também pela insensibilidade dos que aumentam os seus lucros à custa da classe trabalhadora, impõe-se na região uma urgente e imprescindível inclusão social e também uma integração sociocultural. Tragicamente, esses infortúnios estão sendo agravados com os efeitos funestos dessa pandemia (COVID-19) que tomou conta do planeta desde o início de 2020 e, pelo visto, ainda perdurará por um longo tempo. Ora, discorrer sobre a dicotomia entre os documentos internacionais (e/ou nacionais) e uma realidade – regional e mundial – de contínuas e sofisticadas violações dos direitos humanos e sociais, bem como apontar soluções para um desenvolvimento mais justo, igualitário, inclusivo e sustentável na América Latina e no Caribe, vem a ser o principal foco deste estudo.

PALAVRAS-CHAVE: Integração; Inclusão Social; Desenvolvimento na América Latina e Caribe; Direito Internacional dos Direitos Humanos; Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DECA); Efeitos Econômicos e Sociais da COVID-19; Redução da Pobreza e da Desigualdade Estruturais; Democracia e participação cidadã.

ABSTRACT: Despite high expectations regarding the advantages and opportunities of economic integration (under the most varied formats), we live together for a long time in Latin America, and in Brazil in particular, with an escalation of violence. And, not by chance, a huge contingent of people feels the growth of misery, hunger and social exclusion in their everyday life. All of them are victims of a perverse international economic logic that relegates the human aspects and social development to a secondary level. Nowadays, in the face of the notorious social inequalities that plague Latin America and the Caribbean, aggravated by mismanagement, by the lack of an effective commitment by the authorities to the poorest layers of society, and also by the insensitivity of those who increase their profits at the expense of the working class, there is an urgent and essential social inclusion in the region and also a socio-cultural integration. Tragically, these misfortunes are being exacerbated by the disastrous effects of the COVID-19 pandemic that has taken over the planet since the beginning of 2020, and, apparently, will continue for a long time. Therefore, the main focus of this study is to discuss the dichotomy between international (and/or national) documents and the reality (regional and global) of continuous and intense violations of human and social rights, as well as pointing out solutions for a more just, equal, inclusive and sustainable development in Latin America and the Caribbean.

KEYWORDS: Integration. Social inclusion. Development in Latin America and the Caribbean. International Human Rights Law. Economic, Social, Cultural and Environmental Rights (ESCER). Economic and Social Effects of COVID-19. Structural Poverty Reduction and Inequality. Democracy and citizen participation.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Os Direitos Humanos no atual contexto internacional. 3. Alternativas para a eficácia dos Direitos Humanos. 4. Inclusão Social e Desenvolvimento na América Latina e no Caribe. 5. Conclusão. Referências Bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Convive-se hoje, na América Latina, com a escalada da violência, que em sentido amplo se entende como todo desrespeito e/ou violação aos direitos humanos e ao exercício da cidadania.  E, não por acaso, também se convive com o crescimento da miséria, da fome e da exclusão social.

Concomitantemente, fala-se, no mundo latino-americano, especialmente nos últimos anos, das vantagens e oportunidades do Mercosul, da cooperação interestatal, e, mesmo, com acentuada ênfase, da integração econômica sob o signo do livre mercado (seja sub-regional, latino-americana ou continental).

Ora, a miséria, a fome e a exclusão social, que atingem pesadamente boa parte das populações dos países do continente – apenas com diferenças pontuais entre uns e outros -, são consequências de uma perversa lógica econômica internacional, que relegou o lado humano a plano secundário. O que nos leva a afirmar que a ordem econômica, os governos, as instituições e a sociedade como um todo, não podem mais aceitar ou permitir as investidas que se cometem para separar o econômico do social. Divisão essa que acarreta deixar a realidade com o econômico e a utopia com o social.

No mundo atual, onde vige esse triste legado do século XX, que é o agravamento da pobreza, a expansão da exclusão social e o alargamento do fosso das desigualdades sociais, torna-se imperioso, no meu ponto de vista, colocar o desenvolvimento social no centro de todo e qualquer tipo de desenvolvimento, particularmente do desenvolvimento econômico. Afinal, não pode existir o econômico sem o social, pois este é o determinante, e aquele (o econômico) deve ser sempre subordinado, enquanto derivação do social. Aliás, vale consignar que foi o economista John Maynard Keynes[2] quem encabeçou o movimento que acrescentou ao conceito de desenvolvimento o inseparável – por certo! - viés social. De nada adianta o desenvolvimento econômico se não houver uma busca pela redução da pobreza e da miséria, tanto em escala nacional quanto internacional. Vale lembrar, a título de exemplificação, que essa concepção se constitui, até os tempos presentes, em política pública mantida pelos países escandinavos, cujas populações desfrutam dos melhores padrões de vida do mundo. [3]

Cabe relembrar que, justamente nos anos 1990, marcados pela consolidação do fenômeno globalizatório, expandiu-se o debate em torno da exclusão social, surgida na esteira da proliferação da pobreza urbana, do desemprego de longo prazo, da falta de acesso a empregos e rendas por parte de minorias étnicas e imigrantes, da precarização dos empregos disponíveis e da dificuldade da população mais jovem para ingressar no mercado de trabalho. Atente-se aqui para o enfoque multidimensional que, via de regra, se atribui à exclusão social, a compreender não apenas a falta de acesso a bens e serviços, mas também os impedimentos para o alcance de segurança, justiça e cidadania. Em outras palavras, a abordagem obrigatoriamente está relacionada às desigualdades - econômicas, políticas, culturais e étnicas. As vítimas podem estar excluídas do mercado de trabalho (desemprego de longo prazo), do trabalho regular – em tempo parcial e precário –, do acesso a moradias decentes e equipamentos urbanos, do acesso a bens e serviços – inclusive públicos. [4]

Por outro lado, e aqui focando nossa atenção sobre a correlação de fatos que decorrem das expressões que se conjugam no título deste texto, somos levados a deduzir que não basta investir-se apenas na consolidação de  blocos interestatais de mercados e negócios, não é suficiente estimular-se a aliança de países em desenvolvimento como fórmula “mágica” para uma melhor competitividade comercial externa, esquecendo de que os países latino-americanos precisam interna e respectivamente de uma inclusão social, e, multilateralmente, de uma integração cultural.  Afinal, na faixa tropical e no lado sul do continente americano, a integração social, o combate à pobreza e a geração de emprego desafiam qualquer lógica econômica e comprometem os resultados dos mais sérios diagnósticos técnicos.  Inegavelmente, e os dados estatísticos estão aí para demonstrar essa veracidade, vivencia-se nessas regiões uma das maiores desigualdades sociais do planeta.

Isso, aliás, não representa novidade no âmbito de várias e destacadas organizações internacionais, pois muitas delas, em 1980, 1986 e 1993, respectivamente, já advertiam para a necessidade da erradicação da pobreza extrema e distribuição desigual da riqueza, o que levou, inclusive, à  formulação de um novo direito internacional – o Direito ao Desenvolvimento.[5]

Neste particular, já no longínquo ano de 1980, um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) advertia para a necessidade de se tomar medidas voltadas à superação da dupla desigualdade – interna e externa - que atinge a latinoamericanidade, situação que não restaria saneada apenas por um eventual aumento da renda nacional. Constatação essa que, dentre outros fatores, levou a ONU (Organização das Nações Unidas) a adotar, em 1986, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, e, um pouco depois,  já em  1993,  no  bojo  da declaração aprovada na  Conferência  Mundial  sobre  os  Direitos Humanos, realizada em Viena (Áustria), a reafirmar consensualmente que esse novo Direito “é universal, inalienável e parte integrante dos direitos humanos fundamentais” (conforme o artigo 10). Ainda no mesmo artigo 10 se reconhece que “Os Estados devem cooperar entre si para assegurar o desenvolvimento e eliminar os obstáculos que lhe sejam colocados”, recomendando-se que “A comunidade internacional deve promover uma cooperação internacional efetiva com vista à realização do direito ao desenvolvimento e à eliminação de obstáculos ao desenvolvimento”. [6]

E ainda, em avanço maior, quando da Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social,[7] verificada em Copenhague (Dinamarca), entre 06 a 12 de março de 1995, os governos ali representados firmaram um compromisso com o futuro, com destaque para os seguintes propósitos: erradicação da pobreza, promoção do pleno emprego e da integração social, viabilizar a igualdade de gênero e o pleno respeito à dignidade humana, bem como acelerar o desenvolvimento socioeconômico. Lamentavelmente, cabe consignar, este e outros documentos onusianos[8] não se constituem em “jus cogens”, o que implicaria em obrigações objetivas para os Estados, mas se resumem a metas programáticas, cuja eficácia depende da vontade dos governos e da pressão internacional para que possam ser alcançadas e/ou exercidas nesse particular. Todavia, alicerçam uma nova etapa no cenário internacional, ao definirem novas concepções e posturas indispensáveis à evolução planetária e upgrade social de todos os povos. 

A partir das supramencionadas declarações, entre 06 e 08 de setembro do ano 2.000, os presidentes de 191 países, incluindo o Brasil, se reuniram na denominada Cúpula do Milênio, chancelada pela Organização das Nações Unidas (ONU), na qual foram debatidos os principais problemas que afetavam o mundo no advento do século XXI. O documento final desse encontro estabeleceu os chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), refletindo o compromisso dos governos em colocar em prática ações para que tais e valiosas finalidades viessem a ser atingidas até o ano de 2015. 

Dentre as metas avençadas no referido diploma destacam-se: a) reduzir pela metade a porcentagem da fome e da miséria – recordando-se que no planeta cerca de 1 bilhão e 200 milhões de pessoas sobreviviam com menos do que o equivalente a 1 dólar por dia; b) educação básica de qualidade para todos – lembrando-se que 113 milhões de crianças estavam fora da escola em todo o mundo; c) igualdade entre sexos e valorização da mulher – sabendo-se que 2/3  dos analfabetos do mundo são mulheres  e 80% dos refugiados são mulheres e crianças; d) lutar contra todas as formas de violência contra a mulher e aplicar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (aprovada em 1979 e em vigor desde 1981); f) reduzir em 2/3  a taxa de mortalidade de crianças menores de 5 anos; g) melhorar a saúde das gestantes, reduzindo-se em ¾ a razão de mortalidade materna; h) combater a AIDS, a malária e outras doenças[9]; i) mais qualidade de vida e respeito ao meio ambiente – inserindo-se os princípios do desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais; j) formular e aplicar estratégias que proporcionem aos jovens de todo o mundo a possibilidade real de encontrar um trabalho digno e produtivo; k) estabelecer formas sólidas de colaboração entre setores públicos e privados em prol do desenvolvimento e erradicação da pobreza.[10]

Lamentavelmente, diante da malograda concretização das propostas voltadas a um novo milênio rico em justiça social e garantia dos direitos humanos, um sentimento de frustração tomou conta do planeta, principalmente a partir dos atentados terroristas de 2001, que levaram os Estados Unidos a aumentar sua intervenção internacional e serem refratários às determinações da ONU. No mesmo diapasão de equidistância das agendas e documentos favoráveis ao desenvolvimento justo e sustentável se assentaram várias ingerências da Rússia, China e Israel, por exemplo, ao utilizarem-se da bandeira de combate ao terrorismo como pretexto - em nome de seus interesses econômicos e/ou geopolíticos - para a efetivação de operações violentas e discriminatórias dentro e fora de seus territórios.

Além disto, tornou-se gritante o retrocesso no alcance de tais escopos ante a omissão ou mesmo propositado abandono de inúmeros dos objetivos da Cúpula de 2000, por conta da crise no papel do Estado e seu excessivo culto ao mercado, em tempos de expansão do neoliberalismo, concomitantemente com as mazelas públicas e privadas vivenciadas no interior da maioria dos países. Na verdade, o terrorismo transnacional, o fundamentalismo, a exacerbação do nacionalismo, a xenofobia, as catástrofes naturais, a miséria de países assimétricos, a ascensão de novas economias, o problema do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, o desemprego estrutural e conjuntural que alguns Estados enfrentam em razão da globalização e de decorrente interdependência ou conexão, e também os fatores de sensibilidade e vulnerabilidade dos Estados, serviram de pretexto aos governos para um premeditado afastamento em relação às diretrizes traçadas pela ONU na matéria sob análise, inclusive corroborando para o descrédito da entidade que, afinal de contas, não se constitui em um “superestado”, tampouco um governo mundial, mas se propõe a impulsionar um sistema de segurança coletivo e se manter como um espaço (democrático, em princípio) de cooperação e interconexão voluntárias entre os seus atuais 193 países-membros. Vale acrescer, porém, que muito embora as suas finalidades pacificadoras, humanitárias e solidaristas nem sempre tenham sido alcançadas, as conquistas da organização em diversos campos das relações internacionais têm contribuído para diminuir ou amenizar a desigual distribuição de poder e riqueza na esfera planetária, para dizer o mínimo.

Apesar dos pesares, a interdependência planetária, as sequelas relacionadas aos problemas da fome e da miséria, a gama de implicações pertinentes aos conflitos bélicos, o futuro sombrio que a contínua agressão ao meio ambiente prenuncia à humanidade, a onda de protestos e insatisfações geradas pelo descaso com os direitos sociais em nome do egoísmo e do lucro ilimitado, dentre tantos outros fatores, estão a exigir uma nova postura e uma nova abordagem em relação a estes relevantes temas que o Estado e mesmo as organizações interestatais não podem mais ignorar.

Ora, por isso mesmo, e basicamente para contornar a falta de efetivação das metas previstas no início do milênio em curso, os chefes de Estado e de Governo e outros altos representantes das nações mundiais se reuniram em Nova Iorque, entre 25 a 27 de setembro de 2015, sob a chancela da ONU, no mesmo ano em que a organização comemorava os 70 anos de sua fundação, para adotar formalmente a intitulada Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, por meio da qual definiram-se os novos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)” em substituição aos então vigentes “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)”. A nova Agenda anunciou-se centrada nos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas (1945), incluindo o pleno respeito pelo Direito Internacional, além de referenciar em seu preâmbulo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os tratados internacionais de direitos humanos, a Declaração do Milênio e os resultados da Cúpula Mundial de 2005, além de outros instrumentos internacionais, dentre eles a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986).

Na ocasião, o então secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, em exposição inicial, anunciou a nova agenda como “uma promessa dos líderes para a sociedade mundial”, agregando que ela seria “uma agenda para acabar com a pobreza em todas as suas formas, uma agenda para o planeta”[11]. Ao final do evento procedeu-se a adesão coletiva - por todos os 193 Estados-membros - do documento denominado “Transformando Nosso Mundo”, elencando 17 objetivos e 169 metas para todos os países, desenvolvidos ou em desenvolvimento[12]. Entre as conclusões de 2015 destacam-se a imprescindibilidade da erradicação da fome e da pobreza, promoção da agricultura sustentável, saúde, educação e igualdade de gênero, além de garantir-se a todos os povos o acesso à água, ao saneamento e à energia sustentável, crescimento econômico, emprego, industrialização, sustentabilidade das cidades e a redução da desigualdade.

Além do seu formato inovador, já que, diferentemente dos propósitos elencados na carta do milênio, os ODS foram elencados com a participação direta dos Estados-membros e da sociedade civil, a Agenda 2030 apregoa com veemência uma urgente ação pelo clima, além de insistir na igualdade de gênero e no respeito ao direito de todos. E, tal qual a maneira coletiva com que foi construída, a sua eficácia está intimamente vinculada à conscientização e engajamento dos mais variados setores – dos governos, parlamentos e magistratura nacionais, do mundo empresarial e acadêmico, das organizações não governamentais, enfim, da sociedade civil por inteiro. 

1 - OS DIREITOS HUMANOS NO ATUAL CONTEXTO INTERNACIONAL

Muito embora os inúmeros diplomas internacionais celebrados entre a última década do século passado e o início do século XXI, a prenunciar tempos mais favoráveis ao planeta e à humanidade, presencia-se neste vintênio da presente centúria inúmeros enfrentamentos internacionais, na esteira ou não dos atos terroristas verificados em 11 de setembro de 2001, de que são exemplos as unilaterais e imperialistas ingerências militares norte-americanas no Afeganistão, Iraque, Paquistão, Iêmen, Somália, Níger e outras áreas, bem como as ações bélicas russas na Chechênia, Criméia, Geórgia e outras regiões do Cáucaso, ao mesmo tempo que o mundo observa a China incrementar as suas pretensões em relação a Taiwan[13], às fronteiras do Mar do Sul (cuja faixa se estende desde Singapura até o estreito de Taiwan) e também do Mar do Leste (no que diz respeito a várias ilhas do Mar do Japão), e isto apenas para nos atermos às principais potências bélicas mundiais.

Em que pesem essas e outras medidas e intenções que atentam contra decisões da ONU e destoam do Direito Internacional vigente, pode-se afirmar, sem receios, que desde os últimos anos do século findo consolidou-se definitivamente no planeta a era dos direitos humanos, hoje cada vez menos matéria de jurisdição doméstica dos Estados e cada vez mais presentes em todos os domínios da atividade humana. Isso é perceptível diante de um crescente e generalizado reconhecimento dos objetivos do direito público interno e do direito internacional no tocante à proteção do ser humano. Vale ressaltar que a sociedade humana sentiu-se contemplada por um significativo empenho nos dez últimos anos do século XX, no que concerne à consolidação do conjunto dos direitos sociais, do desenvolvimento justo e da proteção ao ecossistema, como aquele proporcionado pela Segunda Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, patrocinada pela ONU e realizada em Viena  (de 14 a 25 de junho de 1993), no sentido de assegurar na prática o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos – assim entendidos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. E, a Declaração e Programa de Ação de Viena dela decorrentes enfatizam uma opção preferencial pelos socialmente excluídos e pelos segmentos populacionais miseráveis, ao mesmo tempo que ressaltam a importância do diálogo e da cooperação entre Governos e organizações não-governamentais nesse particular.

Em tal contexto, a aludida Conferência Mundial reconhece que cabe aos países a responsabilidade primordial pela adoção de normas e medidas concretas quanto ao tema. Por isso mesmo, e considerando-se a visibilidade de continuadas violações perpetradas contra tais direitos e liberdades fundamentais, o documento de Viena clama por urgente atuação estatal que proporcione uma melhor distribuição dos frutos do progresso social e viabilize a participação das camadas mais pobres nos processos decisórios de suas comunidades e de seus países.

Por outro lado, aquela II Conferência endossou e estimulou os esforços institucionais voltados à proteção das liberdades públicas e ao eficaz exercício da cidadania, principalmente pela entronização dos princípios e instrumentos internacionais no plano legislativo interno (nacional/regional) e pela maior alocação de recursos a programas com tais objetivos[14]. Da mesma forma, desde o final do século passado o mundo foi enriquecido por um conjunto de decisões e regras internacionais voltadas ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável, tais como aquelas decorrentes da Conferência da ONU cognominada ECO-92 (Rio de Janeiro – 1992), do Protocolo de Kyoto (1997), da posterior Cúpula Mundial Rio + 10 (Johannesburgo – 2002), da Cúpula da ONU Rio + 20 (Rio de Janeiro – 2012), assim como da anteriormente mencionada Cúpula Mundial de 2015, realizada na sede da ONU, em Nova Iorque.

Impõe-se aqui cotejar as decisões internacionais com a realidade nacional, até porque aquelas só fazem sentido, sejam cogentes ou – e mais ainda nesse caso – apenas programáticas, se forem efetivamente absorvidas pelos ordenamentos internos. Razão pela qual, tomando-se por base os condicionantes jurídicos, convém descortinar, a seguir, uma rápida reflexão a respeito das responsabilidades éticas e legais relativas ao assunto, no que diz respeito à realidade e à legislação brasileiras.  

Na vigente Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988, a cidadania e a dignidade da pessoa humana são destacadas como princípios fundamentais da República (consoante o art. 1º, incisos II e III). Além disso, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o Congresso Constituinte de 1988 elencou na Lei Maior o compromisso de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, e, igualmente, “promover o bem de todos” (art. 3º, incisos III e IV). Por outro lado, também se encontra definido no texto constitucional que a República é regida, no plano internacional, dentre outros, pelo princípio da “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, inc. II), além de se assegurar aos cidadãos e cidadãs por ela alcançados inúmeros direitos e garantias fundamentais (art. 5º) e também sociais (art. 6º).

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Em decorrência, cabe admitir que, ética e juridicamente, o Estado brasileiro, através de suas diversas instâncias e instituições, se obriga a assegurar aos habitantes do país – aos brasileiros e também aos estrangeiros residentes ou de passagem - os elementares direitos da cidadania e o respeito à dignidade de cada pessoa, além de promover a erradicação da pobreza e a eliminação das desigualdades, implementando-se o bem comum e garantindo-se os direitos humanos, dentre outros relevantes aspectos.

Como desdobramento dos ditames constitucionais, mas fundamentalmente para atender às recomendações do artigo 71 da Declaração e Programa de Ação adotado em Viena, o Governo brasileiro elaborou, ouvindo setores representativos da sociedade, o “I Programa Nacional de Direitos Humanos”, anunciado publicamente em 13 de maio de 1996. Trata-se de um programa governamental criado pelo Decreto n° 1904, com base no Art. 84 – Inc. IV da Carta Magna, mas constituindo-se, a bem da verdade, como um documento de intenções e princípios, apresentado à época como sendo “uma clara afirmação do Governo Federal com os compromissos assumidos pelo Brasil externamente e com a população na luta contra a violência em geral”. [15]

Estive pessoalmente envolvido na articulação do documento preparatório, relativo ao Sul do Brasil, do qual fui relator em seminário verificado na cidade de São Paulo, em março de 1996. [16] Para atender a implementação do referido Programa criou-se a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em 1997, no âmbito do Ministério da Justiça. E, a partir de março de 1998, por iniciativa dessa Secretaria Nacional, os Governos Estaduais foram instados a iniciarem um processo de elaboração de relatórios anual e quadrimestrais a respeito da atuação social da administração pública e da situação local dos direitos humanos. Aliás, concessa venia, acrescento que tive a honra, enquanto coordenador da Coordenadoria dos Direitos e da Cidadania - CODIC [17] (um órgão da Secretaria da Justiça do Estado do Paraná), de organizar o primeiro relatório paranaense a respeito de demandas populares e de ações públicas com relação aos direitos humanos, encaminhado ao governo federal no segundo semestre daquele 1998.

Consigne-se, outrossim, que todos os países da ONU vêm sendo instados, cada vez mais, a demonstrar transparência e eficácia no trato de matéria tão relevante, cuja fiscalização se dá por meio do sistema de Revisão Periódica Universal (RPU)[18] conduzida pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, no qual cada Estado é submetido a exame no ciclo de quatro anos e meio, e também por procedimentos especiais previstos no seio de alguns tratados relacionados a certos temas de direitos humanos, sendo monitorados por comitês de especialistas independentes. [19]

De extrema relevância, ainda, e até porque os tratados ratificados pelo Estado (promulgados e publicados) produzem efeitos na ordem jurídica interna,  vem a ser a possibilidade, prevista desde 1998, da apresentação de violações cometidas contra os direitos humanos no território brasileiro à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sediada em San José da Costa Rica. Neste particular, observo que a Corte, criada em 1969, funciona desde 1979 na cidade de San José (CR), aparelhada para atender casos contenciosos em que o Estado envolvido tenha ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos, firmada em 1969 (vigorando desde 18/07/1978), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, além de aceitar expressamente a competência do colegiado interamericano. Também se reserva ao tribunal o poder de, consultivamente, emitir parecer interpretativo acerca da Declaração Americana de Direitos Humanos (Bogotá – 30/04/1948) e outros instrumentos internacionais americanos.

Tendo em vista que a Corte é competente para conhecer casos concretos, desde que o Estado demandado tenha formulado a sua declaração unilateral de reconhecimento da sua jurisdição, observo que o Brasil ratificou o Pacto de San José em 06/11/1992, bem como passou a reconhecer a jurisdição da Corte em 03/12/1998 (o depósito legal da declaração brasileira na secretaria-geral da OEA ocorreu em 10/12/1998 e a sua promulgação verificou-se em 08/11/2002). Composta por 7 juízes(as)[20], a Corte constitui-se em última instância para decisões cogentes acerca de violações de direitos humanos dos hoje 20 países que aceitaram a competência desse tribunal. Frise-se que dos 35 países independentes das Américas, 22 haviam se submetido à jurisdição da CORTEIDH (o Brasil está nesta condição[21]), mas Trinidad e Tobago e a Venezuela denunciaram o Pacto de San José de 1969 – Trinidad e Tobago em 1998; a Venezuela em 2012, estando fora da Corte desde 2013.

Importa neste ponto esclarecer que, conquanto a importância ímpar do papel da Corte, ela não recebe pleitos individuais ou coletivos diretos, ou seja, os demandantes devem primeiro apresentar suas queixas perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (sediada em Washington – EUA), a qual, aceitando a denúncia, encaminha o caso para a Corte e nela passa a defender o interesse da (as) vítima (as).  Trata-se, pois, de um acesso indireto, uma situação que não ocorre, por exemplo, no âmbito da Corte Europeia de Direitos Humanos, acessível diretamente pelos interessados.  Esse tipo de sistema tem recebido muitas críticas, mas a existência da Corte, por si só, já representa um sinal altamente positivo às questões regionais de direitos humanos

Aqui abro parênteses para, recolocando o assunto no âmbito da realidade tupiniquim, perguntar se na prática os apontados avanços constitucionais significam a superação das violações dos direitos fundamentais? Mais ainda, será que tais dispositivos, propostas e intenções por si só bastam para assegurar o real respeito aos direitos humanos e garantir o exercício eficaz da cidadania?

Ora, basta uma simples leitura da realidade circundante para nos assustarmos com a violência social presente no cotidiano brasileiro, cujo agravamento progressivo representa uma nódoa para a nação e um questionamento à nossa democracia. A dicotomia entre a teoria e a prática dos direitos humanos no país é de há muito tão flagrante que, ainda no já distanciado ano de 1996, o próprio Governo Federal reconhecia no prefácio do referido Programa Nacional de Direitos Humanos o seguinte: “Não há como conciliar democracia com as sérias injustiças sociais, as formas variadas de exclusão e as violências reiteradas aos direitos humanos que ocorrem em nosso país”[22].  De lá para cá, ações ou situações violentas (de ordem material, física, moral e/ou psicológica), muitas vezes associadas ao agravante da impunidade, não se resumem a casos isolados. A ninguém passa despercebido que a violência perpassa as relações familiares, as relações de gênero, os ambientes e relações de trabalho, o atendimento nos serviços públicos, o comportamento no trânsito, as disputas agrofundiárias... Enfim, não é exagerado dizer que, de uma forma ou de outra, a violência e o medo marcam o cotidiano das vidas na cidade e no campo.

Razões pelas quais, justamente para atender aos reclamos das organizações da sociedade civil e melhor ampliar o leque de direitos fundamentais de forma a contemplar os mais amplos setores sociais, mais duas versões do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) foram posteriormente aprovadas – a segunda, em 13 de maio de 2002 (Decreto nº 4.229); a terceira, em 21 de dezembro de 2009, pelo Decreto nº 7.037, que restou alterado parcialmente pelo Decreto nº 7.177, publicado em 12 de maio de 2010. No entanto, e infelizmente, uma alentada gama das propostas neles contidas carece da devida eficácia, apesar do programa ser apontado pelos governos brasileiros como pauta dos Direitos Humanos.

Neste ponto, torna-se oportuno aclarar o que se pode inferir por violência social no cenário brasileiro. Reservando esse nome para situações macros, pode-se entendê-la como sendo a miséria, fome, desnutrição, doenças endêmicas mortais, falta de acesso à educação e à saúde, negação ou violação de nossas diferentes culturas coletivas, dificuldade dos pobres no acesso à Justiça e, inclusive, a existência de uma cultura jurídica formalista limitadora de seus direitos.  Significa, igualmente, desemprego e falta de moradia, ausência de saneamento básico e de equipamentos urbanos nas periferias, extrema concentração da terra rural, tortura como método de investigação policial, agressão e discriminação contra mulheres e minorias, banalização de acidentes fatais no trânsito e no trabalho, exploração da mão-de-obra e da sexualidade infantis, discriminação racial e econômica.

Ora, em qualquer lugar do mundo e em qualquer época, o alargamento das distâncias sociais e a exacerbada concentração da riqueza são fatores potenciais da marginalidade e da violência. Ao privar-se contingentes humanos de seus direitos básicos, bem como arrancar deles a possibilidade de desenvolverem suas capacidades e de viverem com dignidade, se está negando-lhes a cidadania e tornando-os política e socialmente impotentes.   [23]

Ou seja, ao manter-se pessoas famintas, sem saúde, sem escola, sem emprego, sem salário digno, sem moradia, sem segurança, sem condições dignas de vida, sem esperanças, enfim, se está compactuando com o aviltamento do ser humano e corroborando com a destituição de suas capacidades naturais.  

Cabe acrescentar, ademais, que o enfrentamento da violência, da exclusão social e da fome, em seu sentido macro, exige a efetivação da justiça social.  Em todos esses casos - fome, exclusão e violência - a busca de solução integral e contínua exige um firme e consequente compromisso, não só dos governos, mas também de quaisquer pessoas físicas e jurídicas e dos grupos sociais, para com as transformações que efetivamente  resgatem a dignidade  e garantam a cidadania a tantos milhões de deserdados  e excluídos.

Por fim, transladando o foco da questão para o plano internacional, assinale-se que, no transcurso da pandemia da COVID-19, inúmeras violações de direitos humanos associadas à doença passaram a ser frequentemente relatadas, tais como censura, discriminação, detenção arbitrária e xenofobia em muitas partes do planeta, em evidente óbice às respostas emergenciais de saúde pública e implicando na diminuição da sua eficiência. Circunstâncias estas admitidas pela própria ONU, cujo secretário-geral, António Guterres, em relatório divulgado ainda no primeiro semestre deste 2020, asseverava que os direitos humanos não podem ser negligenciados em tempos de uma crise mundial de tamanhas proporções, tida como a maior das últimas gerações. Guterres, aliás, tem por inaceitável que, em um contexto de crescentes nacionalismos, populismos, autoritarismos e de recuo dos direitos humanos, a crise possa ser um pretexto para a adopção de medidas ainda mais repressivas.[24] 

Por outro lado, em recente evento realizado paralelamente ao trâmite da atual Assembleia Geral da ONU, na data de 25/09/2020, sob o tema “Participação, Direitos Humanos e Próximos Desafios de Governança”, no qual se advertiu para o fato de que décadas de avanços em saúde global, desenvolvimento, redução da pobreza, igualdade e direitos humanos estão sob sério risco, o secretário-geral onusiano, destacando a importância da participação significativa das pessoas e da sociedade civil organizada nas decisões que afetam as suas vidas, lamentou que em muitos países a participação esteja sendo negada e o espaço cívico destruído. [25]

2 -ALTERNATIVAS À EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS

Hoje, indubitavelmente, estamos numa encruzilhada histórica que deve apontar novos paradigmas, novos papéis ao Estado e à sociedade civil, na consolidação da democracia e na construção do bem comum.

Mesmo assim, importa ter em mente que o Estado ainda tem muito o que implementar, intensificar ou modernizar, no plano de sua atuação. E, diante de uma realidade que também acusa níveis críticos de consciência política ou visões parciais e até estrábicas de cidadania (daqueles que só pedem direitos e dispensam deveres), mas sem esquecer as dificuldades de ordem econômica que também acometem o Poder Público, cabe ao Estado apoiar e implementar projetos/ programas que atinjam a consciência coletiva, que proporcionem mudanças, que alicercem a integração – não apenas a econômica, mas também, e intensamente, a  social, e que operacionalizem parcerias entre a esfera pública e a comunidade visando o alcance da cidadania repensada.

Enfim, para além da tradicional prática de se tratar a varejo as questões sociais, os novos tempos estão a exigir uma ampla e permanente política pública de direitos humanos e cidadania, que tem no Poder Público o grande responsável, mas com a indispensável participação e inclusive a fiscalização da sociedade civil organizada e das instituições com capacidade de tutela. Tais políticas públicas, ademais, devem levar em consideração, na perspectiva dos direitos humanos, dentre outras características, o empoderamento das pessoas e o cumprimento dos padrões internacionais nessa matéria. Mais que meios paliativos e/ou ações assistencialistas é imperioso que poder público (tanto nacional, quanto estadual ou municipal) implemente e/ou amplie um conjunto de programas, projetos e ações, com a participação (direta ou indireta) de entes governamentais e privados, com vistas a assegurar os direitos indispensáveis aos vários grupos ou segmentos socioeconômicos, étnicos e culturais de uma dada sociedade – seja brasileira ou de qualquer outro país com déficits nessa área.

Ora, para edificá-la e torná-la operante, não bastam medidas jurídicas e legislativas, tampouco meras ações eventuais e/ou isoladas, por mais bem intencionadas e oportunas que sejam. Mais do que isso, e para tanto, é imprescindível que os governos, em todas as instâncias, invistam em projetos de educação para os direitos humanos.  E, nessa perspectiva, nada mais correto e significativo, e mesmo nada mais justo, que contar com a educação formal – e, ressalte-se, também com a educação informal - para mais essa etapa de conscientização e formação, alicerçada em posturas e práticas voltadas às transformações solidárias, que favoreçam a valorização do trabalho e à superação da passividade, que reforcem os laços familiares, que destaquem o respeito ao semelhante e à natureza, que privilegiem a fraternidade e a solidariedade, que efetivem a tolerância, que garantam a pluralidade e a diversidade das pessoas e dos grupos sociais/culturais, e, enfim, que semeiem uma nova ordem social.[26]

A ideia de trabalhar com educação em (ou, para os) direitos humanos já não soa mais como ineditismo, tendo em vista quase quatro décadas de experiências nesse campo na América Latina. Basta lembrar, a título de ilustração, que o Instituto Interamericano de Direitos Humanos (sediado em San José da Costa Rica), desde 1983 desenvolve renovados cursos interdisciplinares nesse particular. Em 1991, sob a minha presidência, o Centro Heleno Fragoso pelos Direitos Humanos introduziu o projeto no Paraná, fazendo dele sua principal atividade. E, em 1996, com base nas atividades dessas entidades, criou-se oficialmente a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos / REDE, que conseguiu traduzir essa prática em projeto do governo federal na primeira década do século em curso. 

Pois bem, esse trabalho ganhou nas últimas décadas a dimensão e o apoio internacionais. Em decorrência do “Plano Mundial Ação para a Educação em prol dos Direitos Humanos e da Democracia”, assumido pela UNESCO, em 1993, o período de 1995 a 2004 foi proclamado como a “Década para a educação em direitos humanos e à luta contra a tortura”, através de campanha internacional patrocinada pela ONU. Para esta organização, o sucesso da empreitada fundava-se no sistema educacional, razão pela qual o documento conclusivo da II Conferência Mundial de Direitos Humanos, adotado em 25 de junho de 1993, cobrou veementemente dos Estados um aumento substancial dos recursos alocados a programas voltados “(...) à promoção da consciência dos direitos humanos por meio de treinamento, ensino e educação e a participação popular e da sociedade civil” (Parte I, 34). O texto, aliás, dedicou um capítulo a essa temática, ressaltando inclusive que a educação em direitos humanos deve incluir a paz, a democracia, o desenvolvimento e a justiça social (Parte II, D, 78-82).[27]

Novos passos nessa direção foram assumidos no novo século. Destarte, cumprindo com a  Resolução nº 24/2015  do Conselho  de  Direitos  Humanos, o Escritório  do  Alto  Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), ainda no primeiro trimestre  de  2014,  elaborou um  esboço  de  plano  de  ação  estrutural para  a  terceira  fase  (2015-2019)  do  Programa  Mundial  para  Educação  em  Direitos  Humanos  (PMEDH),  tomando  como  base,  entre  outros  importantes instrumentos e documentos das Nações Unidas, os planos de ação da primeira (2005-2009) e da segunda (2010-2014) fases do PMEDH, além de diversos conteúdos constantes de deliberações da ACNUDH e de setores da estrutura originária da organização.

Por óbvio, há que se registrar que esses procedimentos ganharam corpo após a aprovação do Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos, pela Assembleia Geral da ONU, na data de dia 10 de dezembro de 2004, que passou a oportunizar, a partir de 1º de janeiro de 2005, consideráveis avanços na implementação de programas/projetos de educação em direitos humanos em todos os setores.[28]

Enquanto isso, fazendo eco à Declaração e Programa de Ação de Viena, do qual foi signatário, o Governo Brasileiro, quase nos estertores do século passado, no seu “Programa Nacional de Direitos Humanos”, de cuja preparação participei, seja com propostas encaminhadas e mesmo como conferencista em evento nacional, enquanto colaborador no Paraná a convite do Núcleo de Estudos da Violência (USP), expressamente incluiu como meta “criar e fortalecer programas de educação para o respeito aos direitos humanos nas escolas de primeiro, segundo e terceiro graus...”, considerando-se a educação e a cidadania como bases para uma cultura de direitos humanos [29].

Há que se registrar, ainda, que um trabalho voltado a educar em direitos humanos deve ser visto como um processo de caráter ético e político, sistemático e universalista; um desafio a ser enfrentado com a disposição de se corrigir o rumo a todo instante; um sempre renovado compromisso que se assenta no amor à humanidade. E mais, a educação em direitos humanos deve ser humanizadora, devendo um sério projeto nesse sentido permitir aos educandos o confronto com as diferentes representações do real. Por outro lado, tendo presentes as inesquecíveis lições de Paulo FREIRE, pode-se afirmar que a educação em direitos humanos deve ser pluralista e dialógica[30], levando o educador a adotar posturas que estimulem e favoreçam a colaboração, união, organização, síntese cultural e reconstrução do conhecimento.

Além disso, permitindo-me discordar de algumas posturas governamentais, penso que os direitos humanos não podem ser considerados como apenas um tema específico, tampouco como uma disciplina a mais no currículo. Sua abordagem deve primar pela interdisciplinaridade ou mesmo pela utilização do sistema de “temas transversais”, a possibilitar que princípios de direitos humanos estejam presentes em todas as matérias curriculares. Em síntese, os direitos humanos devem se constituir em ponto de partida e o ponto de chegada de todo o planejamento escolar, necessitam estar presentes em toda a vivência curricular.

Por último, diante da inegável dicotomia entre a teoria e a prática dos direitos
humanos, resta evidente que a eficácia dos direitos humanos está em razão direta da participação ativa de cada um de nós na construção do país - e do mundo - de nossos sonhos. Do que se depreende que a participação não é somente um direito, mas é também um dever de todos, pois a omissão de cada um deixa caminhos abertos para os injustos e inescrupulosos.  Aliás, é preciso que todas as pessoas entendam que a ofensa ao direito de qualquer indivíduo que não receber imediata punição, ou ao menos não contar com a firme repulsada comunidade envolvente, enfraquece todo o conjunto de regras de direito, pois fomenta-se com isso a certeza da impunidade.

Ante um contexto latino-americano onde não faltam violações aos direitos fundamentais e sociais, a superação dos agravos está a exigir que ninguém se quede inerte e descrente.  Ao contrário, redescobrindo em comunhão com os outros o significado maior da cidadania, que todas e cada uma das pessoas sejam capazes de  reascender em si a esperança e fazer da educação em direitos humanos uma bandeira, objetivando a consagração de um novo tempo, onde haja liberdade qualitativa, igualdade de possibilidade, paz de consciência e vida digna para todos – sinônimos elementares dos direitos humanos.

3 - INCLUSÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA

Dentre as conclusões do Relatório cognominado “Panorama Social de América Latina 2018”, elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), divulgado em 15/01/2019[31], aponta-se que menos de ¼ dos lares dos países latino-americanos têm condições básicas de acesso a serviços sociais e de inclusão no mercado de trabalho. Esse documento, fruto da análise de dados de políticas sociais e mercado laboral de 16 países da região, enfatiza a importância da dupla inclusão, abrangendo o acesso imprescindível a serviços sociais - seja infraestrutura (como água, saneamento e energia) e também direitos (como saúde, educação e assistência social), juntamente com uma inserção no mercado de trabalho - com renda que permita (à qualquer indivíduo) ficar acima da linha de pobreza.

Ora, no âmbito da América Latina, considerando-se os termos do citado relatório, somente 23,5% dos lares desfrutavam dessa condição e cumpriam tais requisitos, analisados os dados de 2016-2018. Alerta-se, aqui, que um novo relatório da CEPAL deverá ser organizado levando em consideração os dados deste ano de 2020, um ano infeliz e inusual, que provavelmente indicará ainda mais carências, por conta dos efeitos da vigente pandemia relativa à COVID-19. Mas retomando-se a análise do documento de 2018, verifica-se que quase a metade das famílias (ou seja, 44,5%) poderia ser classificada como “duplamente excluída”, por não dispor de elementos cabíveis na “dupla inclusão”. E, acrescente-se, na zona rural o índice negativo sobe expressivamente, atingindo 69,8% de severa marginalização.

Ressalte-se que um dos aspectos centrais do modelo de “dupla inclusão” anunciado no Relatório CEPAL 2018 é o da pobreza. Neste ponto, observa-se que o número de pessoas pobres caiu de 226 milhões para 184 milhões, entre 2002 até 2017, o que a grosso modo demonstra um avanço. Todavia, o contingente humano em situação de pobreza extrema aumentou no mesmo período, de 57 milhões para 62 milhões. [32]

Neste particular, à guisa de solução, a CEPAL recomendou a intensificação de políticas públicas complementares de proteção social e de inclusão no mercado de trabalho, para redistribuição de renda e diminuição da pobreza extrema no continente. Afinal, a redução da pobreza e da desigualdade está em razão direta do aumento de renda familiar. Em decorrência, afirma o mesmo relatório, nos países onde as receitas laborais não estão sendo asseguradas, cabe ao Estado incluir repasses de pensões e efetivação de programas sociais apropriados. As duas coisas são vitais, razão pela qual se requer políticas nas duas áreas.

Por outro lado, o estudo revela que a inserção no mercado esbarra em uma grande desigualdade social, reconhecendo-se a gritante diferença entre os jovens de famílias mais abastadas e os imersos nos segmentos mais pobres no tocante ao ensino médio e o ensino superior. Em termos quantitativos, no que tange ao ensino médio, a conclusão desse ciclo por parte dos mais pobres é de menos da metade do que os das famílias mais aquinhoadas; já com relação ao ensino superior, a taxa de conclusão de curso demonstrou acentuada defasagem, na ordem de 41,7% para 3,6%, entre os jovens de grupos mais ricos em relação aos das parcelas mais empobrecidas. Elementos deveras expressivos, que levaram o apontado documento cepalino a destacar “a necessidade de responder às desigualdades que padecem boa parte das pessoas dos diversos grupos quanto aos seus acessos a mecanismos de inclusão social e laboral, o que demanda uma séria implementação de políticas que, além de garantir direitos universais em seus vários âmbitos, sejam também sensíveis às diferenças”.  [33]

Em que pese tais sensíveis conclusões, constata-se que no presente século, compelido por inúmeros diplomas internacionais (já descortinados), o Brasil passou a implementar ações sociais afirmativas, de que são exemplos a adoção do sistema de cotas para contratação de pessoal em órgãos públicos, a reserva de vagas em universidades públicas e cotas de gêneros em eleições proporcionais -  situações relacionadas aos afrodescendentes, indígenas e mulheres. Mas isso é pouco, no universo de tantas distorções, desigualdades, discriminações, marginalizações e exclusões. Todavia, é mister atribuir mérito às conquistas acima listadas, seja como forma de combater os evidentes efeitos negativos decorrentes da globalização – que recompensa o trabalho altamente qualificado e formal em detrimento do trabalho pouco qualificado e informal -, seja em razão do fortalecimento da democracia – que fez aumentar os processos de participação e de demanda social dos cidadãos. [34]

Além disso, tanto no Brasil quanto em outros países da latinoamericanidade, o enfoque na inclusão social vem a ser uma tentativa dos governos para responder, com novas medidas, à percepção amplamente compartilhada de que os atuais paradigmas de desenvolvimento não são capazes de atender às preocupações sociais prementes e às desigualdades históricas. E em plano superior, até como reflexo desse novo interesse, os organismos internacionais de desenvolvimento decidiram abraçar a meta de inclusão social e apoiar não apenas pesquisas sobre as causas da pobreza e da desigualdade, mas também as medidas necessárias para combate-las, instigando programas e financiamentos nessa direção.

Ora, neste ponto cumpre aclarar o que se entende por exclusão social. Conquanto a expressão tenha diferentes significados, há certo consenso no sentido de que a exclusão social se refere a um conjunto de circunstâncias mais abrangentes do que a pobreza. Uma exclusão social está mais estreitamente relacionada ao conceito de pobreza relativa do que à pobreza absoluta e, portanto, encontra-se indissociavelmente vinculada à desigualdade. A exclusão social se refere não apenas à grande concentração de renda e ativos (bens, ações e direitos) de uns poucos em detrimento de muitos, mas também à privação social e à ausência de voz e poder na sociedade.

Além do mais, pode-se observar a exclusão social sob o aspecto individual e mesmo grupal no seio da sociedade. Este último prisma, a acentuar a negação de acesso igualitário às oportunidades sobre alguns grupos em relação a outros, talvez abarque as duas características mais distintivas da exclusão: ela afeta grupos culturalmente definidos e está inserida nas interações sociais. E mais, a exclusão social ocorre se a participação em um grupo produz um expressivo impacto impeditivo ao acesso do indivíduo às diversas oportunidades, e, inclusive, se as interações sociais entre os grupos se dão numa relação de dominação e/ou de subordinação. [35]

Embora a exclusão não seja inevitável, uma vez que resulta de processos sociais e culturais, tem-se que a exclusão social é arbitrária, significando que os indivíduos são excluídos por causa de características que lhes são imputadas, as quais estão além da sua capacidade ou da sua responsabilidade, e não por suas conquistas individuais.

Experiências recentes voltadas à inclusão social na América Latina reforçam algumas características comuns destinadas à superação da exclusão, que podem assim ser resumidas: [36] a) Tornar o que antes era invisível em algo visível e identificável nas estatísticas – para o que se deve entender que a falta de transparência neste sentido leva muitas pesquisas e estudos a não questionarem diversas questões altamente significativas; b) Interromper a transmissão da falta de oportunidades de uma geração a outra – com o aumento de ações governamentais positivas e contínuas (das quais a educação é uma das mais poderosas ferramentas); c) Ampliar o acesso ao trabalho, à terra e ao mercado de capitais – com projetos e financiamentos direcionados a ampliar o número de projetos de treinamento/assistência técnicas e intermediação profissional complementados por formas de colocação no mercado de trabalho; d) Implementar projetos comunitários de desenvolvimento integrado junto às populações marginalizadas; e) Combater o estigma e a discriminação, com leis e políticas preferenciais – considerando-se que não bastam legislações, mas em muito se necessita da implementação de mecanismos e instrumentos necessários para converter as leis em prática e fortalecer o sistema judiciário como um todo, capacitando-se a magistratura no conhecimento das convenções internacionais para que as empreguem no trato de ações judiciais contra a exclusão; f) Afirmar o poder dos grupos excluídos – aumentando a sua voz e influência nas agendas nacionais e locais,  além de modificar-se estereótipos e promover a solidariedade. [37]

Eis, porém, que o mundo passou a viver uma inusitada e sombria situação neste ano de 2020. A crise sanitária e econômica causada pela pandemia de COVID-19 aprofundou a desigualdade social e o desemprego que já existia na América Latina e no Caribe, o que passa a exigir uma atuação coordenada dos países da região para a devida e urgente superação. Ora, justamente neste particular o MERCOSUL pode ser um instrumento útil e valioso, pois valendo-se do seu Fundo de Convergência Estrutural (FOCEM), no qual quase 70% dos recursos decorrem da participação do Brasil, pode proporcionar vasta contribuição no combate à pandemia em curso, para o que também deveria haver colaboração do Instituto Social do Mercosul (ISM). [38]

Mister se faz aduzir, neste contexto,  que uma recente avaliação da OCDE[39], após a “Cúpula Ministerial Virtual sobre Inclusão Social em Tempos de Covid na América Latina e o Caribe”, realizada de 13 a 17 de julho de 2020, aponta que o atual e complexo panorama pandêmico está afetando principalmente os lugares mais pobres e mais vulneráveis, vitimando notadamente os trabalhadores informais, os jovens, as mulheres, e as micro, pequenas e médias empresas. O secretário-geral da OCDE, economista mexicano Ángel Gurría, chamou a atenção para os novos dados da CEPAL, que estimam que neste ano de 2020 a região sofrerá uma contração do PIB na casa de 5,3% e um aumento do desemprego de 3,4 pontos percentuais. Isto implicaria em 28 milhões de latino-americanos a mais na pobreza e a 16 milhões de latino-americanos a mais na pobreza extrema. [40]

Consequentemente, considerando-se o diagnóstico da Cúpula Ministerial da OCDE, impõe-se uma revisão dos programas socioeconômicos da região no pós-pandemia, com destaque para a implementação de reformas que levem a um crescimento mais inclusivo. Para a OCDE, aliás, a presente crise está a exigir uma revisão do modelo atual que, durante décadas, criou uma enorme e visível desigualdade que já se fazia presente antes mesmo da COVID-19.

Ainda no final desse último encontro da OCDE, admitindo que a prioridade no momento vem a ser o combate adequado ao vírus que toma conta do planeta (e aqui chama-se a atenção para o inescusável distanciamento social), o secretário Ángel Gurría fez questão de elencar como desafios da América Latina e do Caribe após a pandemia do novo coronavírus, os seguintes: a) avançar em um sistema de proteção social mais sólido e universal, que cubra todos os trabalhadores mais vulneráveis, como os informais; b) avançar em uma melhor gestão do gasto público e em reformas dos sistemas tributários, para eliminar gastos ineficientes e tornar a arrecadação mais eficiente e transparente; c) promover a qualificação e o acesso dos trabalhadores ao mercado formal, inclusive com capacitações digitais que promovam a inclusão tecnológica; d) empoderar a cidadania, buscando a cooperação entre os diferentes setores da sociedade; e, e) alinhar as políticas de estímulo econômico com as necessidades ambientais, de proteção da diversidade e do meio ambiente. [41]

De outra parte, abordando a mesma temática, e mesmo, quase obscurecendo aquela anunciada avaliação da OCDE (13-17/07/2020), o vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina e o Caribe, Carlos Felipe Jaramillo, em entrevista concedida por meio virtual em Nairóbi à Agence France-Presse (AFP), na data de 24/07/2020, estimou que a crise da pandemia de coronavírus deixará pelo menos 25 milhões de pessoas sem emprego na região e que 50 milhões de latino-americanos ficarão abaixo da linha da pobreza, jogando por terra todo o progresso feito desde 2002. Admitindo ainda que esse número poderá “ser pior, dependendo de como a situação evoluir nos próximos cinco, ou, seis meses" [42], o economista colombiano lamentou que essa crise esteja devastando muitas pequenas e médias empresas, que são um importante motor de emprego na região.

Carlos Jaramillo também adverte os países da região para refletirem a respeito de seu modelo de desenvolvimento, já que arquétipo utilizado vem produzindo péssimos resultados mesmo antes da atual conjuntura.[43] Grosso modo, o exame desse cenário de contração econômica regional - em curso desde 2019 -, associado ao quadro de reveses advindos da pandemia, permite concluir que a saída para a crise vigente deve levar em consideração um crescimento diferenciado, inclusivo (principalmente dos jovens), mais ambientalmente sustentável e com maior proteção das populações vulneráveis, com planejamento a médio e longo prazos

Ora, se não bastassem prenúncios tão preocupantes, quase simultaneamente, em meio a uma crise sem precedentes, no que concerne a queda nas taxas de produção e desemprego, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), tornando público seu mais recente relatório, apresentado em videoconferência no escritório regional de Lima (Peru), em 01/07/2020, reconheceu o recorde histórico de 41 milhões de desempregados em toda a região, cujo impacto se traduzirá em maior desigualdade e pobreza. [44] Diante dessa conjuntura ímpar, a OIT aquilata que cerca de 60% dos trabalhadores atualmente empregados na América Latina e no Caribe estão expostos a uma possível perda de emprego, horas trabalhadas e renda.

Fazendo coro a outras agências internacionais, a OIT antevê saídas para a crise regional e pandêmica por meio de uma estratégia abrangendo quatro pilares:  estimular a econômica com política fiscal e monetária ativa e flexível; apoiar empresas e empregos, estendendo a proteção social, incentivando a manutenção laboral, com benefícios fiscais para as empresas; proteger a saúde no local de trabalho; e, buscar alternativas por meio do diálogo social entre autoridades, sindicatos, associações empresariais e trabalhistas. [45]

Para finalizar este ponto do presente estudo não é despiciendo aduzir que a discriminação e exclusão são onerosas para a economia e a sociedade. Na América Latina e no Caribe as políticas de inclusão social devem empenhar-se em reduzir a pobreza e a desigualdade estruturais, acelerando o crescimento e fortalecendo o funcionamento das sociedades democráticas.

CONCLUSÃO

De tudo o que se acabou de expor, com a incompletude natural intrínseca à delimitação de páginas regulamentares para fins de publicação, e com a brevidade determinada pela índole do presente trabalho, impõem-se as seguintes conclusões:

1 - Que seja garantida no âmbito dos países da América Latina a educação básica para todas as pessoas, além daquela voltada à formação técnica, com investimentos públicos sérios e maciços nestes setores, de forma a erradicar o analfabetismo e garantir aos trabalhadores informais uma menor vulnerabilidade empregatícia, impulsionando políticas educativas que sejam capazes de proporcionar acesso irrestrito e permanência de todos no universo escolar; 

2 - A superação da crise implica no aprofundamento da integração regional. Com pragmatismo, deve-se resgatar a visão de um mercado latino-americano integrado, cuja reconstrução implica na necessidade da redução de seus custos internos e promoção de uma logística inteligente, eficiente, fluida e segura, valendo-se de uma reengenharia da estratégia de investimento, maior interoperabilidade e oferta de serviços de valor agregado para aumentar a sua competitividade. Essas medidas devem ser implementadas de forma coordenada com outras medidas econômicas e sociais, para promover uma recuperação econômica com benefícios sociais e ambientais;

3 – A pandemia de COVID-19 prenunciou a imprescindibilidade da cooperação entre os países, entre setores e mesmo entre gerações. Tudo o que se fizer durante e depois da crise, que atinge seriamente o planeta, deve conduzir à construção de economias e sociedades mais igualitárias, inclusivas, sustentáveis e solidárias, fortalecidas e preparadas contra todo e qualquer tipo de desafio em escala mundial;

4 – Dentre tantas medidas governamentais, que podem amenizar o problema vigente, torna-se imperioso descobrir fórmulas inteligentes e eficientes de arrecadação que favoreçam os mais empobrecidos, ajustando-se ao mesmo tempo a contribuição dos mais favorecidos, de forma a gerar mais e melhores investimentos em serviços qualitativos notadamente na educação, saúde e transporte, além de propiciar a manutenção dos avanços sociais já conquistados na América Latina e Caribe, para o que não pode faltar o apoio efetivo dos vários setores da sociedade;

5 - O mundo precisa de modelos e estruturas de governança voltadas ao bem comum e sem exclusões, para o que é urgente a participação de todas as faixas populacionais (a que chamo de “participação cidadã”) como o melhor meio de identificação de soluções viáveis e formulação de políticas públicas pertinentes. Para isso, cumpre garantir-se o diálogo construtivo entre governo e governados, propiciando assim a redução da tensão social verificável em diferentes países. E mais, a recuperação econômica deve buscar fortalecer os direitos socioeconômicos e culturais, com a proteção do meio-ambiente e da biodiversidade;

6 – Tem-se por essencial, também, uma ampliação e mesmo modificação das políticas públicas, sendo que o investimento sério e maciço em educação é um dos vetores mais urgentes e importante, além de uma participação maior da sociedade nas discussões e soluções desse e outros problemas de abrangência nacional. Evidencia-se, enfim, por indubitável, reafirmar que cada um de nós têm um papel preponderante a desempenhar no alcance pleno da cidadania para cada pessoa, família e grupo social;

7 - Implementar espaços oportunos de participação social para a avaliação dos impactos e resultados das medidas assumidas na pandemia, que permitam adotar os ajustes necessários sob um enfoque de direitos humanos. Além disso, cabe estabelecer espaços de diálogo nacionais com a participação de peritos independentes, instituições nacionais de direitos humanos e representações do setor privado;

8 – Como derradeira conclusão, entendo que a discriminação e a exclusão são onerosas para a economia e a sociedade. Na América Latina e no Caribe as políticas de inclusão social devem empenhar-se em reduzir a pobreza e a desigualdade estruturais, acelerando o crescimento e fortalecendo o funcionamento das sociedades democráticas. Concomitantemente, ressalta-se que o fortalecimento dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA) aumenta a resiliência a longo prazo e oportuniza a efetivação de uma sociedade mais justa e fraterna.  

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Sobre o autor
Wagner Rocha D’Angelis

Advogado, historiógrafo e professor universitário. Pós-graduado em Direito – USP / UFPR (Mestrado e Doutorado). Presidente da Associação de Juristas pela Integração da América Latina (AJIAL) e Presidente do Centro Heleno Fragoso pelos Direitos Humanos (CHF). Autor de vários livros e artigos científicos (publicados no Brasil e no Exterior).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Obs.: O Autor publicou diversos livros, dentre eles "Mercosul - da intergovernabilidade à supranacionalidade? Curitiba: Ed. Juruá, 2001 (e reedições posteriores).

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