5. A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor
Demonstrado que o ônus da prova não é exclusividade de uma específica situação de direito material, mas sim necessidade para o seu adequado tratamento, cabe passar à análise da regra do art. 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor, que expressamente indica os pressupostos para a inversão do ônus da prova nas relações de consumo.
De acordo com essa norma, é direito básico do consumidor "a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência". Aqui, os critérios para a inversão devem ser pensados a partir dos pressupostos postos na lei, ao contrário do que ocorre quando nos ocupamos dos critérios para a inversão do ônus da prova fora do Código de Defesa do Consumidor.
A leitura da regra do art. 6º, VIII propõe as seguintes questões: i) a inversão do ônus da prova exige a verossimilhança da alegação e a hipossuficiência do consumidor ou apenas um desses elementos?; ii) o que significa verossimilhança da alegação e hipossuficiência do consumidor?; iii) qual é o momento para a inversão do ônus da prova?
O art. 6o, VIII afirma claramente que a inversão do ônus da prova é possível, em favor do consumidor, quando "for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente". De modo que a própria interpretação gramatical impõe a conclusão de que basta a verossimilhança ou a hipossuficiência.
Mas, para que seja possível expressar os significados de verossimilhança e hipossuficiência, é preciso considerar o contexto em que essas expressões são utilizadas.
Ou seja, é preciso recordar as razões de distribuição e inversão do ônus da prova e agora relacioná-las com a natureza das relações de consumo e com a posição que o consumidor nelas ocupa.
Deixe-se claro que o fato de o consumidor não precisar provar culpa quando pretende o i) adimplemento da obrigação ou o ii) ressarcimento do dano (tenha esse dano sido provocado pelo inadimplemento ou pelo chamado "acidente de consumo") nada tem a ver com inversão do ônus da prova. No primeiro caso sequer é possível cogitar sobre a presença de culpa, pois o direito ao adimplemento da obrigação independe da ocorrência de culpa. Nas hipóteses de dano provocado pelo inadimplemento ou pelo adimplemento imperfeito e de dano derivado de "acidente de consumo", o próprio Código de Defesa do Consumidor é expresso em excluir a necessidade da demonstração da culpa (arts. 12, 14 e 23, CDC). 7
Por outro lado, no caso de responsabilidade pelo fato do produto, o art. 12, §3º do CDC diz que "o fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I – que não colocou o produto no mercado; II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro". Na hipótese de responsabilidade pelo fato do serviço, preceitua o art. 14, §3º, do mesmo código que "o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro". Como se vê, tais normas afirmam expressamente que o consumidor não precisa provar o defeito do produto ou do serviço, incumbindo ao réu o ônus de provar que esses defeitos não existem.
Em ação de ressarcimento baseada em responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, além de a responsabilidade ser independente de culpa (objetiva), o consumidor é dispensado de provar o defeito do produto ou do serviço. Até aqui a única questão probatória que aparece diz respeito à prova do defeito, mas o ônus dessa prova é expressamente imputado ao réu, não recaindo sobre o consumidor. Nesse caso, como é óbvio, o juiz não precisa inverter o ônus da prova, pois esse ônus já está invertido (ou definido) pela lei.
No caso em que o réu não consegue demonstrar que o defeito não existe, faltaria ainda ligar esse defeito ao dano. Exemplifique-se com a hipótese do remédio que contém defeito na sua fabricação. Como é pouco mais do que óbvio, um remédio com defeito somente pode gerar responsabilidade – ainda que essa prescinda de culpa – quando causa um dano. O problema, então, passa a ser o da prova da causalidade. Como provar que uma doença, ou um problema no feto, foi ocasionado pelo defeito de um remédio?
Frise-se que, em um caso com esse (de defeito na composição de remédio), a relação de consumo é marcada pela violação de uma norma que objetiva dar proteção ao consumidor. O fabricante que viola essa norma assume o risco da dificuldade de prova da causalidade. Se a prova da causalidade é difícil, basta que o juiz chegue a uma convicção de verossimilhança para responsabilizar o réu. Essa convicção de verossimilhança, é claro, não se confunde com a convicção de verossimilhança da tutela antecipatória, pois não é uma convicção fundada em parcela das provas que ainda podem ser feitas no processo, mas sim uma convicção que se funda nas provas que puderam ser realizadas no processo, mas, diante da natureza da relação de direito material, devem ser consideradas suficientes para fazer crer que o direito pertence ao consumidor.
Essa convicção de verossimilhança nada mais é do que a convicção derivada da redução das exigências de prova, e assim, em princípio, seria distinta da inversão do ônus da prova. Mas, o art. 6o, VIII do Código de Defesa do Consumidor alude expressamente à possibilidade de inversão do ônus da prova quando a alegação for verossímil. Na verdade, quando esse código mistura verossimilhança com inversão do ônus da prova, está querendo dizer que basta a verossimilhança preponderante, embora chame a técnica da verossimilhança preponderante de inversão do ônus da prova.
No caso em que o autor alega que um defeito no sistema de freios do seu veículo lhe acarretou um acidente com danos materiais e pessoais, e o fabricante não demonstra a inexistência desse defeito, a dificuldade no preciso esclarecimento de que o dano foi gerado pelo defeito não pode ser suportada pelo consumidor, bastando-lhe, assim, fazer o juiz acreditar na verossimilhança de que esse defeito tenha provocado o dano. A dificuldade no pleno esclarecimento da relação de causalidade, diante do risco probatório assumido pelo fabricante – que produziu o sistema de freios com defeito –, obviamente deve ser imputada a ele. É por isso que basta a verossimilhança ou, como quer o art. 6o, VIII do Código de Defesa do Consumidor, que o juiz inverta o ônus da prova, com base na verossimilhança, na própria sentença.
A outra hipótese de inversão do ônus da prova na sentença decorre da chamada hipossuficiência do consumidor. Por hipossuficiência, aqui, deve-se entender a impossibilidade de prova – ou de esclarecimento da relação de causalidade – trazida ao consumidor pela violação de uma norma que lhe dá proteção, por parte do fabricante ou do fornecedor. A hipossuficiência importa quando há inesclarecibilidade da relação de causalidade e essa impossibilidade de esclarecimento tem relação com a própria violação da norma de proteção.
Melhor explicando: em determinados casos, ainda que não seja possível determinar, através de prova, que um defeito ocasionou um dano, seja porque as provas não são conclusivas, seja porque as regras de experiência não são absolutas, pode ser viável ao menos chegar a uma convicção de verossimilhança, a qual é legitimada em razão de que o violador da norma de proteção assumiu o risco da dúvida. Nessas situações é possível julgar com base na verossimilhança preponderante, ou, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, inverter o ônus da prova na sentença com base na verossimilhança da alegação. Porém, quando não se pode chegar nem mesmo à verossimilhança da alegação, há uma situação de inesclarecibilidade, ou a impossibilidade de o consumidor produzir prova para esclarecer a relação de causalidade. Nessa situação a inversão do ônus da prova deve ser feita com base em hipossuficiência, tal como compreendida no parágrafo acima.
Nessas duas hipóteses a inversão do ônus da prova é voltada ao juiz. Não há sequer motivo para pensá- la como regra dirigida à parte, pois em nenhum dos casos se exige prova do fabricante ou do fornecedor.
Mas, quando a prova é impossível, ou muito difícil, ao consumidor, e possível, ou mais fácil, ao fabricante ou ao fornecedor, a inversão do ônus da prova se destina a dar ao réu a oportunidade de produzir a prova que, de acordo com a regra do art. 333, incumbiria ao autor. Agora não se trata de inverter o ônus da prova para legitimar – na sentença – a incompletude ou a impossibilidade da prova, mas de transferir do autor ao réu o ônus de produzi-la – o que deve ser feito na audiência preliminar.
Alguém perguntaria se, nesse último caso, a inversão seria fruto da verossimilhança ou da hipossuficiência. Porém, como essa verossimilhança – conforme já dito - não deve ser confundida com a verossimilhança própria aos juízos que se formam no curso do processo, somente a dificuldade de produção de prova caracterizada pela peculiar posição do consumidor – ou a hipossuficiência –, pode dar base à inversão do ônus da prova na audiência preliminar.
6. Convicção, decisão e motivação
Como visto, o juiz pode chegar ao final do procedimento i) em estado de dúvida e simplesmente aplicar a regra do ônus da prova, como também ii) julgar com base em verossimilhança ou inverter o ônus da prova em razão da "verossimilhança da alegação" e ainda iii) inverter o ônus da prova em razão da inesclarecibilidade da situação fática ou da hipossuficiência do consumidor.
Acontece que a convicção obviamente não pode ser medida em graus ou em números. A dúvida, a convicção de verossimilhança e a inesclarecibilidade, ainda que constituam pressupostos para o juiz decidir, apenas podem ser demonstradas na motivação da sentença. De modo que a motivação justifica a decisão e o seu antecedente imediato, isto é, a convicção.
Como a convicção é explicada através da motivação, é possível dizer que a convicção é aí racionalizada. Ou melhor, a convicção de verdade, a dúvida, a convicção de verossimilhança e a inesclarecibilidade do fato constitutivo são racionalizadas mediante a racionalização dos argumentos utilizados para justificá-las.
Vale dizer que a legitimidade do julgamento fundado em verossimilhança (ou a inversão do ônus da prova com base na "verossimilhança da alegação") e da inversão do ônus da prova em razão de inesclarecibilidade (ou com base na "hipossuficiência" do consumidor), requer a análise da motivação. Se os argumentos utilizados – a circunstância de direito material que impõe a dificuldade ou a impossibilidade de produção da prova, ou, por exemplo, a existência de uma regra de experiência8 que aponte para a verossimilhança - não forem adequados para justificar uma ou outra, ou ainda se a motivação incidir em falta de coerência lógica9 em relação aos critérios utilizados para demonstrar a convicção de verossimilhança ou a inesclarecibilidade, a decisão carecerá de legitimidade.
Isso demonstra a separação entre convicção, decisão e motivação. A convicção é imprescindível para a decisão, pois o juiz, para decidir, tem que saber o que é necessário (ou o que basta) para julgar o pedido procedente, e assim, por exemplo, quando a convicção de verossimilhança é suficiente. Mas a convicção apenas é exteriorizada quando é racionalizada na motivação. Ou seja, se a convicção é importante para a decisão, o certo é que a convicção e a decisão somente poderão ser compreendidas em face da motivação, quando deverão ser justificadas. Portanto, se a sentença de procedência requer, por exemplo, convicção de verossimilhança, tal sentença somente será legítima quando a sua motivação racionalizar adequadamente tal convicção e os elementos que a determinaram.
Notas
1 PATTI, Salvatore. Prove - Disposizioni generali, Bologna, Zanichelli, 1987, p. 85.
2 PATTI, Salvatore. Prove - Disposizioni generali, cit., p. 3.
3 PATTI, Salvatore. Prove. Disposizioni generali, cit., p. 164.
4 Para um maior aprofundamento desta questão, ver Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo: Ed. RT, 2005, 2ª. ed., v. 5, t. 1, p. 183. e ss.
5 Gerhard Walter, Libre apreciación de la prueba, Bogotá: Temis, 1985, p 277-278.
6 ROSENBERG, Leo. Die Beweislast auf der Grundlage des Bürgerlichen Gesetzbuchs und der Zivilprozessordinung. München: Beck, 1965, 5a. ed., p. 91. e ss.
7 Em relação à responsabilidade pelos "acidentes de consumo", o CDC estabelece de forma
expressa a responsabilidade objetiva (arts. 12. e 14, CDC). Mas, no que diz respeito à responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço, a doutrina pensa ora em responsabilidade objetiva ora em culpa juris et de jure. Porém, falta-lhe a percepção de que a responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço tem dois patamares: a do inadimplemento (propriamente dito) e a do dano por ele provocado. O direito de exigir o adimplemento perfeito independe de culpa e, assim, essa somente poderia ter relevância diante do dano provocado pelo adimplemento imperfeito.
Contudo, o art. 23. do CDC afirma que "a ignorância do fornecedor sobre os vícios de qualidade por inadequação dos produtos e serviços não o exime de responsabilidade". Como é óbvio, esse artigo diz respeito à responsabilidade pelo dano derivado do adimplemento imperfeito. O art. 23. evidencia que, no sistema do CDC, a demonstração de boa-fé não é capaz de elidir a responsabilidade pelo dano causado ao consumidor.
Assim, considerando que o consumidor tem direito ao adimplemento perfeito (específico) ainda que não tenha ocorrido culpa, resta a conclusão de que essa somente poderia ter sido dispensada em relação aos danos provocados pelo inadimplemento (art. 23) e no que concerne aos danos decorrentes dos acidentes de consumo (arts. 12. e 14). Ou seja, a culpa foi dispensada nos únicos lugares em que dela se poderia cogitar. (Ver Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direitos, São Paulo: Ed. RT, 2004, p. 234. e ss).
8 Sobre o controle da utilização das regras de experiência, ver Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, Comentários ao Código de Processo Civil, v. 5, t. 1, cit., p. 460. e ss.
9 A respeito da coerência lógica e da coerência narrativa da decisão, ver Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, Manual do processo de conhecimento , São Paulo: Ed. RT 2004, 4ª. ed., p. 473. e ss; Michele Taruffo, La prova dei fatti giuridici, Milano: Giuffrè, 1992, p. 287. e ss.