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As opções políticas do Estatuto de Roma e seu impacto em relação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais no Brasil

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6.Síntese das reflexões críticas acerca da problemática e nossa posição.

Feitas as considerações precedentes, e embora já se tenha deixado entrever nosso entendimento sobre cada um dos temas, tentar-se-á realizar uma síntese das reflexões críticas acerca da problemática ora aventada, adotando uma posição em face da mesma.

Primeiramente, no que concerne à extradição denominada entrega, se buscará refutar um a um os argumentos jurídicos e metajurídicos favoráveis à subserviência completa perante o Estatuto de Roma, precedentemente vistos.

A distinção entre extradição e entrega não se sustenta juridicamente. O fato de haver previsão expressa no Estatuto distinguindo uma da outra não é apto a produzir o efeito pretendido.

Ora, a simples distinção de denominação provocada pelo Estatuto, como visto, não é idônea a transmudar a natureza jurídica do instituto extradição em algo diverso. A denominada entrega nada mais é do que modalidade de extradição e deve sujeitar-se aos ditames constitucionais, conforme já visto em tópico precedente.

FERDINAND LASSALE já revelava a importância da primazia da realidade sobre as formas, em outro contexto e com objetivo diferente, com palavras que podem, mutatis mutandis, ser aqui aproveitadas:

"Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: ‘Esta árvore é uma figueira’. Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam estes a fábula produzindo maçãs e não figos." [30]

Da mesma forma não se pode fugir ao preceito constitucional imperativo e imodificável por mero estratagema, ardil ou jogo de palavras (inconstitucionalidade ideológica [31]).

Por outro lado, já restou demonstrado que o entendimento segundo o qual a natureza jurídica é diversa em face dos participantes na relação jurídica serem diversos na entrega e na extradição também não merece melhor sorte. Como já visto anteriormente, a simples mudança dos participantes não é apta a alterar a natureza da relação jurídica.

O argumento de que o Estatuto não admitia reservas, logo não havia alternativa que não fosse a adesão é insuficiente e implica, em face do princípio da constitucionalidade ou primazia da Constituição, no reconhecimento da inconstitucionalidade do preceito, face o conteúdo materialmente incompatível das disposições convencionais e constitucionais.

O Estatuto de Roma possui seu pecado capital exatamente neste ponto. Deixa de levar em consideração as peculiaridades jurídicas de cada ordenamento, buscando fazer com que os Estados-partes alterem suas legislações de maneira mais gravosa em relação ao regime jurídico dos direitos fundamentais que atualmente consagram, obtendo resultado diametralmente oposto ao que justifica sua própria existência.

Poderiam ser criadas alternativas viáveis em que fossem levadas em considerações situações particulares em relação a ordenamentos jurídicos que não admitissem extradição. Como se pretendeu impor uma solução pré-formatada, impossibilitou-se de antemão o cumprimento dos dispositivos do instrumento por países como o Brasil, no qual a proibição de extradição de nacional é constitucional e ainda imodificável.

A alegação de que seria impossível o consenso em termos diversos somente é verdadeira se se considerar a posição de irredutibilidade com que o texto do instrumento foi proposto em relação a tais pontos. Seria possível a inclusão de situações diferenciadas, conforme propuseram inclusive algumas delegações em relação aos pontos controvertidos em análise, como as avançadas pela Dinamarca, Suécia e Suíça em relação à extradição de nacionais, por exemplo, levando-se em consideração os ordenamentos nacionais.

Àqueles que objetem que as soluções diferenciadas inviabilizariam o eficaz exercício da jurisdição pela Corte, lembramos que esta já está comprometida pelo princípio da complementaridade. O estatuto estabelece que somente poderá processar um indivíduo na inércia do Estado-parte em fazê-lo. Ora, para subtrair determinado indivíduo à jurisdição do Tribunal Penal Internacional bastará ao Estado processar o imputado, recusando a entrega, por conseguinte, ainda que referido processo absolva o imputado ou imponha-lhe penas muito amenas. E a Cour Internationale nada poderá fazer.

Assim, admitir a recusa da entrega de nacionais, com base em preceitos de direito interno imutável [32]não seria, por si só, causa de inoperância da Corte, cuja jurisdição pode ser contornada ardilosamente pelo simples exercício, ainda que simulado, da jurisdição interna.

O argumento baseado na gravidade dos delitos e a quantidade de vítimas, utilizado para justificar a adoção da pena perpétua, bem como a entrega de nacionais, carece, à toda evidência, da menor higidez jurídica.

Direitos fundamentais, em regimes de constituição rígida, como o brasileiro, acobertadas por cláusula de imodificabilidade, são pontos constitucionalmente inegociáveis.

Cláusulas pétreas não são ponderáveis. Temos sérias objeções à recorrente banalização das teorias de ponderação de princípios e relativização de direitos fundamentais [33], que serão objeto de estudo específico.

Outrossim, direitos fundamentais não se quantificam. O direito à vida de cem ou mil indivíduos não é mais ou menos importante do que o direito à vida de um indivíduo.

Este tipo de argumento em favor do Estatuto expõe, de forma crua, a falta de fundamentos jurídicos às teses que pregam a aplicação acrítica do instrumento. A comunidade jurídica deve procurar afastar-se dos perigosos juízos políticos que, de resto, embasam tais posições. Juízos de conveniência e oportunidade como estes não podem ser utilizados para burlar, através de discurso retórico, carente de cientificidade e juridicidade à toda evidência, princípios fundamentais da República e cláusulas pétreas.

Caso assim não seja, corre-se o risco de se passar a relativizar todo e qualquer preceito constitucional com base em juízos políticos de conveniência e oportunidade, rasgando-se, de uma vez por todas, a Constituição Federal.

Pense-se que argumentos de conveniência e oportunidade, como a gravidade dos delitos ou a quantidade de vítimas, ou ainda, a periculosidade dos imputados, em prosperando teses como as esposadas pelos defensores do Estatuto de Roma, podem muito bem ser utilizados, ato contínuo, para começar um debate inconstitucional sobre a conveniência e oportunidade de adotar-se ou não a pena de morte, a tortura e quejandos, à revelia do que diga a Carta Magna [34].

Aqui pousa o temor máximo em aceitar-se acriticamente o Estatuto de Roma: abrir um perigoso precedente pelo qual tudo é possível, ao arrepio da Constituição, desde que seja ditado por juízos políticos de conveniência e oportunidade, os quais podem tão bem ser manipulados pelo discurso retórico.

A previsão de revisão automática tampouco supera o problema posto. Em limitando a Constituição brasileira a pena no tempo, revela-se absolutamente incompatível com o sistema de valores adotado pela Carta Magna pátria a adoção, ainda que fosse em tese, de penas perpétuas.

Quanto às reservas, a alegação de que a admissão de reserva comprometeria o funcionamento do TPI sucumbe ante os mesmos argumentos expendidos em relação à extradição do nacional, em face do princípio da complementaridade que informa o TPI (melhor seria princípio da subsidiariedade).

Por fim, o argumento de que o Brasil caracteriza-se como um "Estado cooperativo", e não deve opor-se, de nenhuma forma e com nenhum fundamento, ao funcionamento do TPI também carece de idoneidade.

O artigo 4º, inciso IX preconiza a cooperação. Mas há que se fazer uma interpretação sistemática da Carta Política, e não isolada de um de seus dispositivos, fetichizando-o. Ao lado da referida disposição, e antes mesmo dela, há outros dispositivos constitucionais que não podem ser desconsiderados pelo exegeta.

Entre eles, o artigo 1º, caput, que caracteriza a República Federativa do Brasil como Estado democrático de Direito, para cuja caracterização, conforme é consabido, é exigência visceral a observância dos direitos e garantias fundamentais.

O mesmo artigo, em seu inciso I, reafirma a soberania nacional, de modo que fica demonstrado que, por maiores que sejam os esforços no sentido de diminuí-la e ignorá-la, ela ainda existe, de modo que não pode nenhum Estado estrangeiro, tampouco algum organismo internacional, impor modificações drásticas em nossos valores constitucionais fundamentais, o que é reforçado, ainda, pelo já citado artigo 4º, o qual, logo em seu inciso I, reafirma a independência nacional.

O Brasil é, antes de tudo e acima de outras classificações que lhe busque conferir a doutrina, um Estado democrático de Direito, sendo basilar o respeito aos direitos humanos e aos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados, nos termos do art. 1º, III – dignidade da pessoa humana – e art. 4º, II – prevalência dos direitos humanos.

Não é legítima a intenção de se valer de juízos políticos para violar disposição expressa de cláusula pétrea, a qual é, conforme já afirmando, imponderável. Não se pode alterar o essencial disposto pelo Constituinte originário, devendo-se respeitar as regras do jogo (BOBBIO).

Sobre cláusulas pétreas, preleciona KONRAD HESSE:

"Os princípios basilares da Lei Fundamental não podem ser alterados mediante revisão constitucional, conferindo preeminência ao princípio da Constituição jurídica sobre o postulado da soberania popular." [35]

E, sobre o fundamento das mesmas, ensina GILMAR FERREIRA MENDES, em notas à sua tradução da obra "A Força Normativa da Constituição", de HESSE:

"A Lei Fundamental consagrou, no art. 79, III, cláusula pétrea que considera inadmissível qualquer reforma constitucional que pretenda introduzir alteração na ordem federativa, modificar a participação dos Estados no processo legislativo, ou suprimir os postulados estabelecidos nos arts. 1§ (inviolabilidade da dignidade humana) e 20§ (estado republicano, federal, democrático e social, divisão de poderes, regime representativo, princípio da legalidade). Segundo a jurisprudência da Corte Constitucional alemã (Bundesverfassungsgericht), essa disposição tem por escopo impedir que ‘a ordem constitucional vigente seja destruída na sua substância ou nos seus fundamentos, mediante a utilização de mecanismos formais, permitindo a posterior legalização do regime totalitário’ (BverfGE 30, 1 (24) (Cf. a propósito, nosso ‘Controle de Constitucionalidade’, São Paulo, 1990, p. 96, 100 s.)." [36]

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Assim sendo, reafirma-se o respeito ao cerne imodificável da Constituição, como requisito à própria manutenção do Estado democrático de Direito.


7.Conclusão: o risco de desmoralização dos direitos e garantias fundamentais e das cláusulas pétreas.

Como visto, diversos foram aqueles que reputamos pecados capitais do Estatuto de Roma, dentre os quais destaca-se a completa desconsideração das particularidades jurídico-constitucionais de Estados-parte do mesmo.

Infelizmente o entendimento dominante até o momento sobre o Tribunal Penal Internacional tem passado ao largo de problemas cardeais como os aventados, limitando-se a admitir tudo conforme imposto, fazendo de conta que a Constituição nada dispõe sobre o particular.

Posição como a esposada neste trabalho evidentemente não escapará incólume às críticas, pois afronta alguns dogmas da pós-modernidade, como lembra TÉRCIO TOKANO:

"Esse conceito, que alguns autores designam mundialização, já há muito tornou-se um dogma, e como todo dogma – religioso, político ou econômico – traz em sim a característica da inevitabilidade. Se o fenômeno é recente, o truque é velho e consiste em desmoralizar, no nascedouro, qualquer tentativa de se analisar o objeto com outro olhar que não seja o da mera constatação e a conseqüente aprovação, ainda que tácita." [37]

Agora a conseqüência mais funesta da admissão do Estatuto de Roma, tal como se afigura, pela República Federativa do Brasil, em desconformidade com uma série de preceitos constitucionais expressos e imodificáveis pode ser a desmoralização completa dos direitos e garantias fundamentais e das próprias cláusulas pétreas.

Fundamental passa a ser dispensável ou relativo, pétreo passa a ser maleável. Tudo relativizado, num juízo de ponderação político, de conveniência e oportunidade, ditado pela ânsia de aceitar a jurisdição do tão aguardado Tribunal Penal Internacional, a qualquer preço, discurso este cujos argumentos estão mais próximos dos jornais sensacionalistas do que do meio acadêmico.

Um golpe mortal na tentativa de construção de uma cultura de respeito à Constituição e, sobretudo, aos direitos e garantias fundamentais e às cláusulas pétreas.

Em se verificando tal quadro, somente terá sido denunciada, ainda uma vez, quão esquálida era nossa vontade de constituição (wille zur Verfassung), expondo às claras a capitulação da Constituição diante do poder dos fatos (HESSE, op. cit., p. 32).

E, em tal quadro, cada vez mais servirão os argumentos retóricos, baseados em juízos políticos de conveniência e oportunidade ditados sempre pelo senso comum teórico, para negar vigência aos dispositivos fundamentais da Carta Magna, demonstrando a preponderância dos fatores reais de poder sobre aquela (LASSALE).

Eis o risco.

E tudo em nome de um hipotético crime contra a humanidade, de um hipotético julgamento de um hipotético ditador tirânico, que talvez nunca se verifique em nosso País.

A maior ironia em tudo parece ser que o Direito Internacional dos Direitos Humanos, em relação ao Brasil e aos demais países que não admitiam penas perpétuas, extradição de nacionais e quejandos, parece estar produzindo um efeito diametralmente oposto ao seu fim, qual seja, o de enfraquecer e desprestigiar os direitos humanos mais elementares, e o de debilitar uma já débil cultura de respeito à Constituição, o de fragilizar o sistema jurídico interno de proteção dos direitos fundamentais.

Conforme por nós já defendido em outras oportunidades, em sede de direitos humanos ou direitos fundamentais, o critério orientador deve ser, sempre, o da norma mais favorável à vítima. Neste sendido, FLÁVIA PIOVESAN:

"Logo, na hipótese de eventual conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o direito interno, adota-se o critério da prevalência da norma mais favorável à vítima. Em outras palavras, a primazia é da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos da pessoa humana." [38]

E, no caso, trata-se dos direitos do hipotético ditador genocida, o qual, por maior gravidade da qual revistam-se seus atos, não resta destituído de seus direitos fundamentais.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos não deveria jamais fragilizar os sistemas de proteção dos direitos fundamentais. É ainda FLÁVIA PIOVESAN que, após referir-se às normas de direito internacional que reforcem, ou ampliem ou mesmo contrariem [39] direitos humanos (ou fundamentais) constitucionalmente consagrados, preleciona:

"Em todas as três hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno." [40]

Por fim, de se observar o quão inconsistentes os argumentos a favor do Estatuto como posto atualmente, aqui rapidamente expostos, e os quais, surpreendemente, têm logrado grande êxito, raramente sendo contestados ou avaliados criticamente.

Preocupante, pois o discurso jurídico deveria orientar-se pela racionalidade, conforme magistralmente observa ROBERT ALEXY:

"A Primeira Turma do Tribunal Constitucional Federal exigiu, na sua resolução de 14 de fevereiro de 1973 (resolução sobre o desenvolvimento do Direito), que as decisões dos juízes devem basear-se em ‘argumentações racionais’. Essa exigência de racionalidade da argumentação deve ser extendida a todos os casos em que os juristas argumentam." [41]

Para, ao final, arrematar que "da possibilidade de uma argumentação jurídica racional dependem não só o caráter científico da Ciência do Direito, mas também a legitimidade das decisões judiciais." [42]

Isto porque somente assim o direito será ciência, dinstinguindo-se da política, e somente assim distinguir-se-á uma decisão jurídica de decisões políticas ditadas pela conveniência e pela oportunidade.

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Sobre os autores
Geziela Jensen

Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Membro da Société de Législation Comparée (SLC), em Paris (França) e da Associazione Italiana di Diritto Comparato (AIDC), em Florença (Itália), seção italiana da Association Internationale des Sciences Juridiques (AISJ), em Paris (França). Especialista em Direito Constitucional. Professora de Graduação e Pós-graduação em Direito.

Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JENSEN, Geziela ; SGARBOSSA, Luis Fernando. As opções políticas do Estatuto de Roma e seu impacto em relação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1152, 27 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8849. Acesso em: 23 abr. 2024.

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