Seguro internacional de transporte de carga: o segurador sub-rogado, o ressarcimento e a insubmissão ao contrato de transporte

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11/02/2021 às 12:10
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Tema importante para o ressarcimento em regresso, seguro de transportes, envolvendo muitas disciplinas ao mesmo tempo: Civil, Seguros, Marítimo e Processual Civil.

Seguro internacional de transporte de carga: o segurador sub-rogado, o ressarcimento e a insubmissão ao contrato de transporte

 

 

 

 

Ao pagar a indenização de seguro, o segurador se sub-roga nos direitos e ações do segurado e passa a ter o direito de buscar o ressarcimento em regresso contra o causador do dano. Esse direito, que é também um dever[1],está fundamentado no art. 786 do Código Civil: Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

Antes mesmo do atual fundamento legal, a sub-rogação habitava o ordenamento jurídico brasileiro; sua adaptação ao campo do seguro permitiu a edição da Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal: O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.

O enunciado foi aprovado durante a Sessão Plenária de 13-12-1963, e levava em consideração o art. 989 do então Código Civil, de 1916, com a seguinte dicção: Na sub-rogação legal o sub-rogado não poderá exercer os direitos e as ações do credor, senão até à soma, que tiver desembolsado para desobrigar o devedor.

O atual Código Civil foi além: especificou bem a sub-rogação derivada do contrato de seguro, do pagamento da indenização pelo segurador ao segurado ou beneficiário.

São notáveis a importância que o legislador deu ao instituto e o desejo que teve de protegê-lo ainda mais. E não o fez à toa. A sub-rogação é importantíssima para a saúde do negócio de seguro exatamente por abrir espaço para o ressarcimento em regresso, que é imprescindível para conservar parte da ordem social.

Exagero afirmá-lo?

Nem um pouco. O ressarcimento em regresso impacta direta e positivamente na sociedade, porque seu êxito repercute na precificação dos seguros, e assim os torna mais interessante ao olhar dos segurados. Além do que, por questões de justiça e harmonia social, e para que da previdência dos outros não surja a folga de um benefício indevido, é sempre necessário que o causador do dano repare os prejuízos integralmente a quem de direito.

Há, portanto, inegável função social no ressarcimento, de tal modo que não é devida qualquer interpretação do Direito que diminua de algum modo sua efetividade.

Proteger o ressarcimento em regresso não é proteger apenas o interesse dos seguradores, mas também e principalmente os dos segurados. Por força do princípio do mutualismo, o colégio de segurados é o verdadeiro beneficiário do ressarcido, o que amplia ainda mais sua importância.

E quando se protegem os segurados, protegem-se a integralidade do negócio de seguro e, pelas razões já expostas, toda a sociedade, ainda que indiretamente. E é exatamente essa proteção invulgar, amparada em princípios fundamentais do Direito, que aqui se advoga, de modo muito específico, considerando a amplitude do negócio e do Direito do Seguro. Por isso escolhi falar do ramo do seguro de transporte internacional e da dinâmica do ressarcimento que lhe é peculiar.

Pelo contrato de transporte, diz o art. 730 do Código Civil, alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas. A definição legal é de uma clareza que dispensa maiores comentários.

Interessa, aqui, o transporte de coisas.

Considerando os riscos implícitos ao ato de transportar, existe um seguro específico para a proteção dos legítimos interesses dos donos de cargas[2]. Trata-se do seguro de transportador, também conhecido – nem sempre da maneira mais apropriada[3] – como seguro do embarcador.

O seguro de transporte, explica a SUSEP – Superintendência de Seguros Privados, é aquele que garante ao segurado uma indenização pelos prejuízos causados aos bens segurados durante o seu transporte em viagens aquaviárias, terrestres e aéreas, em percursos nacionais e internacionais. A cobertura pode ser estendida durante a permanência das mercadorias em armazéns.[4]

Todo modo de transporte se ajusta ao seguro. Contudo, para os fins deste estudo, ganha especial atenção o transporte marítimo. Pois é o que gera maior quantidade de polêmicas judiciais. É bem verdade que o transporte aéreo internacional se vê no palco de recentes discussões acaloradas — mas dele, sem prejuízo do que se disser à frente, trato com maior detalhamento em outra ocasião.

Evidentemente que, ao se tratar do seguro de transporte marítimo internacional, trata-se da responsabilidade civil do transportador. Caracteriza-se o transporte marítimo internacional de cargas pela locomoção de coisas em embarcações por mares e oceanos, a chamada navegação de longo curso.

Embarcada, a coisa é transportada de um ponto a outro. (ou, mais especificamente, de um porto a outro, independentemente da modalidade de contratação de venda e compra internacional, Incoterms). Compete ao transportador anotar qualquer problema com os bens antes do embarque. Se não o faz, contra ele surge uma presunção de responsabilidade em caso de sobrevir falta ou avaria de carga.

Essa presunção data da época do Império; regulava-a o Código Comercial de 1850, ainda parcialmente em vigor.

A parte que tratava da obrigação de transporte foi revogada pelo Código Civil atual, mas durante muito tempo vigeu sob o título “Dos Condutores de Gêneros e Comissários de Transportes” (Capítulo VI, artigos 99 a 118).

Essas regras se alinhavam a outras, ainda em vigor: o Decreto 2.681, de 7-12-1912, que regula a responsabilidade civil das estradas de ferro e que, por ampliação jurisprudencial, incide sobre os transportadores em geral; o Decreto-lei 116, de 25-1-1967, que dispõe sobre as operações inerentes ao transporte de mercadorias por via d'água nos portos brasileiros, delimitando suas responsabilidades e tratando das faltas e avarias.

Essas regras convivem bem com a Parte Especial do Código Civil, que, em sua Seção III, disciplina o contrato de transporte de coisas (do art. 743 ao art. 756). Amolda-se essa convivência ao conceito de diálogo das fontes[5], impondo ao transportador um regime jurídico bastante rigoroso.

Diante do caráter internacional do transporte de carga em exame, é mais do que legítimo indagar sobre as convenções internacionais.

Elas vigem e projetam efeitos no Brasil?

Depende.

No modo aéreo, sim. A Convenção de Montreal, que praticamente bisou a de Varsóvia, se põe como fonte normativa das disputas envolvendo problemas com transportes internacionais[6].

Já no modo marítimo, um simples e retumbante — não. Nenhuma convenção internacional de Direito Marítimo se incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro. O que, curiosamente, faz com que o país tenha um dos melhores sistemas jurídicos do mundo para tratar o assunto. Talvez o melhor.

Como qualquer outro transportador de carga, o marítimo, também nos contratos internacionais, se submete ao inteiro teor do art. 749 do Código Civil[7], a enunciar o dever geral de cautela, componente do rol de deveres e protocolos que o transportador deve sempre observar e adotar. Há, entre esse dever e o que se entende por cláusula de incolumidade, uma intimidade profunda. E tanto um como outra integram a Lex Ars dos transportadores.

Por Lex Ars (ou Lex Artis) entende-se o conjunto de normas, atos, procedimentos informadores e imprescindíveis para o desenvolvimento eficaz de uma dada atividade. Quanto mais alguém se distancia da que no exercício de sua atividade se dispôs a cumprir, mais se afunda no terreno da responsabilidade civil.

Do transportador se exigem todas as cautelas necessárias para manter a coisa confiada em bom estado, cabendo-lhe entregá-la ilesa no lugar de destino e a quem de direito. Eis o parâmetro central do dever geral de cautela e da cláusula de incolumidade. Ignorá-lo faz do transportador civilmente responsável. E independentemente de culpa: sua responsabilidade é objetiva.

O transportador marítimo, como todo transportador, é devedor de obrigação contratual de resultado. Sendo assim, o mero descumprimento da obrigação lhe impõe a presunção legal de responsabilidade.

O Decreto 2.681/12, o Decreto-lei 116/67 e o Código Civil, no art. 750[8], tratam da responsabilidade objetiva do transportador marítimo de carga, respeitando longa tradição jurídica brasileira, inaugurada formalmente com o Código Comercial, cuja parte revogada ainda influencia a compreensão do tema.

Tradição reverberada pela doutrina e pela jurisprudência. Praticamente nenhuma voz importante da doutrina coloca em dúvida que o contrato de transporte encerra obrigação de resultado, ao tempo em que a jurisprudência, em uníssono, reconhece do descumprimento imotivado dessa obrigação a mais objetiva responsabilidade.

Quis o legislador impor ao transportador um regime jurídico de tão acentuado e correto rigor que não hesitou em equipará-lo ao depositário. Equiparação que consiste em exigir do transportador os deveres objetivos de guarda, conservação e restituição.

Isso data de longe, mas ganhou um vigor novo com o Código Civil de 2002, cujo art. 751 expõe: A coisa, depositada ou guardada nos armazéns do transportador, em virtude de contrato de transporte, rege-se, no que couber, pelas disposições relativas a depósito.

A ratio legis enfatiza a gravidade da responsabilidade do transportador, a natureza objetiva da sua responsabilidade e a inafastabilidade do dever de reparação integral em caso de dano.

Tanto o objetivo foi o de agravamento que, ao dizer que em caso de dano da coisa guardada no armazém do transportador aplicam-se, no que couber, as regras relativas ao depósito, o legislador sugere que seu objetivo é proteger e beneficiar a vítima, não o lesador. Por isso que nem se cogita a incidência do prazo trimestral prescricional que favorece os depositários  — e mesmo assim sob muita controvérsia, tendo em vista a teoria tridimensional do Direito[9] —, pois a expressão “no que couber” exclui de pronto essa disposição, dado o manifesto prejuízos aos legítimos interesses do dono da carga ou do segurador sub-rogado.

Somente as disposições que, próprias ao depositário, endureçam a situação do transportador cabem e importam para a ampla defesa da vítima, o credor insatisfeito da obrigação de transporte. Eis a responsabilização objetiva do transportador que não cumpre o que contratualmente assumiu.

Interessante dizer que, mesmo que não houvesse um sistema legal rigoroso como o que há, a responsabilidade objetiva subsistiria, porque todo transportador, especialmente o marítimo, se vê na condição de manejador de fonte de risco. Desde a Segunda Guerra Mundial, a ideia de manejo de fonte de risco tem desenvolvido o Direito, no sentido de imputar ao protagonista a força da responsabilidade objetiva.

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Então, o transportador não responderá objetivamente pelos danos causados apenas por ser devedor de obrigação de resultado ou alguém comparado em quase tudo ao depositário, mas também por operar riscos. Novamente invocando a teoria do diálogo das fontes e o sistema legal brasileiro, chama-se à cena o art. 927, parágrafo único, do Código Civil[10], que expressamente, determina a todo aquele que atua imerso em riscos a responsabilidade independente de culpa.

A presunção legal somente será afastada se houver, pelo implicado, mediante inversão de ônus, prova cabal da ocorrência de alguma das causas legais excludentes: força maior, caso fortuito, vício de embalagem ou da coisa.

Em outras palavras: o acervo legal brasileiro dispõe, com formidável transparência, que em caso de descumprimento da obrigação de transporte, será o transportador imediatamente responsável; e para deixar de sê-lo, compete-lhe provar a existência de alguma causa que legalmente exclua dele esse dever de reparar.

Diante desses argumentos, agasalhados pela jurisprudência, há que se ter especial cuidado com a interpretação de cláusulas do contrato internacional de transporte marítimo de carga.

Esse contrato é evidenciado pelo Conhecimento Marítimo, conhecido pela expressão, em inglês, Bill of Lading (B/L).

O conhecimento marítimo é emitido unilateralmente pelo transportador marítimo, o devedor da obrigação contratual, sem que haja a livre manifestação de vontade do embarcador ou do consignatário da carga. Dois atores da relação contratual que não externam sua vontade, apenas aderem ao clausulado que o transportador lhes impôs. Daí dizer que, além de obrigação de resultado, o contrato de transporte é tipicamente de adesão.

E como todo contrato de adesão, a leitura do clausulado há de ser calibrada, atenciosa e feita à luz do ordenamento jurídico como um todo. As cláusulas típicas de dirigismo contratual, assimétricas, que concedem benefícios excessivos a uma das partes e ônus pesados à outra, ou às outras, não podem ser tidas como válidas e eficazes.

Fala-se, aqui, de cláusulas abusivas que não raro, mais do que inválidas e ineficazes, são nulas de pleno direito.

Mesmo sem se remeter à legislação consumerista, tradicionalmente o Direito no Brasil se opõe ao abuso contratual e coíbe com firmeza as normas incompatíveis com seu sistema. O famoso brocardo “o contrato faz lei entre as partes” é verdadeiro, sem dúvida. Mas contém uma sentença importante que se segue aos dois pontos: (...) desde que não fira a própria lei.

Inadmissível é, por exemplo, a norma contratual que determina a limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo, pouco importando a existência ou não, no caso concreto, da declaração de valor da carga no instrumento contratual[11].

Quem causa o dano tem que o reparar integralmente. A reparação integral do dano é um princípio jurídico e moral. No Brasil, encontra-se isso previsto no art. 944, caput, do Código Civil (Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.) e, ousa-se, aqui defender, no rol exemplificativo do art. 5º da Constituição Federal, incisos V e X.

O inciso V determina “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;”. Esta garantia fundamental não se limita ao direito de resposta, mas se espalha aos direitos em geral.

O mesmo se diga em relação ao inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”; 

Assim, pode-se afirmar que a reparação civil ampla e integral é garantia constitucional fundamental também imposta ao transportador que, descumpridor do próprio dever, desrespeita a obrigação de resultado assumida, causando danos ao dono da carga ou ao segurador sub-rogado.

A cláusula contratual que ele mesmo determina, unilateralmente, de forma abusiva, é ilegal, sem dúvida alguma, mas também é inconstitucional. A vítima do dano não pode ver seu direito – de índole constitucional – substancialmente esvaziado, apequenado, por uma disposição contratual adesiva que nada contra a maré da hodierna visão do Direito. A situação se torna ainda mais ilegal e inconstitucional quando aquele que busca a reparação (o ressarcimento) não é a vítima do dano diretamente, mas o segurador sub-rogado.

Pelos motivos já expostos, logo no início deste artigo, a sub-rogação e o ressarcimento têm que ser preservados, especialmente protegidos.

Não é justo, nem moralmente ordenado, portanto, que o segurador sub-rogado não obtenha o ressarcimento integral do prejuízo indenizado ao dono da carga por causa de disposição de um contrato do qual não foi e é parte.

Para lá da natureza abusiva da cláusula de limitação de responsabilidade, tem-se que o segurador sub-rogado não deve se submeter ao seu conteúdo simplesmente por não integrar polo algum da relação contratual de transporte.

O direito do segurador não deriva do inadimplemento da obrigação de transporte, mas do adimplemento da obrigação de seguro.

Direito que nasce com o ato previsto no art. 786 do Código Civil (Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.) e que, convém repetir, tem duplo interesse social: por parte do mútuo, o conjunto dos segurados, e por toda a sociedade, ainda que indiretamente.

A partir do momento que indeniza o dono da carga, o segurador, sub-rogando-se, passa a ter o direito-dever de buscar o ressarcimento em regresso, integral aliás, segundo os ditames do negócio de seguro, não os do contrato de transporte.

Repita-se por necessário, ao estilo de jaculatória: ao pretender o ressarcimento em regresso do que pagou ao dono da carga, o segurador sub-rogado não o faz amparado no Direito de Transportes, mas no Direito de Seguro, de tal forma que não se submete a qualquer disposição contratual que lhe fuja à alçada.

Ainda que a cláusula de limitação de responsabilidade fosse válida e eficaz em relação do dono da carga – e sabido e ressabido que não é – o segurador não se curvaria ao seu conteúdo por não ser parte do contrato de transporte. O que, além de ter o apoio da lógica, é fundamentalmente legal.

O §2º do art. 786 é taxativo em dispor: É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo. Diante da redação legal não cabe qualquer afirmação diferente desta: a limitação de responsabilidade fere de morte a dignidade do ressarcimento integral previsto em lei e imprescindível à saúde do negócio de seguro, razão pela qual não é oponível ao segurador sub-rogado.

Tudo isso se afirma, porém, como argumento de reforço, haja vista que a cláusula não é um ato voluntariamente praticado pelo segurado, mas imposto unilateral e abusivamente pelo transportador. E o que não é válido ao dono da carga, muito menos o é ao segurador sub-rogado.

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo disse: “(...) a apelante veio a juízo pleitear direito próprio decorrente do contrato de seguro (fls. 48/63) e não de contrato de transporte marítimo que possui cláusula de compromisso arbitral” e que “A sub-rogação da seguradora não é do mesmo direito material que emerge do contrato de transporte marítimo, mas sim do contrato de seguro”.[12]

É evidente que a cláusula de limitação de responsabilidade imposta pelo transportador marítimo não se aplica ao segurador sub-rogado, como, aliás, sequer se aplica ao próprio dono da carga.

A mesma força de argumentação que se empregou ao caso da limitação de responsabilidade se emprega a cláusulas que impõem “eleição de foro estrangeiro” ou “compromisso arbitral”.

As expressões não foram postas entre aspas à toa. As aspas, essas agressoras da estética do texto, às vezes convêm para uma ironia carregada de catequese.

Verdadeiro absurdo falar em eleição ou em compromisso em cláusulas unilateralmente impostas pelo transportador, completamente despidas de exteriorização de vontade livre pelo embarcador ou pelo consignatário.

A voluntariedade é condição inafastável para a escolha de foro estrangeiro ou de arbitragem. Sem aquela, estas não podem subsistir, sob pena de ofensa à garantia fundamental constitucional de acesso à jurisdição. É violência jurídica gravíssima validar uma cláusula que simplesmente força, sem anuência prévia, expressa e formal, foro estrangeiro ou arbitragem.

Violência jurídica porque não existe renúncia tácita de jurisdição. Sim, é possível – em se tratando de direitos patrimoniais disponíveis e de obrigações contratuais – alguém renunciar a sua jurisdição em favor do foro estrangeiro e/ou da arbitragem, porém há que se ter a voluntariedade como condição informadora.

Sem a voluntariedade, o vício resulta insanável; e fica impossível apreciar as cláusulas respectivas. Daí se falar em abusividade, invalidade e ineficácia, enfim, ilegalidade. Ou até mesmo: nulidade e inconstitucionalidade. A cláusula que impõe arbitragem (ou foro estrangeiro) sem anuência desimpedida do dono da carga é absolutamente antijurídica.

Então, o que se tem é a certeza que a cláusula é abusiva em relação ao contratante ou ao beneficiário do serviço de transporte. E que se diga bem claramente que sequer é necessário o apoio das regras consumeristas para afirmá-lo. Não! Bastam as de Direito Processual Civil, as de Direito Civil e, sim, também as de Direito Constitucional.

A elas se adicionem ainda as de Direito do Seguro, junto de mais uma afirmação, convicta e jurisprudencialmente amparada: o segurador sub-rogado não se submete ao clausulado do Bill of Lading (muito menos do contrato de afretamento) que impõe unilateralmente a arbitragem (ou o foro estrangeiro).

As mesmas razões expostas para o caso da cláusula limitativa de responsabilidade são apresentadas para a de arbitragem ou de foro estrangeiro.

Razões que melhor se compreendem por meio de uma pergunta que em si mesma apresenta a resposta: pode quem não é parte do contrato ser obrigado a cumprir disposições especialmente onerosas que constam dele?

Ora, se a cláusula é abusiva ao contratante, ao dono da carga, ao credor da obrigação de transporte, tanto mais será ao segurador sub-rogado que, nunca é demais repetir, não é parte no contrato de transporte.

Também não é ocioso insistir o direito do segurador nasce com o pagamento da indenização de seguro, não com o descumprimento do contrato de transporte. Os fundamentos legais do direito do transportador são o art. 786 do Código Civil[13] e a Súmula 188 do Supremo Tribunal[14] Federal, nada além, nada aquém.

De tal maneira que poderá o segurador invocar as regras do Código Civil que dispõem sobre o contrato de transporte e a responsabilidade civil do transportador, bem como aquelas mais gerais sobre atos ilícitos e responsabilidades, como as dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil[15], mas será nas de Direito do Seguro que amparará sua pretensão contra o causador do dano, o autor do ato ilícito que gerou o pagamento de indenização.

Também por isso que se mostra errada a interpretação do Direito com o fim de obrigar o segurador a se submeter aos termos do contrato do qual não foi ou é parte, e que nunca, jamais se transmitem pela sub-rogação.

Duas coisas sobre o artigo 786 têm que ser expostas com muita firmeza: a primeira diz respeito ao fato de a sub-rogação só alcançar direitos e ações, jamais deveres e ônus; apenas aspectos materiais do crédito, jamais pactos procedimentais ou condições personalíssimas. E a segunda, a ineficácia de qualquer ato praticado pelo segurado que de algum modo prejudique o pleno exercício do direito de regresso.

O texto do art. 786 é o melhor argumento em favor da primazia absoluta do ressarcimento e da proteção à substancialidade do negócio de seguro. A transferência apenas de direitos materiais, do valor da indenização isento de escolhas derivadas da vontade do segurado, é modo eficaz de garantir que nenhum sobressalto formal inibirá a saúde da sub-rogação do segurador. A ineficácia de qualquer ato praticado pelo segurado eventualmente prejudicial ao ressarcimento é a apoteose mesma do instituto.

Se nem mesmo um ato legalmente praticado pelo segurado é o bastante para prejudicar a efetividade do ressarcimento, quiçá um ato que o segurado não praticou, mas foi forçado por terceiro a praticar, ao arrepio da sua mais livre vontade e eivado de mais clara antijuridicidade.

A proteção ao ressarcimento interessa a toda a sociedade, e muito tem a ver com a fluidez do direito contemporâneo, a perpétua busca por justiça e o respeito ao assoalho moral. Proteção ao ressarcimento é proteção à vítima do dano.

Não pode o segurador se submeter às disposições de um contrato do qual não foi parte, especialmente quando em prejuízo da dignidade da sub-rogação, ou aproveitando-se de uma visão deste instituto que não é a da tradição brasileira, por fim vem opor-se aos legítimos interesses do mútuo, isto é, da sociedade.

 

 

Desenho preto e branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado, Especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), Mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Brasileira de Seguros e Previdência, diretor jurídico do Clube Internacional de Seguros de Transportes, membro efetivo da AIDA – Associação Internacional de Direito de Seguro, do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da IUS CIVILE SALMANTICENSE (Universidade de Salamanca), presidente do IDT – Instituto de Direito dos Transportes, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), autor de livros de Direito do Seguro, Direito Marítimo e Direito dos Transportes, pós-graduado em Formação Teológica pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Ipiranga), hoje vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos. Laureado pela OAB-SANTOS pelo exercício ético e exemplar da advocacia. Professor de cursos modulares da ENS (em parceria com o CIST) sobre seguros, logística e transportes (tema: avaria grossa).

 

 

 

Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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