Por Kepler Gomes Ribeiro
Juiz Federal
Mestre em Ciências Jurídico-Políticas (Ambientais) – Universidade de Lisboa
Pós-Graduado em Direito Constitucional
E-mail: [email protected]
RESUMO
O objetivo que se pretende alcançar através do presente trabalho circunscreve-se à descrição de métodos de que se deve valer o Poder Público para que a atuação estatal alcance os ideais e respeite os valores normativamente dispostos em um Estado Democrático e Constitucional de Direito; procurando demonstrar o quanto qualitativamente foi e quanto ainda precisa ser modificada a forma de atuação do Poder na era do Constitucionalismo Moderno, sob o enfoque do respeito às balizas de Juridicidade e de Legitimidade no campo dos processos decisórios de cada uma das funções típicas do Poder do Estado.
Palavras-chave: Constitucionalismo, juridicidade, legitimidade, processos decisórios.
INTRODUÇÃO
Atravessada a nefasta era do legalismo extremado e desvinculado dos ideais de justiça e de equidade; bem como já amadurecida a convicção jurídico-científica a respeito da normatividade dos princípios catalogados no âmbito das constituições e dos tratados internacionais de direitos humanos; passa a ser mister da Ciência Jurídica se debruçar, com mais cadência e profundidade, sobre os desdobramentos deste novo paradigma na atuação do Poder Estatal.
O Estado, antes guiado pelos contornos precisos e nem sempre justos da Lei, passa a se pautar em valores constitucionais consagrados através de princípios fundamentais, os quais, enquanto texto, somente mediante interpretação e análise concreta podem se tornar norma[1].
Neste contexto, procurar-se-á traçar, nestas singelas linhas, o trilhar que o Estado Democrático de Direito percorreu até seu atual estágio, pincelando-se os avanços obtidos nesta trajetória, e o quanto ainda necessita aperfeiçoar com incremento substancial do componente democrático no processo decisório.
Sumariamente, pretende-se aclarar que, associado à perspectiva da necessidade de segurança jurídica, deve o Estado ser um ator promotor da devida abertura do círculo de intérpretes, de modo a propiciar uma evolução qualitativa da interpretação normativa do nominado Bloco de Constitucionalidade, com todos os consectários positivos que a Democracia Participativa tende a proporcionar para o seio da própria sociedade.
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TRAJETÓRIA HISTÓRICA RUMO AO ESTADO DEMOCRÁTICO E CONSTITUCIONAL DE DIREITO
A brevidade que se busca dar em um ensaio como o presente não permite serem tecidos comentários que remontem ao surgimento do Estado contemporâneo. No entanto, indispensável é se fazer uma apressada apresentação das passagens históricas verificadas nos últimos séculos no cenário global, notadamente as ocorridas no continente europeu, para que se torne possível a compreensão do estágio atual do constitucionalismo.
Percorrendo este trilho histórico, constata-se que, após o período medieval, deu-se uma extremada concentração de poderes nas mãos de um só homem, o governante do Estado. Nesta fase do Estado pré-moderno, o príncipe, como absoluto soberano, possa a possuir poderes plenos para legislar, executar e julgar tudo e a todos[2].
Nesta etapa do desenvolvimento, denominada Estado de Polícia, o direito praticamente não exercia nenhum papel relevante para a sociedade ou mesmo para o Estado, já que o governante detinha poderes absolutos, não estando submetido a qualquer ordem jurídica[3].
No referido instante da História, pode-se dizer que a expressão “ato discricionário” significava ampla possibilidade de arbítrio, sem que houvesse nada que pudesse impedi-lo, já que não havia nada que limitasse a atividade administrativa[4].
Triunfantes, enfim, os ideias libertários advindos das Revoluções Liberais, notadamente a Francesa, nasce o Estado de Direito, inicialmente na sua acepção liberal[5]. O Estado Liberal somente tinha o dever de assegurar a ordem pública e de se abster de interferir na vida dos indivíduos. A idéia era a de que, quanto mais distante, melhor seria o Estado[6].
O desejo de submeter a Administração Pública e seus administradores à vontade popular fizeram com que, em primeiro momento, fosse exaltado o Princípio da Legalidade[7] acima de qualquer outro, já que a lei conteria a real manifestação do povo.
Ocorre que o passar dos tempos demonstrou que a lei nem sempre representa os reais anseios do corpo social, de forma que um Estado adstrito somente à letra da lei, avesso a qualquer tipo de valor ou princípio, acaba por se sujeitar às vontades de maiorias sazonais, detentoras momentâneas do Poder Político[8]. A prova maior do desastre de um Estado baseado puramente na Legalidade é verificada no Holocausto redundante da 2ª Grande Guerra[9].
Justamente a Alemanha, ultrapassada a vergonhosa era nazista, procurou construir um novo modelo de Estado, em que se prestigiassem, sobretudo, os valores mais cultivados pela sociedade[10], com respeito às minorias e em plataforma de inclusão.
Nasce, com a Lei Fundamental de Bonn de 1949, o Estado Constitucional de Direito[11]. A Constituição passa a ser o elemento-chave de todo o ordenamento jurídico, justamente por nela estarem contidos todos os princípios nutridos por aqueles a quem ela se dirige, sendo transportados para o corpo constitucional os direitos fundamentais do Homem, primordialmente sob forma de princípios constitucionais, agora encarados como verdadeiras normas jurídicas,[12][13].
A submissão da Administração passa ser à Lei e ao Direito; o controle dos atos estatais passa a ser não mais apenas sob o crivo da legalidade, mas sim da juridicidade e de legitimidade[14][15].
2. ESCALADA DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO:
DO JUSNATURALISMO AO PÓS-POSITIVISMO
À época do jusnaturalismo, os princípios serviam basicamente como inspiração de ideais de equidade e de justiça, sendo sua normatividade praticamente inexistente[16][17].
Com o florescer do Estado Legal de Direito, os princípios passam a ter o papel unicamente de servir como fonte subsidiária, utilizados somente quando da ausência de previsão legal expressa sobre um determinado assunto[18]. Reinava, em tal período, o Positivismo Jurídico, o qual fazia dos princípios – mesmo os constitucionais – meras pautas programáticas sem qualquer imperatividade ou força normativa[19].
Vivenciado o insucesso de um Estado desprovido de qualquer compromisso com os valores básicos do ser humano[20], passa a Humanidade a entrar em consenso no sentido de que a Constituição dever ser o vértice do ordenamento; sendo indispensável que nela se encontrem todos os valores fundamentais de uma sociedade, valores estes inseridos na Carta em forma de princípios, os quais passam a ter status de norma jurídica.
Estar-se, pois, na Era do Pós-Positivismo[21]. Nesta nova fase, não mais se discute a normatividade dos princípios. Norma, agora, subdivide-se em regras e princípios[22]. Os princípios constitucionais passam a ser encarados como normas concretas e aptas a serem aplicadas no mundo dos fatos; sendo que possuem o diferencial de servirem de substrato para função interpretativa e construtiva do Direito, justamente devido a sua hegemonia axiológica irradiante dentro do ordenamento jurídico[23][24].
3. MUTAÇÕES NO PROCESSO DECISÓRIO DO PODER PÚBLICO DECORRENTES DO PÓS-POSITIVISMO:
3.1. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO INFRACONSTITUCIONAL: FILTRAGEM CONSTITUCIONAL
Inseridos na Constituição todos os valores e princípios fundamentais, passa-se a se ter a necessidade de um novo modelo de interpretação, em que toda e qualquer exegese jurídica torna-se também uma exegese constitucional.
Em virtude da supremacia formal e material da Constituição, todo o restante do ordenamento jurídico passa a buscar na Constituição seu fundamento de validade, seu substrato de legitimidade; com realce de importância para o papel do juiz, o qual passa a ter função primordial na constatação da constitucionalidade dos atos praticados pelo Estado[25].
O intérprete não tem como objeto de trabalho somente a Constituição ou uma Lei em si. Seu desiderato também é o de verificar se as normas infraconstitucionais possuem conformidade material em relação à Carta Política[26]. O que se convencionou chamar de filtragem constitucional consiste exatamente em se cotejar as disposições de um regramento infraconstitucional frente aos ditames contidos na Constituição[27].
Diante de tais considerações é que se verifica a necessidade de se reler todos os velhos conceitos e cânones dos diversos ramos do Direito – antes tidos como absolutos –, os quais podem não passar intactos diante dos novos valores constitucionais tidos como indispensáveis pela sociedade.
A partir de tais premissas, todas redundantes e inerentes ao constitucionalismo hodierno, buscar-se-á, a seguir, catalogar algumas mudanças sofridas por institutos e sobre o modo de atuar das instituições estatais, a partir do influxo do Pós-Positivismo.
3.2. DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PARA O PRINCÍPIO DA LEGITIMIDADE
Após os horrores que o Estado Legal permitiu ocorressem, a Humanidade se volta ao Constitucionalismo Democrático[28].
Passa-se, pois, a um modelo de Estado onde importa a justiça material, a razoabilidade e a conformação do agir estatal à ideia de respeito ao ser humano enquanto sujeito de direito perante o Poder Constituído[29].
Enaltece-se o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, impõe-se o respeito aos princípios fundamentais como coluna do sistema normativo, além de se incluir a participação popular nos processos decisórios do Poder Público[30].
Para além de legal, o ato estatal também deve ser justo, proporcional[31] e razoável[32], apto a atingir os fins constitucionais de modo tal que imponha o menor sacrifício possível aos diversos direitos consagrados na Carta Magna, com máxima efetivação possível em relação a cada um de tais direitos fundamentais[33]. Seja de que função estatal partir o ato deve se alinhar a este ideal valorativo, disposto em princípios os quais são a verdadeira alma das Constituições[34].
3.3. DIFERENCIAÇÃO ENTRE INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO E INTERESSE PÚBLICO SECUNDÁRIO
Outra mudança verificada se deu quanto ao conteúdo jurídico do princípio da Supremacia do Interesse Público, que passa, no contexto do Constitucionalismo Pós-Positivista, a ser distinguido entre Interesse Público Primário e Interesse Público Secundário[35].
O Princípio da Supremacia do Interesse Público passa a ser lido como instrumento de proteção das liberdades individuais, tão valorizadas no Estado Liberal[36]; e a partir do Estado Social Democrático de Direito, através do qual se dá uma notória humanização do direito administrativo, passa o interesse público a significar bem comum[37].
Ao professor Renato Alessi[38], credita-se a teoria que passa a distinguir os interesses públicos primário e secundário. Para o mestre, o interesse primário seria aquele efetivamente coletivo, formado pelo conjunto de interesses individuais preponderantes em determinada organização jurídica da coletividade. Já o secundário seria aquele voltado para o aparelhamento da Administração, a fim de que esta atinja seus fins.
De acordo com tal diferenciação, preconiza-se que, em caso de conflito de interesses primário x secundário, o primeiro há de prevalecer sobre o segundo, exatamente em razão de o interesse público primário corresponder ao efetivo interesse coletivo[39].
Sendo, portanto, esta diferenciação mais uma das mudanças de paradigma verificadas no processo decisório do Poder Estatal, devendo ser guia decisivo no processo de tomada de decisão pelo Poder Público.
3.4. DA IMPERATIVIDADE PARA A CONSENSUALIDADE
Valorizando o ser humano, o Direito passa a se voltar para o cidadão, já que o fim maior do Poder Público é tornar efetivos os direitos fundamentais dispostos na Carta Política.
Neste contexto, a imperatividade dos atos públicos administrativos começa a sofrer mitigação em decorrência da crescente participação popular[40] nos processos decisórios da Administração.
O ato administrativo, que antes era totalmente formado em gabinetes do Poder Público, e que imperava unilateralmente sem que a sociedade pudesse emitir qualquer opinião prévia a respeito, passa agora a ser tomado juntamente com o corpo social[41].
Sendo crescente o número de audiências e consultas públicas realizadas durante processos públicos, onde a comunidade passa a emitir opiniões, sugestões e críticas, no sentido de contribuir para que o melhor agir estatal.
O ato administrativo, de imperativo, vem se tornando consensual, vez que os envolvidos (Estado e Sociedade) passam a dialogar[42] no sentido de formar uma decisão harmônica, que venha a se fazer cogente de maneira mais legítima possível.
O consensualismo, além de significar a democratização, permite incrementar a própria eficiência do aparelho estatal, pois a tendência é que o ato emitido reflita os verdadeiros anseios da coletividade[43].
Sendo esta mudança de paradigma digna de nota, justamente por sua substancial importância para a vitalidade da democracia, configurando-se um dos traços marcantes da contemporaneidade no mundo das ciências sociais, políticas e jurídicas.
3.5. REDUÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
Com a principialização do Direito, o ordenamento jurídico passou a ser permeado dos chamados conceitos jurídicos indeterminados[44]. O fenômeno filosófico do giro linguístico aporta na Ciência Jurídica, notadamente nas Constituições, mediante a larga utilização expressões de conteúdo vago ou impreciso; estando repleto o ordenamento de expressões linguísticas que somente no caso concreto tornam-se normas mediante interpretação[45], das quais são exemplos os vocábulos: boa-fé, bem comum, interesse público, razoabilidade, e tantas outras.
A questão principal que se coloca é a de se saber se os tais conceitos jurídicos indeterminados conferem ou não discricionariedade ao administrador. Para uma corrente, eles não confeririam nenhuma discricionariedade, já que o aplicador da legislação, ao interpretá-los, encontraria uma só solução válida para um dado caso, a significar que ato seria vinculado[46].
Já outros entendem que os conceitos jurídicos indeterminados proporcionam discricionariedade quando se tratar de um conceito de valor; ao passo que, se for um conceito técnico, não haveria qualquer margem de discricionariedade, mas sim vinculação[47].
O assunto é de primordial importância, porquanto diz respeito à possibilidade de controle judicial do ato administrativo. Ou seja, sendo caso de mera interpretação do conceito indeterminado, não haveria discricionariedade, logo poderia o Judiciário interferir sobre o ato proveniente do Executivo. Sendo caso de discricionariedade, não caberia controle pelo Judiciário, pelo menos dos aspectos estritamente de mérito[48].
Afinal, é possível afirmar que a ampla disseminação dos conceitos jurídicos indeterminados diminuiu consideravelmente a chamada discricionariedade administrativa. Quando implicam mera interpretação, ensejam uma única solução juridicamente possível, logo não haveria atuação discricionária e, por conseguinte, passível de controle judicial.
E mesmo que ensejem discricionariedade, ainda assim, os conceitos vagos não conferem uma “carta branca” para a Administração, já que a decisão também deverá estar em consonância com outros princípios jurídicos, tais como o da moralidade, do interesse público, da razoabilidade e de outros inúmeros princípios constitucionais[49][50].
Portanto, verifica-se ter havido uma diminuição do núcleo intangível do ato administrativo, sendo possível ao Judiciário aferir a conformidade do ato com os princípios estampados no sistema jurídico, mesmo quando o ato apreciado tenha sido tomado com base em conceitos jurídicos indeterminados. Nestes casos, sendo prática corrente o manuseio dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para verificação do acerto de um ato público administrativo no caso concreto, diante de suas respectivas circunstâncias[51][52].
3.6. CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Contemporaneamente, não se discute a possibilidade de controle jurisdicional de atos administrativos, com resguardo apenas do mérito, que ainda seria um campo a ser deixado incólume por parte do Judiciário, em respeito à Separação de Poderes[53].
Doravante, o tema a ser tratado será não mais a respeito do controle de ato administrativo, mas sim de controle do autêntico ato político, o que torna ainda mais delicada a discussão.
Desde a ascensão do Estado Constitucional de Direito, com a incorporação dos chamados direitos fundamentais de segunda dimensão/geração, verifica-se uma crescente demanda judicial tratando do assunto da aplicabilidade e executoriedade das normas constitucionais relacionadas aos direitos sociais, econômicos e culturais, e até mesmo de questões nitidamente políticas[54].
Superada a teoria da mera programaticidade de normas constitucionais que preveem direitos sociais, passou-se a haver um consenso em torno da normatividade de todas as disposições inseridas no corpo constitucional, em decorrência do que, os mesmos passaram a ser buscados em larga escala junto ao Poder Judiciário.
Em países em via de desenvolvimento, como é o caso do Brasil, há o sério problema da escassez de recursos orçamentários para fazer frente aos enormes flagelos ainda vivenciados pela sociedade, onde o déficit é de praticamente tudo: alimentação; habitação; saúde; saneamento básico; educação; etc.
Diante de tal situação, os Poderes Executivo e Legislativo elaboram Leis Orçamentárias as quais alocam a quantidade de recursos possíveis para os diversos setores correspondentes às atividades sociais do Estado. Entra aqui a questão tormentosa de quanto e quando pode o Judiciário controlar as chamadas políticas públicas. O embate entre o mínimo existencial e a reserva do possível está na ordem do dia.
O Judiciário, firmado nos direitos fundamentais, mormente valendo-se dos princípios da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade, passa a interferir nas decisões político-sociais tomadas pelos demais Poderes da República.
O Executivo, por sua vez, vale-se da nominada reserva do possível para justificar, muitas vezes, a ausência de prestação satisfatória de serviços públicos elementares, sustentando que o Judiciário não poderia fazer tal espécie de inserção ou interferência sem desprestigiar o princípio da Separação de Poderes.
Em meio a tal embate, toma-se partido pela possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas, sempre visando a satisfazer a dignidade da pessoa humana no caso concreto. Jamais poderá o Judiciário se furtar de promover o processo democrático e assegurar as conquistas dispostas na Constituição.
O princípio da razoabilidade devendo ser o norte na atuação do juiz, de modo a que possa saber em que medida pode interferir em atos políticos provenientes dos outros Poderes. O método da argumentação jurídica racional deve ser a máxima empregada[55].
Ter a noção do todo, da quantidade de recursos disponíveis ao Estado, da distribuição orçamentária já realizada pelo Executivo e pelo Legislativo, trata-se de assunto que não pode deixar de ser estudado e compreendido pelo julgador.
Somente tendo conhecimento global, poderá enxergar se houve ou não razoabilidade na destinação de recursos para um dado setor de serviços essenciais, de modo a ter uma atuação prudente e equilibrada para a consolidação das instituições democráticas e para o convívio equilibrado e harmônico entre os três Poderes do Estado[56].
3.7. ABERTURA DEMOCRÁTICA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO PROCESSO DECISÓRIO DO PODER ESTATAL
Entre os métodos de que se deve valer o Poder Público para que a atuação estatal alcance os ideais e respeite os valores normativamente dispostos em um Estado Democrático e Constitucional de Direito, a abertura procedimental à participação do componente social é da mais alta relevância; não se concebendo que o Poder Estatal seja um opressor da voz da sociedade[57].
Neste diapasão, imperiosa é a necessidade de que seja modificada a forma de atuação do Poder na quadra do Constitucionalismo Moderno, no qual as balizas de Juridicidade e de Legitimidade se mostram as mais relevantes em uma sociedade que ser reconhece plural, democrática e solidária[58]. Sendo uma necessidade a abertura do círculo de intérpretes, para a tomada de decisões fundamentais verificadas em âmbito dos processos legislativo, executivo ou judicial.
O Executivo, guiado pelo interesse público primário, pelo consensualismo e pela juridicidade, hoje depende fundamentalmente de abertura; necessitando promover o acesso à informação e proporcionar a participação social, a fim de que efetive a devida valoração na elaboração de políticas públicas e tome decisões que espelhem os anseios da sociedade.
Por sua vez, a função Legislativa, também norteada pelos parâmetros principiais e que, embora sendo a priori de cunho representativo, deve desenvolver a cultura de propiciar em máxima escala a participação direta do cidadão nos processos legislativos; com abertura interpretativa da Constituição, através de audiências e de consultas públicas, que cada vez mais aproxime o legislador do corpo social, em autêntico diálogo social[59].
E ainda, de acordo com a importância e fundamentalidade política do tema debatido, faça valer a utilização dos institutos do plebiscito e do referendo, conforme previsão constitucional; assim se legitimando o Legislativo no cotidiano do exercício de sua função típica, e não só a cada quadriênio quando submetido ao sufrágio eleitoral[60].
O Judiciário, de igual modo, sendo balizado pelos princípios do Constitucionalismo Democrático, deve se pautar pelos guias normativos dos valores substanciados nas Cartas Constitucionais e no Direito Internacional dos Direitos Humanos, buscando materializá-los em normas concretas de acordo com as situações contextuais e com possibilidades normativo-semânticas do texto, com abertura do círculo de intérpretes e segundo contornos que assegurem um processo decisório legítimo no campo hermenêutico[61].
Desse modo, o Estado estaria pondo em prática aquilo que Canotilho chamou de princípio democrático, para quem tal postulado somente estaria satisfeito presente a “democracia participativa, isto é, estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar dos processos de decisão, exercer controle crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos”[62].
Nesse sentido, o catedrático Peter Häberle pronuncia-se no sentido de que o método concretista da Constituição Aberta requer o alargamento do círculo de intérpretes; o conceito de interpretação como um processo aberto e público; e finalmente a Constituição tida como uma realidade constituída com a devida “publicização”[63].
Como bem complementa o professor David Duarte, da Universidade de Lisboa, dentre outras vantagens, a participação no processo decisório propicia a construção de consenso, o controle e transparência; ampliando as possibilidades de estancar conflitos[64].
E para que a abertura do círculo de intérpretes não dilua a normatividade e o sentido mínimo do texto escrito, deve o processo publico decisório guiar-se por critérios procedimentais que garantam objetividade e impessoalidade no momento de concretização das normas; pois, como ensina Bonavides[65], deve haver “um não afrouxamento da normatividade pelos órgãos constitucionais judicantes” em todo este processo.
Desse modo, o processo de abertura interpretativa deve estar associado aos parâmetros metodológicos da racionalidade decisória. Deve o intérprete guiar-se, assim, pela dogmática jurídica, com respeito às normas jurídicas, observando doutrina e jurisprudência, de modo que prevaleça o racionalismo guiado pelo substancialismo de valores democraticamente reinantes no ordenamento jurídico; observando sempre a integralidade do sistema de princípios[66]; e sempre atento às consequências práticas da decisão[67].
Em uma mão o princípio participativo, na outra o rigor de uma metodologia no raciocínio jurídico. Assim agindo, poderá o Estado-Juiz legitimar-se em atuação, já que, deste modo, permitirá o correto controle da racionalidade e de justiça do discurso desenvolvido no ato decisório.
Afinal, se os “juízes são obrigados a responder, em suas decisões, a controvérsias difíceis, as quais filósofos, cidadãos e estadistas debatem há séculos de história”, como adverte Dworkin[68], como então deixar de alargar o círculo de intérpretes no processo judicial?
Se “tanto o juiz como o administrador atuam como verdadeiros colegisladores”, segundo ensina Alexy[69]; ou se são “coautores de um romance em cadeia”, como diria Dworkin[70]; nada mais natural que dividam com a sociedade a árdua tarefa de interpretar do Direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em arremate, chega-se à constatação de que profundas são as consequências que o Constitucionalismo e o giro linguístico provocaram no horizonte jus-filosófico. Permeado de normas-princípio e de conceitos jurídicos imprecisos, o Direito, como Ciência, necessita estar fundado em premissas metodológicas que permitam, além da segurança para o sistema normativo, plena satisfação aos imperativos democráticos estabelecidos nas Constituições e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Da idéia de que Constituição, Democracia e Princípios sempre devem andar juntos e aglutinados, decorre uma série de desdobramentos que implicam mudança de paradigma no modo de atuar do Poder. Neste contexto, faz-se imprescindível que a Ciência Jurídica construa caminhos por onde deve andar o Estado Democrático de Direito, através dos quais possa o Poder Público tomar decisões alinhadas aos nortes normativo-constitucionais, os quais pressupõem abertura interpretativa, bem como segurança jurídica e metodológica.
Somente mediante a solidificação de um novo paradigma que alcance os processos decisórios do Poder, poderá o Direito do Pós-Positivismo e da Democracia Participativa deitar raízes e se radicar no atual contexto mundial, em que a sociedade demonstra ter anseio por maior envolvimento, maior informação e maior controle da atuação do Estado e dos respectivos processos de decisão.
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