1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como temática enfrentada a análise dos efeitos das tutelas de urgência antecipadas dentro das ações de fornecimento de medicamentos pelo Estado, bem como a análise dos entendimentos firmados pelos Tribunais Superiores e pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, bem como dos Juizados Especiais da Fazenda Pública da Comarca de Ponta Grossa/PR. Deste modo, analisar-se-ão o conceito dos direitos fundamentais, com maior enfoque no direito à saúde, com base na Constituição Federal, bem como o estudo da atuação do poder judiciário na promoção do direito fundamental à saúde no que tange o acesso aos medicamentos. Nesse sentido, analisou-se o posicionamento dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, com destaque aos Juizados Especiais da Fazenda Pública da Comarca de Ponta Grossa/PR, com a finalidade de verificar os precedentes fixados e os efeitos processuais que as decisões acerca das tutelas de urgência antecipadas possuem dentro dos processos que pleiteiam medicamentos em face do Estado.
2. Direito Fundamental à Saúde.
2.1. Conceito e recortes históricos dos direitos fundamentais.
O renomado constitucionalista José Afonso da Silva (2005, p. 175-6) ao tratar dos direitos fundamentais utiliza a expressão “Direitos fundamentais do homem”, pois a entende como a expressão mais adequada. Afirma que se referem aos princípios que resumem a concepção do mundo e a ideologia política de cada ordenamento jurídico, além de designar, dentro do direito positivo, as prerrogativas e instituições que ele prevê como garantias de convivência digna, livre e iguais a todos.
Explica que a qualificação “fundamentais” é essencial nas situações jurídicas vivenciadas pela pessoa humana, sem a qual essas não se realizariam; e que a qualificação do “homem” no sentido de pessoa humana, assim, “direitos fundamentais do homem” como direitos fundamentais da pessoa humana, título II da Constituição Federal de 1988 (SILVA, J., 2005, p. 177).
Tais direitos fundamentais estão positivados como normas, as quais possuem natureza constitucional na medida em que estão inseridas no texto de uma constituição ou apenas constem de simples declaração solene realizada pelo poder constituinte, ou seja, direitos nascidos e baseados no princípio da soberania popular (SILVA, J., 2005, p. 177).
Já em relação a sua eficácia e aplicabilidade, José Afonso da Silva (2005, p. 180) expõe que estes fatores dependem muito do seu enunciado, uma vez que está submetido ao direito positivo, como é o caso dos direitos sociais. Tais direitos estão enquadrados dentro dos direitos fundamentais, mas dependem de normas ulteriores para garantir sua eficácia e aplicabilidade, exemplo disso são as normas regulamentadoras do direito à saúde. Nesse sentido, afirma que apesar de a Constituição enquadrar os direitos fundamentais democráticos e individuais como direitos de aplicação imediata, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto os direitos econômicos e sociais são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta) (SILVA, J., 2005, p. 183-184).
A admissão de outros direitos e garantias fundamentais não enumeradas na Carta Constitucional é possível graças à previsão de seu §2º do art. 5º, “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (BRASIL, 1988)” (SILVA, J., 2005, p. 183-184).
Esses direitos fundamentais, no ordenamento jurídico brasileiro, são classificados com base no critério de conteúdo, referente à natureza do bem protegido e o objeto de tutela. São classificados em cinco grupos: “direitos individuais (art. 5º), direitos à nacionalidade (art. 12), direitos políticos (art. 14 a 17), direitos sociais (arts. 6ª e 193 e ss.), direitos coletivos (art. 5º), direitos solidários (arts. 3º e 225)” (SILVA, J., 2005, p. 183-4).
Tal classificação de direitos reflete a trajetória evolutiva dos direitos fundamentais do Estado Liberal ao Estado Constitucional Socioambiental, analisada por meio de gerações dos direitos fundamentais. Contudo, ressalta-se que essa evolução não ocorreu de forma linear, vez que muitas vezes os direitos de segunda geração estavam presentes com os direitos de primeira geração, mas que foram divididos para fins didáticos (SARLET, 2017, p. 501).
De acordo com Paulo Bonavides (2004, p. 563), os direitos de primeira geração são aqueles que garantem a liberdade, os primeiros a serem salvaguardados pelos instrumentos normativos constitucionais, como os direitos civis e políticos, característicos da fase inaugural do constitucionalismo ocidental. Se atualmente esses direitos estão pacificados nas codificações políticas, na realidade se moveram em um processo dinâmico e ascendente, com eventuais recuos, de acordo com os modelos das sociedades, sendo possível observar o mero reconhecimento formal desses direitos até a máxima concretização dentro dos quadros consensuais da efetivação democrática do poder.
Tais direitos têm por titular o indivíduo, sendo oponíveis ao Estado, evidenciando a faculdade e a possibilidade de resistência ou de oposição em relação ao Estado, ou seja, possuem uma característica de direitos negativos, exigindo uma conduta de abstenção do poder. Já os direitos de segunda geração, tomaram conta do século XX, são os direitos sociais, culturais e econômicos, ou seja, os direitos das coletividades, diretamente relacionados com o princípio da igualdade, germinando da reflexão antiliberal do século XX, introduzidos dentro das diversas formas de Estado Social (BONAVIDES, 2004, p. 564).
No entanto, os direitos de segunda geração passaram por um “ciclo de baixa normatividade” ante a sua eficácia duvidosa, integrando uma esfera programática, devido ao fato de não possuírem mecanismos processuais de garantia como aqueles existentes nos direitos de liberdade. Tal crise de credibilidade teve fim desde que novas Constituições, como a do Brasil, introduziram o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. Esses direitos além de garantir os direitos dos indivíduos e da sociedade como um todo, visavam salvaguardar também as instituições, destacando-se as garantias institucionais. Determinadas instituições obtiveram uma proteção especial, a fim de protegê-las da intervenção do legislador ordinário, exemplo de tais garantias são aquelas que permeiam o funcionalismo público, o magistério, a autonomia funcional dos magistrados, a proibição dos tribunais de exceção, entre outras (BONAVIDES, 2004, p. 565-6).
Outrossim, é de extrema importância ressaltar o nascimento de um novo conceito de direitos fundamentais, enquadrando o Estado como um agente de grande relevância na concretização dos direitos fundamentais de segunda geração (BONAVIDES, 2004, p. 567). Posteriormente, em meio a um mundo dividido entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, com a precária garantia dos direitos fundamentais, verifica-se a busca por outra dimensão de direitos fundamentais, que visam o “gênero humano”, decorrente da reflexão acerca do desenvolvimento, do meio ambiente, do patrimônio comum da humanidade e da paz (BONAVIDES, 2004, p. 569).
Já os direitos de quarta geração são os reflexos da “globalização política”, que correspondem a fase de institucionalização do Estado social, sendo estes o direito “à democracia, o direito à informação e ao pluralismo” (BONAVIDES, 2004, p. 571). No tocante às demais gerações de direito em relação aos direitos de quarta geração, o autor salienta (BONAVIDES, 2004, p. 572),
Os direitos da quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem – sem todavia, removê-la – a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais subida eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, o doutrinador conclui que os direitos de quarta geração evidenciam o futuro da sociedade civil, vez que apenas com a legitimação destes é possível legitimar a globalização política (BONAVIDES, 2004, p. 572).
Quanto ao direito à saúde, este está incluído na segunda geração de direitos, ou seja, na atuação positiva do Estado na realização de políticas públicas para garantia e efetivação de tal direito. Assim, o presente trabalho buscará conceituar o que seria tal direito fundamental, bem como a forma como está positivado no ordenamento jurídico brasileiro.
2.2.1. Direito à saúde
O direito à saúde está previsto no art. 196 e 197 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988):
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
De acordo com José Afonso da Silva (2005, p. 308-9), inicialmente o direito à saúde tinha mais relação com a “proteção da saúde” no sentido de organização administrativa no combate de endemias e epidemias e não como um direito do homem, o que veio ocorrer com a Constituição Federal de 1988. Consoante a isso, elucidou que o direito à saúde possui “duas vertentes”, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (1984 apud SILVA, 2005, p.309), “uma, de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenha de qualquer acto que prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa das doenças e o tratamento delas”.
Logo, no que tange à atuação do Estado na efetivação de tal direito, os arts. 198 a 2001, exigem uma atuação positiva do Estado, impondo aos entes públicos a realizações de políticas públicas, os quais são exigíveis por meio da ação de inconstitucionalidade por omissão (arts. 102, I, a, e 103, §2º), bem como a impetração do mandado de injunção ante a ausência de regulamentação (art. 5º, LXXI), apesar do STF entender que tal instrumento constitucional não tem função concreta na regulamentação desse direito (SILVA, 2005, p. 310).
Nesse sentido, a promoção do direito à saúde está diretamente relacionada com a realização de políticas sociais e econômicas, que deve ser promovidas pelo Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), consoante à previsão do art. 23, II, da Constituição Federal de 1988 [2]. Cumpre ressaltar que além da necessidade de se distribuir recursos para concretização do direito à saúde, que é escassa considerando os critérios distributivos, a evolução da medicina acaba por impor um caráter programático ao direito à saúde, pois a cada nova descoberta sempre surgirá novas necessidades (exames, procedimentos), uma nova doença a ser erradicada (MENDES; BRANCO, 2012, p. 903).
Essas políticas públicas visam reduzir os riscos de doenças e suas consequências, de forma a desenvolver um caráter preventivo, de acordo com o art. 198, II, da Constituição Federal de 19883. Assim, o constituinte estabeleceu um sistema universal de acesso aos serviços públicos de saúde, reforçando a responsabilidade solidária dos entes da federação, garantindo a igualdade da assistência à saúde (art. 7º, IV, da Lei n. 8.080/904), como foi o caso da quebra de patente de medicamentos para o tratamento da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) e do Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (MENDES; BRANCO, 2012, p. 903).
No entanto, Gilmar Mendes e Paulo Branco (2012, p. 904) defendem que a realidade do direito à saúde no Brasil não trata apenas de problemas de eficácia social desse direito fundamental e questões de implementação e manutenção de políticas públicas, mas também problemas orçamentários dos entes federados. Dessa forma, o direito à saúde irá se efetivar mediante ações específicas, em dimensões individuais e mediante amplas políticas públicas que busquem a redução do risco de doenças e outros agravos (dimensões coletivas).
A efetividade do direito à saúde enfrenta, também, um impasse normativo, pois o art. 196 da Constituição não precisou de forma rigorosa todas as posições jurídicas que podem ser extraídas do direito em si. Desse modo, uma primeira solução caberia ao legislador infraconstitucional determinar concretamente os conteúdos aos quais o Estado ficaria vinculado e o seu campo de atuação. Contudo, a falta da especificidade legislativa não significa que o direito encontra-se à livre disposição do legislador, nesse sentido, observa Jorge Reis Novais (2004 apud PIVETTA, 2014, p. 50):
um direito na disponibilidade e dependente da decisão do legislador ordinário, um direito não constitucional em sentido formal ou, pelo menos, um direito não diretamente aplicável logo a partir de sua consagração constitucional, não seria, por definição, um direito fundamental.
Logo, a importância da atividade legiferante ordinária não retira o conteúdo jusfundamental e a aplicabilidade imediata do direito à saúde, pois o próprio teor do direito em si induz a essa abertura, haja vista que a existência de inúmeros fatores a serem considerados para o delineamento de seu conteúdo definitivo (PIVETTA, 2014, p. 58).
2.2.2. O direito à saúde como direito exigível.
Como já mencionado anteriormente, as possibilidades e os limites da exigibilidade do direito à saúde na condição de direito subjetivo, exigível pelo indivíduo em relação ao Estado e aos particulares como um direito de prestações materiais, é um tema atual e relevante no cenário brasileiro.
Um dos primeiros pontos desse assunto que dá margem a esse grande campo de discussões, é o próprio conteúdo aberto do direito à saúde em nosso texto legal (art. 6º e 196 da Constituição Federal) que não define o objeto protegido pela tutela jusfundamental, deixando ao intérprete a tarefa de integração prática da norma constitucional. Nesse sentido, é importante destacar que há diferenças entre o direito originário e o derivado, aquele direcionado à proteção jusfundamental voltado para norma constitucional e este mediado pela prática legislativa e por um sistema de políticas públicas já implementado, a fim de proporcionar o igual acesso às prestações já disponibilizadas (CANOTILHO et al. 2013, p. 1934).
Além disso, já resta consolidado na doutrina e jurisprudência nacional a função de direito de defesa do direito à saúde, enquanto coibidor de interferências indevidas na saúde da população (individual e coletivamente), bem como uma função de proteção por impor um dever geral de respeito à saúde, pelo Estado e particulares (CANOTILHO et al. 2013, p. 1934-5).
Contudo, o direito à saúde visto na condição de direito às prestações materiais, gera maiores controvérsias, como é o caso da aplicação do princípio da reserva do possível, que analisa a limitação de recursos, seja: a disponibilização dos recursos públicos e a capacidade de dispor de tais recursos com base nas competências constitucionais e nos princípios de proporcionalidade, subsidiariedade, eficiência e, principalmente, nos princípios da federação e autonomia municipal (adotados no Brasil) (CANOTILHO et al. 2013, p. 1935).
O princípio da reserva do possível regula a possibilidade e a extensão da atuação do Estado no que tange a concretização de determinados direitos sociais e fundamentais, como é o caso do direito à saúde, sujeitando o Estado a agir de acordo com a disponibilidade dos recursos públicos (SILVA, L., 2011, p. 26-7).
A condição orçamentária é vista, em muitos casos, como um limite às ações do Estado para promoção dos direitos sociais. No entanto, tal ideia é equivocada, pois a previsão orçamentária para promoção das despesas públicas é regra direcionada ao administrador e não ao juiz, o qual tem a possibilidade de não observar o preceito para tornar efetiva uma norma constitucional, por meio da simples ponderação de valores. A Carta Constitucional de 1988, por sua vez, impede a realização de programas ou projetos que não estejam incluídos na lei orçamentária anual (art. 167, I), à geração de despesas que excedam os créditos orçamentários (art. 167, II) e o remanejamento ou transferência de recursos de um órgão para o outro, sem que haja prévia previsão legal (art. 167, VI) (SILVA, L., 2011, p. 26-28).
Com base no exposto, verifica-se que o legislador constituinte se preocupou em planejar todas as despesas do Poder Público, o que não impede o Poder Judiciário de ordenara a atuação do Poder Público na realização de determinadas ações para salvaguardar determinado direito constitucional, uma vez que as previsões orçamentárias e os direitos fundamentais estão no mesmo plano hierárquico, cabendo ao juiz priorizar o direito fundamental à regra orçamentária, dentro de certos limites, os quais serão abordados no decorrer deste trabalho (SILVA, L., 2011, p. 28).
Em contrapartida, a garantia de um direito fundamental está diretamente ligada ao mínimo existencial, ou seja, ao se tutelar um direito fundamental as razões vinculadas à reserva do possível não podem sobrepor àquelas que garantem o mínimo existencial e por si só afastar o dever de promoção do direito e a exigibilidade do cumprimento de deveres (ALEXY, 1994 apud SARLET; FIGUEIREDO, 2008).
A reserva do possível mais do que questões orçamentárias, envolve o respeito à estrutura e regulamentação do próprio sistema, como é verificado nas ações de medicamentos, por exemplo, nas quais se deve valer do trabalho de profissionais especializados em seus pareceres nas prestações e saúde específicas, e os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do SUS (SARLET; FIGUEIREDO, 2008). No entanto, com a evolução da jurisprudência, a reserva do possível quando alegada, deve vir acompanhada de suas respectivas provas, ou seja, não basta mais sua simples alegação.
Ademais, a efetivação do direito à saúde enquanto direito a prestações materiais necessita de uma definição pormenorizada de seu conteúdo, uma vez que não há previsão constitucional taxativa das prestações positivas do Estado. Tal situação acaba por refletir nas ações judicias que buscam essas prestações, realidade que favorece àqueles que possuem meios de acesso ao judiciário, o que demonstra a importância da dimensão organizatória e procedimental dos direitos fundamentais, especialmente, do direito à saúde (CANOTILHO et al. 2013, p. 1935).
Em relação ao acesso à justiça, há aqueles que defendem a propositura das ações de caráter coletivo em face das ações individuais, sob o argumento de que essas contribuiriam para a real prestação do direito à saúde, considerando as políticas públicas existentes para esse fim. No entanto, é necessário ressaltar que, apesar do direito à saúde possuir um viés coletivo e difuso, o mesmo está diretamente ligado ao direito de cada pessoa, de forma individual, ao seu direito à vida, à sua integridade física (CANOTILHO et al. 2013, p. 1934).
Dessa forma, o direito às prestações individuais por meio da via judicial jamais poderá ser refutado, pois se trata de uma garantia constitucional do indivíduo, o que revela mais uma vez a necessidade de uma análise das dimensões organizatórias e procedimentais do direito à saúde (CANOTILHO et al. 2013, p. 1935).
Nesse sentido, a doutrina e jurisprudência nacional têm reconhecimento com frequência as posições subjetivas decorrentes do direito às prestações materiais, sejam nas hipóteses de iminente risco de vida e nos casos de garantia do mínimo existencial:
PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa consequência5 constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.
A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.
(RE 271286 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/09/2000, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJ 24-11-2000 PP- 00101 EMENT VOL-02013-07 PP-01409)
Contudo, essas prestações realizadas pelo Estado, com o fim de atender as demandas inerentes da promoção dos direitos sociais, principalmente quanto ao direito à saúde, encontra restrições/reservas em sua aplicabilidade, sejam elas: “reserva imanente de ponderação”, “reserva do politicamente adequado ou oportuno” e “reserva do financeiramente possível” (PIVETTA, 2014, p. 68).
Tais restrições existem, devido à necessidade de concretização infraconstitucional dos comandos normativos e à consequente falta de caráter inequívoco de mandos, decorrente da natureza essencialmente principiológica dos direitos sociais.
Segundo Jorge Reis Novais (2010 apud PIVETTA, 2014, p. 71), todos os direitos fundamentais estão sujeitos a uma reserva geral imanente de ponderação, que autoriza, em certos casos, a sua restrição, com base em determinadas situações, como é o caso da atuação do Estado na restrição do uso de determinados medicamentos não autorizados pela Anvisa. Cumpre salientar que tal reserva não incidirá nos casos em que a Constituição já sedimentou em caráter definitivo, ou seja, quando o comando já estiver consagrado por meio de uma regra.
A “reserva do politicamente adequado ou oportuno” está ligada com a atuação política de análise da realidade concreta e definição dos meio necessários à proteção e promoção do direito. No caso do direito à saúde, a Administração Pública dentro do exercício de sua competência normativa, elabora vários atos para promoção e proteção desse direito, um exemplo é a Portaria n. 344/1998 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde que regula as substâncias e medicamentos sujeitos à controle especial (PIVETTA, 2014, p. 72-3).
Já a “reserva do financeiramente possível” ou “reserva do possível” é a que se observa na atuação positiva do Estado na promoção de prestações fáticas voltadas à concretização do direito à saúde com a utilização de recursos significativos, o que não retira o caráter jusfundamental do direito à saúde. Essa reserva é vista como uma forma de alocação de recursos para o cumprimento das finalidades do Estado (PIVETTA, 2014, p. 77-8).
Tais reservas acima expostas pode, em alguns casos, afetar negativamente o direito na medida em que possui natureza principiológica e conteúdo parcialmente indeterminado, como é o caso do direito à saúde. Assim, a fim de determinar o nível de incidência dessas reservas em relação aos direitos sociais, se estabeleceu uma estratégia teórico-jurídica do mínimo existencial (PIVETTA, 2014, p. 78).
A necessidade de atribuir força jurídica aos direitos sociais decorre especialmente, no ordenamento brasileiro, da previsão do art. 5º, §1º, da Constituição Federal de 1988, que acaba por assegurar a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. Dessa forma, nos contextos em que inexiste o reconhecimento expresso da fundamentalidade dos direitos sociais, existe a limitação de um mínimo de eficácia jurídica de tais direitos com base em outros princípios ou dispositivos, um exemplo é a dignidade da pessoa humana (PIVETTA, 2014, p. 79).
Ana Paula Barcellos (2010 apud PIVETTA, 2014, p. 81) ressalta que as disposições constitucionais que permitem delimitar o núcleo material mínimo da dignidade da pessoa humana. Esse núcleo acaba por variar de acordo com as condições fáticas e jurídicas da sociedade, mas que acabam sendo divididos em quatro grupos: educação básica, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à saúde; elementos que constituem o mínimo existencial, indispensável para constituição de uma vida digna.
Essa garantia do mínimo existencial vai além da mera sobrevivência física, uma vez que a vida humana não é apenas a existência, mas sim uma vida em que seja possível usufruir dos direitos fundamentais e desenvolver a personalidade. Assim, busca-se garantir a vida digna à população, correspondente às exigências do princípio da dignidade da pessoa humana, por meio do reconhecimento definitivo do caráter constitucional a garantia do mínimo existencial pelo Estado (SARLET; FIGUEIREDO, 2008).
De acordo com Ricardo Lobo Torres (p. 35),
O mínimo existencial é direito protegido negativamente contra a intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, garantido positivamente pelas prestações estatais. Diz-se, pois, que é direito de status negativus e de status positivus, sendo certo que não rato se convertem uma na outra ou se co-implicam mutuamente a proteção constitucional positiva e negativa.
Ou seja, o mínimo existencial é a parte mínima que cada pessoa necessita para sobreviver, o qual é dever do Estado garantir por meio de ações positivas e negativas.
Nesse sentido também defende Sarlet (2017, p. 621), o qual concorda com o entendimento de Torres, mas complementa alertando que não se pode quantificar de uma forma única e definitiva o mínimo existencial, pois este varia conforme o lugar, situação socioeconômica, período, expectativas e necessidades.
No caso do direito à saúde, a delimitação de um conteúdo mínimo é ainda mais difícil, pois há inúmeras situações em que a proteção do direito à saúde não permite flexibilidade, casos em que há chance de redução da vida do indivíduo. De tal modo, o mínimo existencial em relação à saúde, está relacionado com as prestações que podem ser disponibilizadas a todas as pessoas, denominadas de “saúde básica”, para demais prestações é necessária à atuação do legislador ordinário (BARCELLOS, 2010 apud PIVETTA, 2014, p. 80-1).
Essa falta de definição do direito à saúde acaba por dificultar o estabelecimento de políticas públicas capazes de atender de forma eficaz à demanda da população. Apesar da criação da Lei 8.080/1990 que estabelece às diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), falta um texto legal capaz de estabelecer de diretrizes da saúde nacional, como é o caso da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1966).