Os efeitos processuais da tutela de urgência antecipada nas ações de medicamentos

Análise dos processos junto aos Juizados Especiais da Fazenda Pública da Comarca de Ponta Grossa/PR.

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22/02/2021 às 21:23
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3. A atuação do Poder Judiciário na efetivação do direito à saúde.

O Poder Judiciário possui um relevante papel dentro de um Estado Constitucional Democrático, seja o de interpretar a Constituição Federal e as leis, protegendo os direitos e o próprio ordenamento jurídico. Além dessas atribuições, caberá aos magistrados e parquets dar sentido a certas normas jurídicas, quando houver a aplicação de normas e princípios jurídicos com conceitos indeterminados ou muito amplos. Essa atuação do judiciário deve realizada com base na ponderação dos direitos e princípios previstos na Constituição Federal (BARROSO, p. 21).

A maior atuação do Judiciário teve início com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que passou atribuir ao Estado um dever prestacional amplo, a ser cumprido pela execução de políticas públicas, formuladas com base nas diretrizes do SUS (FOGAÇA, 2014, p. 88). Assim, é com fundamento nesse novo cenário que surgiu o processo de judicialização, criado a partir de ações que pretendiam o fornecimento de medicamentos antirretrovirais para HIV/AIDS, tendo o Judiciário como um dos únicos meios para obtê-los, uma vez que não fornecidos pelo Estado (PEPE et al., 2010 apud FOGAÇA, 2014, p. 88).

Esse fenômeno de judicialização, de forma breve, segundo Luis Roberto Barroso (2012 apud FOGAÇA, 2014, p. 89), seria a alteração do nível de decisão a certos assuntos, os quais deixariam de ser objeto de deliberação dos entes originalmente competentes e passariam a ser objeto de discussão do Poder Judiciário.

No que diz respeito à atuação judicial no campo de fornecimento de medicamentos, se reflete justamente essa transferência decisória, a qual seria da Administração Pública, mas que por omissão e falhas acaba chegando ao Poder Judiciário.

A atuação judicial nos casos de fornecimento medicamentos deve ser realizada com fundamento nas normas jurídicas existentes, nos princípios morais e conhecimentos técnicos (pareceres de profissionais da área da saúde, por exemplo) para que seja formulado um juízo em relação às ações/omissões dos entes públicos (BARROSO, 2007, p. 21).

Contudo, como o direito à saúde está diretamente relacionado com a dignidade da pessoa humana e a vida e suas previsões legais são de conteúdo aberto, dá-se margem a diversas interpretações e formas de efetivação dos direitos, as quais podem vir a colidir entre si. Dessa forma, é necessário verificar quais são os deveres jurídicos do Estado previstos nas normas para atuação do Poder Judiciário na regulamentação das atividades públicas, principalmente naquelas omissas ou que atentem contra a Constituição Federal (BARROSO, 2007, p. 21-2).

Nesse sentido destaca Luis Roberto Barroso (2007, p. 22):

a atividade judicial deve guardar parcimônia e, sobretudo, deve procurar respeitar o conjunto de opções legislativas e administrativas formuladas acerca da matéria pelos órgãos institucionais competentes. Em suma: onde não haja lei ou ação administrativa implementando a Constituição, deve o Judiciário agir. Havendo lei e atos administrativos, e não sendo devidamente cumpridos, devem os juízes e tribunais igualmente intervir. Porém, havendo lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção.

A atividade judicial no fornecimento de medicamentos tem como fundamento o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal (1988), “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, sendo legítima a intervenção judicial para impedir a lesão ou ameaça ao direito à saúde, contudo, nota-se um desvirtuamento na utilização dos instrumentos processuais previstos na lei, principalmente nas ações de natureza prestacional, como é o caso do fornecimento de medicamentos (SILVA, L., 2011, p. 39).

Essa alteração da real utilidade dos instrumentos processuais está ligada a falta de informações por parte dos operadores do direito, em relação às políticas públicas de saúde, principalmente, no que diz respeito às prescrições medicamentosas. Há casos em que a adulteração é originária da má-fé dos profissionais da área da saúde e indústria farmacêutica, o que revela a necessidade em observar determinados critérios para viabilizar a atuação judicial na efetivação da assistência farmacêutica pelo Estado (SILVA, L., 2011, p. 39).

Outro ponto que merece destaque é a utilização do processo judicial para geração de lucros para as indústrias farmacêuticas, médicos, advogados e laboratórios, a chamada “indústria da ação judicial”. De tal modo, é necessário que o juiz, ao analisar as ações e medicamentos, averigue: a) se o fármaco solicitado corresponde ao diagnóstico dado à doença que acomete o paciente; b) se há medicamentos correspondentes fornecidos pelo SUS, se sim, qual o motivo da não utilização; c) os tratamentos já realizados por este e os motivos da ineficácia e a consequente solicitação de novo fármaco; d) a habilitação do médico que prescreveu os medicamentos. Nesse sentido, é possível solicitar pareceres de profissionais habilitados e especialistas para decidir de acordo com a real necessidade do requerente (SILVA, L., p. 44).

Destarte o que foi dito, afere-se que é legítima a propositura de ações para obtenção de medicamentos não fornecidos pelo sistema público de saúde, bem como a atuação do Poder Judiciário na proteção e promoção do direito à saúde nas ações que buscam o fornecimento de medicamento. No entanto, há certos pontos que devem ser observados pelos operadores direito ao analisar e agir em tais ações, a fim de não causar prejuízos à Administração Pública e ao próprio SUS.

3.1. Limites Legítimos e Críticas

Apesar de a atuação judicial ser legítima no que se refere à proteção dos direitos, essa intervenção não está isenta de diversas objeções, principalmente no que se refere às ações que interferem na competência e atribuições de outros Poderes. Nesse sentido, há diversas críticas à atuação do Poder Judiciário, mas poucas são relevantes, das quais algumas serão expostas de forma breve, a fim de proporcionar visão maior sobre tal ponto.

A atuação do Poder Judiciário no setor de fornecimento de medicamentos acaba por interferir nas políticas de saúde formuladas pelo Poder Executivo, uma vez que as decisões originalmente políticas e de competência dos administradores públicos da saúde, acabam sendo tomadas no judiciário. A interferência do Poder Judiciário no campo político é denominada judicialização, como anteriormente exposto, característico das democracias contemporâneas (BORGES; UGÁ, 2008, p. 15).

Ocorre que, as decisões judiciais nas ações individuais para fornecimento de medicamento caracterizam um novo tipo de judicialização, no qual o Poder Judiciário se substitui ao Executivo na escolha em prover determinados medicamentos, com fundamento na efetivação do direito à saúde. Apesar de o Brasil adotar um sistema público de saúde e universal, nem todos os serviços, tratamentos e medicamentos são fornecidos à população, pois não há recursos suficientes para tal, o legislador, característica do texto constitucional amplo elaborado. Assim, ficou a cargo do legislador ordinário a elaboração de dispositivos legais que definam de forma mais específica as prestações de saúde. No entanto, muitas dessas regulamentações são normas técnicas feitas pelo Poder Executivo (infraconstitucionais) como é o caso da assistência farmacêutica (BORGES; UGÁ, 2008, p. 15).

Essa intervenção judicial não está relacionada apenas com as políticas de saúde, mas também com as “decisões técnicas relativas à incorporação de tecnologia”, o que é um problema, pois o Poder Judiciário não possui esse conhecimento técnico necessário. Logo, deve ser tomado um maior cuidado por parte do judiciário ao analisar essas ações judiciais referentes aos medicamentos, pois o objeto das ações não é apenas a medicamento pretendido, mas também a padronização do produto pelo Ministério da Saúde e a adequação do fármaco à situação do paciente. Assim, considerando a atuação do judiciário nas ações de saúde, em especial as ações de medicamentos, é necessária a existência de limites às ações do Poder Judiciário (BORGES; UGÁ, 2008, p. 16).

A atividade do magistrado entre os séculos XVIII e XIX era apenas de aplicador das leis, sem margem para maiores interpretações a não ser o que já estava previsto. Com o crescimento do Poder Judiciário no século XX, a atuação dos juízes se transformou, passando a ter discricionariedade em seus atos. Dessa forma, considerando que os magistrados são mais que meros aplicadores da lei, e que ao aplicar a lei no caso concreto, acaba por exercer um poder normativo, em muitos casos (BORGES; UGÁ, 2008, p. 23).

Ocorre que, as ações judicias que envolvem conflitos de bens com recurso do Estado possuem certos limites. Tais ações devem ser consideradas com fundamento nos princípios da justiça distributiva, ou seja, como tais ações envolvem a distribuição de bens públicos, não podem ser analisadas iguais aos conflitos bilaterais onde uma parte ganha e outra perde. Segundo a análise feita por José Reinaldo de Lima Lopes, haveria seis limites para essa atuação judicial, descritos a seguir (BORGES; UGÁ, 2008, p. 25).

O primeiro limite seria em relação aos efeitos que essas decisões judiciais produzem aos bens públicos, especialmente nas ações de saúde. Ao deferir um pedido de uma ação ajuizada contra o Estado exigindo a realização do tratamento para transplante de fígado, fará com que esse indivíduo passe à frente de uma fila de outras pessoas que também se encontram nessa mesma situação. Ou seja, decisões desse caráter não afetam apenas os indivíduos envolvidos, mas toda uma coletividade que possui as mesmas necessidades. Tal situação aplica-se da mesma forma às ações de medicamentos de custo elevado, os quais não são fornecidos pelo Estado, pois acabará por privar certa coletividade de outros tratamentos de saúde (BORGES; UGÁ, 2008, p. 25).

Portanto, ao decidir sobre esses casos, o Poder Judiciário não pode entender como uma solução de conflitos entre duas partes apenas, mas sim entender a dimensão dos reflexos que isso pode causar a uma coletividade, uma vez que envolve bens comuns da sociedade (BORGES; UGÁ, 2008, p. 26). Nesse sentido, expõe José Reinaldo de Lima Lopes (2006 apud BORGES; UGÁ, 2008, p. 26), “Muitos são os problemas que não se resolvem individualmente. Por exemplo, a questão da moradia ou da saúde pública. Então o valor de determinadas decisões não pode ultrapassar determinadas pessoas, ou determinadas regiões”.

O Segundo ponto seria a repercussão das decisões na alocação dos recursos públicos, que é de competência do Poder Executivo e não do Judiciário. Assim, há uma linha tênue entre o dever do Poder Judiciário em zelar pelos direitos do cidadão e a alteração das políticas públicas que fica no campo de atuação do Poder Executivo. Em consonância como exposto, defende José Reinaldo de Lima Lopes (2006 apud BORGES; UGÁ, 2008, p. 26):

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os tribunais não têm poderes institucionais para alocar livremente recursos orçamentários e, em caso de necessidade não têm poder de criar novas formas de financiamento público, constrangendo sua atuação em programas de reformas propriamente ditos.

O terceiro ponto seria a forma de resolução dos conflitos, como já exposto acima, a respeito da justiça distributiva. Já o quarto limite seria a inércia institucional do Poder Judiciário, devendo ser provocada a sua atuação. Nas ações cujo objeto é o bem comum, a iniciativa de uns pode representar a perda para outros, como é o das ações que pleiteiam medicamentos de alto custo ou um transplante. Tais casos representam a aproximação da população do Poder Judiciário, seja para ter acesso à insumos e serviços anteriormente negados pelo Estado, e consequentemente provocar a alteração das políticas públicas em seu benefício (BORGES; UGÁ, 2008, p. 27-8).

Assim, conforme aponta Borges e Ugá (2008, p. 28), as ações individuais que deveriam ser tratadas de forma coletiva, acabam por “realizar justiça para o caso concreto (microjustiça), desprezando os aspectos coletivos de distribuição de recursos para a coletividade (macrojustiça)”.

O penúltimo limite para atuação do Poder Judiciário seria o embasamento das decisões judiciais proferidas, pois o julgamento realizado é feito com parâmetros em leis e jurisprudências já consolidadas. Ocorre que, como essas demandas prestacionais envolvem questões distributivas de bens comuns, é necessário que, ao decidir, voltem-se os olhos para o futuro, ou seja, análise as políticas públicas que preveem a distribuição e remessa de recursos públicos. Com base nisso, defende José Reinaldo de Lima Lopes (2006 apud BORGES; UGÁ, 2008, p. 28):

o julgador precisa nessas circunstâncias mais do que um instinto para o precedente. Ele não apenas ordena, precisa também fiscalizar e administrar. E, depois de ordenar, por ver-se diante do problema da falta de dinheiro para cumprir sua ordem.

O último limite para as ações poder Judiciário seria a insuficiência técnica de sua assessoria, principalmente, no que tange às questões de saúde, as quais envolve a consulta de órgãos especializados, dados estatísticos, econômico- financeiros, políticos e de gestão. Assim, ressalta Mauro Cappelletti (1999 apud BORGES; UGÁ, 2008, p. 29):

Efetivamente, para a criação do direito fazem-se necessários instrumentosque não estão à disposição dos tribunais e “em muito ultrapassam o simples conhecimento do direito existente e como este se realiza”. Os juízes, segundo esse entendimento, não têm possibilidade de desenvolver pessoalmente o tipo de investigações requeridas para uma obra criativa, que não podem se limitar às leis e aos precedentes, e envolvem problemas complexos e dados sociais, econômicos e políticos; não dispõem sequer dos recursos, inclusive financeiros, mediante os quais parlamentos, comissões legislativas e ministérios estão em condições de encarregar terceiros para efetuar pesquisas que, frequentemente, nem os legisladores e administradores saberiam desenvolver por si mesmos.

Portanto, é necessário o maior desenvolvimento tanto do Poder Judiciário, quanto de seus recursos para que suas decisões de fato supram a necessidade da população de maneira efetiva, fazendo com que o benefício de alguém não gere a perda do outro.

3.2. Posicionamentos adotados pelos Tribunais Superiores.

O Superior Tribunal de Justiça, em 05 de abril de 2018, ao julgar o Recurso Especial de n. 1.657.156-RJ, entendeu que o poder público detém a obrigação em fornecer todos os medicamentos, até aqueles não incorporados em atos normativos do Sistema Único de Saúde (SUS), desde que cumpridos três requisitos:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:

1) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;

2) Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e

3) Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

(STJ. 1ª Seção. REsp 1657156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 25/04/2018 (recurso repetitivo)).

Posteriormente, em 12 de setembro de 2018, o Superior Tribunal de Justiça entendeu por retificar o terceiro requisito da tese anteriormente fixada e modular os efeitos dessa decisão, asseverando:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:

a) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;

b) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;

c) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.

(STJ. 1ª Seção. EDcl no REsp 1657156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 12/09/2018 (recurso repetitivo))

Essa alteração fez com que o registro do medicamento junto à ANVISA afastasse a possibilidade do fornecimento de medicamentos fora da indicação prevista na bula (off label), salvo se autorizado pela ANVISA.

Outrossim, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de embargos de declaração no Recurso Especial n. 1657156-RJ, alterou a data do início da produção dos efeitos de tal decisão, a qual passou a surtir efeitos a partir de 04 de maio de 2018. Assim, quanto ao os processos anteriormente autuados, exigia-se apenas a demonstração da imprescindibilidade do medicamento.

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, por maioria dos votos, fixou a seguinte tese para aplicação da repercussão geral:

[...] O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:

(i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);

(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e

(iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União

(RE 657718, 22.05.2019).

A partir desse julgado, o Supremo Tribunal Federal retirou do Estado e do Município a obrigação de fornecer medicamentos sem regulamentação pela ANVISA, os quais devem ser tutelados apenas em face da União.

No que tange aos medicamentos de alto custo, o julgamento dessa repercussão geral encontra-se suspenso esperando julgamento, o qual foi designado para o dia 23/10/2019, conforme calendário de julgamento publicado no site do tribunal, nesse sentido a repercussão geral foi reconhecida pelo Ministro Marco Aurélio,

REPERCUSSÃO GERAL - COMPETÊNCIA DO PLENÁRIO - ADMISSIBILIDADE - ASSISTÊNCIA À SAÚDE - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO - EXTRAORDINÁRIO DO ESTADO. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte desproveu apelação assentando a obrigatoriedade de o Estado fornecer medicamento de alto custo. Este tema tem-se repetido em inúmeros processos. Diz respeito à assistência do Estado no tocante à saúde, inegavelmente de conteúdo coletivo. Em outras palavras, faz-se em jogo, ante limites orçamentários, ante a necessidade de muitos considerada relação de medicamentos, a própria eficácia da atuação estatal. Em síntese, questiona- se, no extraordinário, se situação individual pode, sob o ângulo do custo, colocar em risco o grande todo, a assistência global a tantos quantos dependem de determinado medicamento, de uso costumeiro, para prover a saúde ou minimizar sofrimento decorrente de certa doença. Aponta-se a transgressão dos artigos 2º, 5º, 6º, 196 e 198, § 1º e § 2º, da Carta Federal. Impõe-se o pronunciamento do Supremo, revelando-se o alcance do texto constitucional. Admito a repercussão geral articulada em capítulo próprio no extraordinário. Submeto aos integrantes do Tribunal a matéria para deliberação a respeito (grifo nosso).

Quanto à responsabilidade dos entes federativos em fornecer medicamentos à população, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento da responsabilidade solidária entre estes, em sede de repercussão geral, reafirmando a jurisprudência,

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.

O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente.

(RE 855.178 RG/SE, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 05/03/2015, data de publicação: 16/03/2015).

Posteriormente, houve a fixação da tese de repercussão geral, Tema 793, por maioria dos votos,

Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

Atualmente, o presente processo encontra-se concluso com o Relator aguardando julgamento.

Outro tema que merece destaque é a possibilidade de imposição de astreintes ao ente público, a fim de obriga-lo a fornecer os medicamentos determinados em decisões judiciais. Sobre esse assunto já decidiu em sede de Recurso Repetitivo, o Superior Tribunal de Justiça,

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC/1973. AÇÃO ORDINÁRIA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO PARA O TRATAMENTO DE MOLÉSTIA. IMPOSIÇÃO DE MULTA DIÁRIA (ASTREINTES) COMO MEIO DE COMPELIR O DEVEDOR A ADIMPLIR A OBRIGAÇÃO. FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DO CONTEÚDO NORMATIVO INSERTO NO § 5º DO ART. 461 DO CPC/1973. DIREITO À SAÚDE E À VIDA.

1. Para os fins de aplicação do art. 543-C do CPC/1973, é mister delimitar o âmbito da tese a ser sufragada neste recurso especial representativo de controvérsia: possibilidade de imposição de multa diária (astreintes) a ente público, para compeli-lo a fornecer medicamento à pessoa desprovida de recursos financeiros.

2. A função das astreintes é justamente no sentido de superar a recalcitrância do devedor em cumprir a obrigação de fazer ou de não fazer que lhe foi imposta, incidindo esse ônus a partir da ciência do obrigado e da sua negativa de adimplir a obrigação voluntariamente.

3. A particularidade de impor obrigação de fazer ou de não fazer à Fazenda Pública não ostenta a propriedade de mitigar, em caso de descumprimento, a sanção de pagar multa diária, conforme prescreve o § 5º do art. 461 do CPC/1973. E, em se tratando do direito à saúde, com maior razão deve ser aplicado, em desfavor do ente público devedor, o preceito cominatório, sob pena de ser subvertida garantia fundamental. Em outras palavras, é o direito-meio que assegura o bem maior: a vida. Precedentes: AgRg no AREsp 283.130/MS, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 8/4/2014; REsp 1.062.564/RS, Relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJ de 23/10/2008; REsp 1.062.564/RS, Relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJ de 23/10/2008; REsp 1.063.902/SC, Relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ de 1/9/2008; e AgRg no REsp 963.416/RS, Relatora Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ de 11/6/2008.

4. À luz do § 5º do art. 461 do CPC/1973, a recalcitrância do devedor permite ao juiz que, diante do caso concreto, adote qualquer medida que se revele necessária à satisfação do bem da vida almejado pelo jurisdicionado. Trata-se do "poder geral de efetivação", concedido ao juiz para dotar de efetividade as suas decisões.

5. A eventual exorbitância na fixação do valor das astreintes aciona mecanismo de proteção ao devedor: como a cominação de multa para o cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer tão somente constitui método de coerção, obviamente não faz coisa julgada material, e pode, a requerimento da parte ou ex officio pelo magistrado, ser reduzida ou até mesmo suprimida, nesta última hipótese, caso a sua imposição não se mostrar mais necessária. Precedentes: AgRg no AgRg no AREsp 596.562/RJ, Relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 24/8/2015; e AgRg no REsp 1.491.088/SP, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 12/5/2015.

6. No caso em foco, autora, ora recorrente, requer a condenação do Estado do Rio Grande do Sul na obrigação de fornecer (fazer) o medicamentoLumigan, 0,03%, de uso contínuo, para o tratamento de glaucoma primário de ângulo aberto (C.I.D. H 40.1). Logo, é mister acolher a pretensão recursal, a fim de restabelecer a multa imposta pelo Juízo de primeiro grau (fls. 51-53).

7. Recurso especial conhecido e provido, para declarar a possibilidade de imposição de multa diária à Fazenda Pública.

Acórdão submetido à sistemática do § 7º do artigo 543-C do Código de Processo Civil de 1973 e dos arts. 5º, II, e 6º, da Resolução STJ n. 08/2008

(REsp 1474665/RS, Relator(a): Min. BENEDITO GONÇALVES, Primeira Seção, julgado em 26/04/2017, DJe 22/06/2017) (grifo nosso).

3.2.1. Posicionamentos adotados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná já firmou entendimento quanto aos medicamentos, conforme é possível verificar nos enunciados de n. 16, 28, 29 e 30,

ENUNCIADO 16: As medidas judiciais visando a obtenção de medicamentos e afins podem ser propostas em face de qualquer ente federado diante da responsabilidade solidária entre a União, Estados e Municípios na prestação de serviços de saúde à população.

ENUNCIADO 28: O Ministério Público tem legitimidade para, como substituto processual, postular o fornecimento de medicamentos (e afins) a paciente sem condições econômicas para adquiri-lo, independentemente da via judicial eleita.

ENUNCIADO 29: A teoria da reserva do possível não prevalece em relação ao direito à vida, à dignidade da pessoa humana e ao mínimo existencial, não constituindo óbice para que o Poder Judiciário determine ao ente político o fornecimento gratuito de medicamentos.

ENUNCIADO 30: Para fins de fornecimento gratuito de medicamentos por ente federado mostra-se irrelevante o fato de o relatório médico não ter sido elaborado por profissional integrante do SUS (Sistema Único de Saúde).

É possível depreender que o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná entende pela responsabilidade solidária dos entes federativos no fornecimento de medicamentos, bem como parte legítima para configurar nos processos que visam garantir o direito à saúde à população.

Quanto à reserva do possível, entende pela não supremacia desse princípio em relação à promoção do direito à saúde pelo Estado. No mais, acompanha os entendimento já firmados pelos Tribunais Superiores.

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