Resumo: O consagrado princípio e garantia constitucional da ampla defesa permite às partes do processo demonstrar e provar os seus direitos, limitando a atuação do julgador. Seu exercício é requisito para a condução e a própria validade do processo. Entretanto, deve observar as disposições legais para que não incorra em abuso de direito, do contrário, deixa de ser instrumento de defesa para ser mecanismo de ataque, ou seja, transmuta-se de ampla defesa para ampla destreza. A multifacetagem da problemática exige uma análise que percorra os aspectos sociais, legais e psicológicos, de modo que, entendendo e correlacionando a influência dos fatores externos e internos, seja possível traçar eventuais soluções.
Palavras-chave: Ampla defesa. Mentira. Abuso de direito. Ampla destreza.
Sumário: Introdução. Capítulo I - Breves considerações históricas sobre a ampla defesa. 1.1 Surgimento da ampla defesa em resposta ao poder de sancionar. 1.2 Hodiernidade e relevância da ampla defesa. 1.2.1 Conceito da ampla defesa. 1.2.2 Ampla defesa exercida através de condutas de não fazer: princípio da não autoincriminação e direito ao silêncio. 1.2.3 (In) admissão da mentira no exercício da ampla defesa. 1.2.4 Ampla defesa e sua correlação com a dignidade da pessoa humana, o Estado Democrático de Direito e o Neoconstitucionalismo. Capítulo II - Utilização da ampla defesa com o intuito de não fazer incidir a sanção. 2.1 Função social da sanção. 2.2 análise, sob o ponto de vista psicológico, dos motivos que fazem o indivíduo buscar a não incidência da sanção. 2.2.1 Influência dos anseios mais profundos do indivíduo no exercício da ampla defesa - Id, inconsciente e instintos. 2.2.2 Desgaste mental do sancionado em decorrência da sanção. 2.3 análise, sob o ponto de vista psicológico, de como a impunidade e a aplicação da sanção condicionam o comportamento humano - reforço positivo, negativo e punição. Capítulo III - Ilegitimidade da ampla destreza e meios de combatê-la. 3.1 incompatibilidade entre a ampla destreza e o ordenamento jurídico brasileiro. 3.1.1 Viés ilegal da ampla destreza no plano infraconstitucional. 3.1.2 Viés ilegal da ampla destreza no plano constitucional. 3.2 Possíveis soluções à ampla destreza. 3.2.1 Medidas que estimulam a autorresponsabilidade do transgressor. 3.2.2 Tipificação do crime de perjúrio: ultima ratio contra o exercício da ampla destreza. Conclusão. Referências.
Introdução
A problemática do presente trabalho diz respeito ao suposto abuso de direito que há, no exercício da ampla defesa, quando se emprega a mentira a fim de alcançar a desresponsabilização. Deu-se, a esse comportamento, a designação neologística de ampla destreza.
No primeiro capítulo são feitas algumas considerações históricas sobre a ampla defesa, trazendo à discussão o porquê do seu surgimento. Na sequência, dá-se o seu conceito e se demonstra por que é legítimo o acusado, no exercício da ampla defesa, manter-se em silêncio, ou omisso, ao passo que tal legitimidade, supostamente, não se estenderia ao ato de mentir. Em que pese haver tal crítica contra esse suposto exercício ilegítimo da ampla defesa, não se defende a sua relativização, de modo que o primeiro capítulo é encerrado demonstrado a relevância da garantia, uma das peças do constitucionalismo moderno, a qual guarda relação com o Estado Democrático de Direito e o Neoconstitucionalismo.
No segundo capítulo se debate sobre a utilização da ampla defesa, por parte do transgressor, para ser desresponsabilizado, a fim de não sofrer quaisquer sanções. Inicialmente, demonstra-se o papel e importância da sanção, que cumpre função social, mas que mesmo assim é, via de regra, evitada por quem transgride. Para entender por que há essa fuga, faz-se uma análise, sob a perspectiva psicológica, a qual conseguiria explicar o padrão de mentir, no exercício da ampla defesa, para se desresponsabilizar. Ainda sob a perspectiva psicológica, é explicado como a incidência, ou não, de sanção, em resposta a alguma transgressão cometida, é capaz de condicionar o comportamento humano.
No terceiro e último capítulo se discorre sobre a ilegitimidade da mentira no âmbito da ampla defesa, apontando quais dispositivos infraconstitucionais e constitucionais tal conduta infringe. Por fim, traz-se à discussão possíveis soluções a ampla destreza, sendo, de início, o estímulo a autorresponsabilidade do transgressor e, por fim, a tipificação do crime de perjúrio.
Assim, o presente estudo qualitativo foi realizado através do método hipotético-dedutivo, utilizando-se a revisão bibliográfica de normas vigentes, livros, doutrina, jurisprudência, teses e ensaios correlatos, intentando compreender a prática da ampla destreza e como contorná-la.
1. Breves considerações históricas sobre a ampla defesa
1.1 Surgimento da ampla defesa em resposta ao poder de sancionar
O ser humano é inconformado por natureza. Falar em se defender é remontar aos primórdios da própria existência humana - nossos ancestrais valiam-se da força física para defender a si e os seus interesses. No processo evolutivo, aprimoramos nossa comunicação, sociabilidade. A intelectualidade ganhou espaço, conseguiu, inclusive, dominar a força física.
A vitória, nas situações de conflito em que havia um terceiro incumbido de decidir quem seria o vitorioso, não necessariamente era daquele mais forte, mas, sim, de quem fosse escolhido. Entretanto, quais eram os parâmetros utilizados por quem decidia? Eram justos? A necessidade de primeiro se defender para, só então, haver qualquer decisão com a consequente sanção, urgia.
Faz-se mister, a priori, compreender melhor a relação de causa-consequência entre a formação de uma sociedade, o poder de decidir, a incidência de sanção e a necessidade de se defender.
A organização dos indivíduos em sociedade é um fenômeno cujo contratualismo busca explicar. Na visão contratualista de John Locke, os indivíduos acabam consentindo com a formação de uma administração, centralizadora do poder público, que existe para garantir os direitos individuais e promover a segurança jurídica1. Para isso, abdicam, dentre outras coisas, do direito de castigar os transgressores, ficando sob responsabilidade da administração, em sentido amplo, sancionar as irregularidades ao final de seus respectivos processos, judicial ou não2.
Destarte, a ocorrência de uma situação conflituosa juridicamente relevante invoca a atuação da administração para o seu solucionamento. A fim de manter a ordem e a harmonia social, busca-se uma decisão que seja proporcional e razoável, contrapondo a tratativa particular que, na maioria das vezes, é desproporcional, até mesmo animalesca3. Ainda assim, mesmo a administração figurando nessa posição de “promotora do reequilíbrio”, é necessário impor limites para que não haja abusos.
A garantia fundamental da ampla defesa, que existe de longa data, surgiu para impedir arbitrariedades e abuso de poder daquele que julga, dando, àqueles que são julgados, a oportunidade de esclarecer e provar os fatos para, assim, trazer à tona a verdade, de modo que o julgamento seja o mais reto possível4. Destarte, um dos limites do poder de sancionar é justamente a garantia da ampla defesa, que dá ao julgador informações mais próximas da realidade para que a decisão final seja razoável e proporcional, justa na medida do possível e não conforme a sua vontade pessoal ou achar5.
1.2 Hodiernidade e relevância da ampla defesa
Cláusula pétrea, o princípio constitucional da ampla defesa é, indubitavelmente, de suma importância. Aliado a outros princípios, integra a base do devido processo legal6, guardando, ainda, relação com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, núcleo do ordenamento jurídico pátrio7.
Dada a universalidade da ampla defesa, ínsita aos princípios constitucionais8, qualquer que seja o ramo do Direito que esteja servindo de substrato às normas processuais, deverá ser oportunizado o exercício da ampla defesa9. Em outras palavras, a problemática do presente trabalho deve ser enfrentada considerando todas as esferas do Direito.
1.2.1 Conceito da ampla defesa
O princípio da ampla defesa tem base legal no artigo 5º, inciso LV da CRFB/88, que diz “[...] LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”10.
O referido dispositivo introduziu a ampla defesa como garantia fundamental, muito embora não a tenha conceituado. Não obstante, a doutrina cuidou de ventilar alguns conceitos, sendo possível afirmar que o princípio constitucional comporta múltiplas definições, coexistentes entre si.
Rodrigo César Pinho explica, sobre a ampla defesa:
Ao réu devem ser concedidas todas as oportunidades para ver respeitado o seu direito, assegurando-se a indispensabilidade da citação, a nomeação de defensor, a notificação para a prática de atos processuais, a possibilidade de produzir provas e de apresentar arrazoados11.
Corroborando com a perspectiva anterior, José Francisco Filho elucida:
[...] o poder público tem de assegurar aos litigantes e aos acusados em geral todos os meios capazes de fazê-los cientes do pedido que contra eles se faz e de todos os atos do processo, assim como a possibilidade de apresentar todas as provas de que disponham para demonstrar seu direito e de discutir seu caso perante pelo menos mais de um juiz, todos eles neutros e independentes12.
Assim, o autor adenda que o exercício da ampla defesa necessita do duplo grau de jurisdição.
De outra forma, o Ministro do STF Alexandre de Moraes assevera que:
Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário13.
Aqui, destaca-se a atribuição dada à omissão ou ao silêncio do réu que, segundo o Ministro, importa em exercício da ampla defesa. Portanto, é possível se defender passivamente, adotando condutas de não fazer14.
Sintetiza-se, portanto, que o princípio constitucional da ampla defesa é a possibilidade que os acusados em geral têm para demonstrar o seu direito, através da apresentação de todas as provas admitidas em direito, seja por meio de condutas de fazer ou não-fazer, aptas a esclarecer a verdade dos fatos.
1.2.2 Ampla defesa exercida através de condutas de não fazer: princípio da não autoincriminação e direito ao silêncio
A possibilidade de adotar condutas de não fazer no exercício da ampla defesa, como é o caso, por exemplo, da omissão e do silêncio, decorrem do princípio da não autoincriminação15, o qual tem, como base legal, dispositivos de tratados internacionais, quais sejam o art. 14.1, g do PIDCP/6616 (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) e o art. 8.2, g da CADH/69 (Pacto de São José da Costa Rica). Nos termos deste último:
Artigo 8
[...]
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
[...]
g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;
[...]17 (grifo nosso)
Conforme esclarece Luiz Flávio Gomes, não depor contra si mesmo tem sentido amplo, ou seja, não é somente a manifestação oral do agente, mas também outras manifestações ativas, seja oral, documental, material etc”18. Isto porque, ainda segundo o autor, o princípio:
[...] significa que ninguém é obrigado a se auto-incriminar [sic] ou a produzir prova contra si mesmo. Nenhum indivíduo pode ser obrigado, por qualquer autoridade ou mesmo por um particular, a fornecer involuntariamente qualquer tipo de informação ou declaração ou dado ou objeto ou prova que o incrimine direta ou indiretamente19.
É incumbência do acusador apresentar provas que evidenciem a responsabilização do acusado, ao passo que é direito do acusado apresentar provas que demonstrem a sua inocência ou menor responsabilização, se assim, realmente, o for. Não é plausível, portanto, punir a passividade do acusado pelo fato do acusador não ter conseguido desenvolver o seu papel20. Essa situação, entretanto, é diferente de quando o acusado adota uma postura ativa ao falar faltando com a verdade.
O direito ao silêncio, por sua vez, tem base legal no artigo 5º, inciso LXIII da CRFB/88, que preceitua “[...] LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”21.
Ressalva-se, a priori, que o dispositivo supracitado deve ser interpretado extensivamente no que diz respeito a quem faz jus ao direito, pois, além do preso, também o faz os acusados em geral, investigados ou suspeitos22.
Decorrente do princípio da não autoincriminação, o direito ao silêncio assegura que nenhum acusado é obrigado a apresentar a sua versão dos fatos ou a responder as perguntas das autoridades policiais ou judiciárias, sem que isso importe em prejuízo à sua defesa23.
Não se autoincriminar agindo de modo omissivo, ou silente, é compatível com o exercício da ampla defesa porque não há, a partir dessas condutas, alteração da realidade dos fatos, tão somente mantém a dúvida já existente. Ademais, nem mesmo o acusador é prejudicado porque continua tendo à disposição os meios legais que julgar pertinente para afastar a dubiedade e provar a verdade, obscurecida, mas inalterada24.
De modo contrário, o agir que falseia a verdade altera a realidade dos fatos, podendo acarretar um pseudo afastamento da dúvida, quiçá conduz a decisão do julgador para algo distante do que ele julgaria caso soubesse a verdade. Utilizar o processo para satisfazer interesses pessoais, prejudicando terceiros, não é compatível com o exercício da ampla defesa, por isso não pode ser concebida como uma das formas de não se autoincriminar25.
1.2.3 (In) admissão da mentira no exercício da ampla defesa
É controverso o entendimento sobre a possibilidade de mentir no exercício da ampla defesa. Enquanto uns defendem que a mentira é um direito, decorrente do princípio da não autoincriminação, outros sustentam que não há o direito de mentir, sendo a conduta, contudo, tolerada, haja vista não haver, expressamente, proibição legal26. Já para uma terceira corrente doutrinária, a mentira é inadmitida, dissona do que o ordenamento jurídico pátrio, a partir de uma interpretação sistemática, dispõe27.
O suposto direito de mentir, na visão de Ferrajoli, decorre do princípio da não autoincriminação, que, além do silêncio e da omissão, comporta também a faculdade do acusado faltar com a verdade28. Considerando que o ordenamento jurídico pátrio não obriga o acusado a prestar declarações verídicas, haveria direito de mentir, manifestação inerente à autodefesa29.
Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei, estabeleceu-se o princípio de que tudo que não for proibido é permitido, ou seja, em não sendo vedado ao acusado prestar declarações mendazes, atribui-se-lhe o direito de falsear a verdade30.
De outro modo, há quem não considere a mentira como um direito, tão somente juridicamente tolerada. Na lição de Renato Lima:
[...] não se pode concordar com a assertiva de que o princípio [da não autoincriminação] [...] assegure o direito à mentira. [...] A questão assemelha-se à fuga do preso. Pelo simples fato de a fuga não ser considerada crime, daí não se pode concluir que o preso tenha direito à fuga. Tivesse ele direito à fuga, estar-se-ia afirmando que a fuga seria uma ato lícito, o que não é correto [...]31
E continua:
Na verdade, por não existir o crime do perjúrio no ordenamento jurídico pátrio, pode-se dizer que o comportamento de dizer a verdade não é exigível do acusado, sendo a mentira tolerada, porque dela não pode resultar nenhum prejuízo ao acusado32.
Data venia aos que admitem a mentira como forma de defesa, mostra-se mais adequado à Constituição Federal brasileira, a partir de uma interpretação sistemática, o entendimento que a inadmite.
Os princípios constitucionais, quando formatados, têm sempre um propósito ético, sendo inconcebível a criação de uma norma que vise proteger abusos, acobertar violações33. Não há direito absoluto, mas convivência das liberdades, em que o exercício de um direito é legítimo desde que não prejudique a ordem pública e os direitos alheios34. O princípio da não autoincriminação vem para proteger o acusado, mas é afastado quando utilizado para tutelar comportamentos que prejudicam terceiros35.
O princípio da não autoincriminação dá ao acusado a possibilidade de não contribuir com a reconstrução dos fatos, seja através do silêncio, seja da omissão, mas não admite, contudo, condutas ativas que obstam o descobrimento da verdade, como, por exemplo, o falar que falseia a verdade36. Tendo em vista que há o direito de ficar em silêncio, ou mesmo omisso, mentir se mostra desnecessário e desproporcional.
Quando se cala a verdade, pode-se estar restringindo os meios de o Estado chegar mais depressa ou com melhor índice de precisão aos resultados institucionais da demanda. Porém não se induz o Estado a erro. Permitir a mentira ao acusado é atentar contra o processo, o que não constitui uma exigência da autodefesa e representa, eventualmente, uma ação contrária a interesses de terceiros prejudicados37.
Na mesma linha de raciocínio,
[...] o direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si já conferem efetividade ao princípio [da não autoincriminação], vez que ainda que o acusado permaneça em silêncio, não será vulnerada sua presunção de inocência. Logo, sendo o silêncio útil para o fim de resguardar a dignidade do acusado, não se justifica a mentira. Somente por um sofismo se extrai a mentira do princípio [da não autoincriminação]38.
O princípio não é ilimitado a ponto de permitir condutas que tenham por fulcro induzir o erro judicial39. Ao considerar que o direito de defesa abrange o direito de causar dano à terceiros, está se dando aval para transgredir40. É, deveras, abuso de direito41, manifestação de deslealdade processual, forma reprovável de iludir a Justiça42.
Portanto, o emprego da mentira como estratégia de defesa importa em abuso de direito, já que “[...] o agente, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de considerar a finalidade social do direito subjetivo e, ao utilizá-lo desconsideradamente, causa dano a outrem”43.
1.2.4 Ampla defesa e sua correlação com a dignidade da pessoa humana, o Estado Democrático de Direito e o Neoconstitucionalismo
A dinâmica histórico-social moldou a forma do direito se relacionar com as situações, trazendo a dignidade da pessoa humana à condição de valor nuclear do ordenamento jurídico, com status constitucional44.
Isto porque, outrora, viveu-se os horrores dos regimes totalitários nazifascistas que, sob a égide da lei, “puderam” cometer as mais diversas atrocidades. A fim de superar esse paradigma nocivo do positivismo jurídico, deu-se protagonismo às normas principiológicas, sobretudo à dignidade da pessoa humana, transformando o Estado de Direito em Estado Democrático de Direito45.
Artur Francisco Motta, ao falar sobre a identificação externa e interna da dignidade da pessoa humana, deslinda:
A dignidade é essencialmente um atributo da pessoa humana pelo simples fato de alguém "ser humano”, se tornando automaticamente merecedor de respeito e proteção, não importando sua origem, raça, sexo, idade, estado civil ou condição sócio-econômica [sic] [...] é um eixo de tolerabilidade, uma barra de proteção, uma linha divisória que delimita até que ponto algo, qualquer fato ou situação, é considerado tolerável por determinada coletividade, conforme suas referidas circunstâncias de tempo, lugar e desenvolvimento histórico-cultural. Ou seja, analisa-se o que o indivíduo deve ser obrigado a suportar ou tolerar por se tratar de um mero dissabor da vida em coletividade ou algum infortúnio proveniente de fato da natureza46. (grifo do autor)
Ademais, a dignidade da pessoa humana é “[...] critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional [...] [funcionando como] imperativo de justiça social” 47.
Portanto, todo indivíduo faz jus à dignidade da pessoa humana. Ter a oportunidade de se defender contra acusações é poder proteger a si, a sua dignidade. Restringir o exercício de defesa de outrem é dificultar, ou mesmo inviabilizar a proteção do seu direito, que atenta contra a sua dignidade, vulnerabiliza a pessoa, promove injustiça social. Por conseguinte, fere os princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito, sendo possível concluir que o respeito à ampla defesa, além de promover o direito processual de defesa e limitar o alcance sancionador da administração, traz os valores constitucionais e democráticos ao julgamento, legitimando o próprio processo, de modo que o processo que desatenda a ampla defesa é nulo de pleno direito, salvo exceções.
Entrementes, a superação de paradigma que transformou o Estado de Direito em Democrático de Direito redefiniu o papel da Constituição Federal, colocando-a no centro do ordenamento jurídico pátrio, com força normativa real, efetiva, atingindo inclusive as relações privadas48. Nesse cenário, a promulgação da Constituição Federal brasileira de 1988, engendrada no processo de redemocratização que vivíamos, marcou o início do Neoconstitucionalismo aqui no Brasil49.
Destarte, como se vê, o pós-positivismo foi o marco filosófico, também, do Neoconstitucionalismo, de sorte que se reforçou, ainda mais, a condição de valor nuclear da dignidade da pessoa humana50. Portanto, em observância a esse princípio, faz-se mister garantir que a ampla defesa possa ser exercida livre de óbices que não sejam os limites legais, trazendo os valores (neo) constitucionais e democráticos ao julgamento.
Além do mais, em consonância com o propósito de existência do próprio Direito, a ampla defesa fomenta a coexistência pacífica e harmoniosa entre as pessoas. Isso porque é através do seu exercício que o julgador é capaz, em sede processual, de concatenar as informações iniciais ao lastro probatório produzido para, então, formar um juízo de convicção, absolvendo o inocente e condenando o culpado, na medida da sua culpa, a fim de dirimir o conflito e reestabelecer a harmonia tão almejada pelo Direito.
A ampla defesa, portanto, desempenha importantíssimo papel na promoção do ser, na preservação da sua dignidade e na proteção dos valores democráticos e neoconstitucionais, não havendo que se falar em sua relativização, tampouco é o objetivo do presente trabalho.