Capa da publicação Ampla destreza: exercício abusivo da ampla defesa
Capa: A verdade saindo do poço (Jean Léon Gerome, 1896)
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Ampla destreza: exercício abusivo da ampla defesa

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27/06/2023 às 14:48
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3. Ilegitimidade da ampla destreza e meios de combatê-la

3.1 Incompatibilidade entre a ampla destreza e o ordenamento jurídico brasileiro

Como é cediço, a garantia constitucional da ampla defesa é, indubitavelmente, importantíssima, não havendo que se falar em sua desqualificação ou relativização. Entretanto, a garantia não é absoluta – assim como nada no direito é -, de tal forma que existem parâmetros a serem observados no seu exercício, quais sejam, por exemplo, a legalidade e o não prejuízo a terceiros101.

A prática hodierna, muitas vezes, diverge daquilo que deveria ser, utilizando a garantia constitucional para manipular os fatos, tendenciando erroneamente a interpretação do julgador para, assim, encobrir a verdade desfavorável àquele que manipula, diminuindo sua parcela de culpa, ou até mesmo desresponsabilizando-o102.

Esse induzimento a erro judicial, prejudicial ao interesse de terceiros, não condiz com o propósito do direito de defesa103. Surge, assim, a designação neologística de ampla destreza – aqueles que, dentro do processo, fogem da verdade para não serem responsabilizados, agindo com astúcia, ardilosidade ou destreza, a fim de transvestir a mentira em verdade ou em possibilidade, exercem ampla destreza.

3.1.1 Viés ilegal da ampla destreza no plano infraconstitucional

As partes integrantes do processo devem obedecer uma série de imposições legais garantidoras da idoneidade do processo judicial e, no que couber, do processo extrajudicial. A começar, cita-se a boa-fé, elencada no art. 5º do CPC/15, in verbis “Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”104. Fernando Rubin elucida:

A boa-fé exigida dos sujeitos do processo em todas as etapas procedimentais é a de natureza objetiva [...] revela-se no comportamento merecedor de fé, que não frustre a confiança do outro, que não pratique abuso do direito e, por conseguinte, maculação à boa-fé como regra de conduta105.

O exercício da ampla defesa que não frustra a confiança do outro, tal qual ocorre na construção idônea de um lastro probatório, no ato de silenciar-se, ou ainda omitir-se, é, muito mais do que bem-vindo, necessário ao processo. De outro modo, o exercício da ampla defesa que frustra a confiança ou abusa de um direito, como é o caso, por exemplo, de tentar, ardilosamente, conferir verossimilhança a uma narrativa falaciosa, corroborada por uma construção inidônea do lastro probatório, é, deveras, ampla destreza, mácula à boa-fé.

Nesse sentido, o art. 79 do CPC/15 responsabiliza o litigante de má-fé por perdas e danos, ao passo que o artigo subsequente indica, taxativamente, as circunstâncias em que se constata a litigância de má-fé, instando citar a constante no inciso II, a saber “Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: [...] II – alterar a verdade dos fatos”106.

Portanto, ao exercer a ampla destreza construindo uma tese fictícia, alteradora da realidade dos fatos, incorre-se na circunstância supracitada da litigância de má-fé, conduta esta indesejada, ensejadora de dano processual.

O art. 6º do CPC/15, por sua vez, versa sobre o cooperativismo processual, in verbis “Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”107.

Sucedendo o modelo processual adversarial, em que as partes eram tidas como adversárias entre si, desfavorecendo a comunicação e o entendimento entre elas, emergiu o modelo cooperativo108, segundo o qual “[...] [há] a inclusão do órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual, e não mais como um mero espectador do duelo das partes [...] a decisão judicial é fruto da atividade processual em cooperação”109. (grifo do autor)

Ainda segundo Fredie Didier, o cooperativismo é o “modelo de direito processual civil adequado à cláusula do devido processo legal e ao regime democrático”110.

Na contramão do que preceitua o art. 6º do CPC/15, qual a justiça de uma decisão calcada em inverdades que premia o agressor? Aonde está a tal efetividade ao deixar o ônus de reparar o dano sob encargo do ofendido, nas situações em que o agressor consegue, abjetamente, desresponsabilizar-se? Há, deveras, inobservância do comando legal quando se exerce a ampla destreza.

Ademais, do princípio da cooperação decorrem deveres processuais, dentre os quais se destaca o dever de proteção, segundo o qual “a parte não pode causar danos à parte adversa (punição ao atentado, [art. 77, CPC/15]; há a responsabilidade objetiva do exequente nos casos de execução injusta, [arts. 520, I, e 776, CPC/15])”111.

Percebe-se, da leitura do art. 77, incisos I, II e III do CPC/15, rechaçamento completo à ampla destreza, senão, veja-se:

Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:

I – expor os fatos em juízo conforme a verdade;

II – não formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento;

III - não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito;

[...]112

Isso porque a exposição de fatos inverídicos, a formulação de pretensões ou apresentação de defesa destituídas de fundamento, bem como a produção de provas ou atos que sejam inúteis ou desnecessários à defesa do direito, resume, muito bem, o modus operandi da ampla destreza.

A inobservância da boa-fé objetiva, do cooperativismo processual e dos deveres das partes processuais lesiona o devido processo legal, indo de encontro ao propósito de existência do processo, fomentando a injustiça e a impunidade113.

Representa abuso de direito114, positivado em nosso ordenamento jurídico, nos termos do art. 187 do CC/02115, ipsis litteris “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”116.

Induzir o judiciário a erro e prejudicar terceiros excede quaisquer limites impostos à ampla defesa, cuja finalidade social é, dessa forma, desconsiderada. Inobserva, ainda, a boa-fé, não restando dúvidas que o exercício da ampla defesa que falseia a verdade é abuso de direito117.

Outrossim, como bem se sabe, é comum o mandatário praticar o desserviço de ficcionar em favor do seu cliente, isolado ou conjuntamente, afrontando o disposto no art. 2º, parágrafo único, II do CED-OAB/15 (Código de Ética e Disciplina da OAB), senão, vide:

Art. 2º Omissis

Parágrafo único. São deveres do advogado: [...] II – atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé;

[...]118 (grifo nosso)

Muito embora essa prática seja associada, à primeira vista, a advocacia privada, abrange também a Justiça Pública – Defensoria Pública e Ministério Público. Sobre o tema, Carlos Soares assevera que:

A boa-fé e lealdade processual não são elencos caracterizadores de uma moralidade ou eticidade processual, mas sim de elementos vinculados à observância do devido processo legal. Abusa do direito processual quem, de má-fé, busca empregar uma conduta processual com o objetivo de causar contrariedade à marcha processual, à eficácia das decisões e até mesmo à dignidade da justiça e da prestação jurisdicional. Toda litigância de má-fé é um abuso do direito processual. O abuso é gênero e a litigância é espécie. O dever de lealdade processual não deve ser levado em consideração, apenas entre as partes litigantes, mas, sobretudo, por todos os sujeitos processuais, incluindo os juízes, membros do Ministério Público e terceiros119.

Destarte, “o advogado [assim como defensores e promotores], como conhecedor e estudioso das leis deve ter um comportamento técnico, no exercício de uma função essencial à justiça, sob pena de transgredir a linha da razoabilidade e ética profissional”120.

O exercício da ampla destreza é, taxativamente, proibido pelo CED–OAB/15, nos termos do art. 6º, ipsis litteris “Art. 6º É defeso ao advogado expor os fatos em Juízo ou na via administrativa falseando deliberadamente a verdade e utilizando de má-fé”121. Nessa esteira, precedente atual condenando a autora pela alteração da verdade dos fatos, in verbis:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. CONDOMÍNIO. OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS EM DECORRÊNCIA DE INFILTRAÇÕES NA ÁREA COMUM DO CONDOMÍNIO. PROBLEMAS QUE JÁ HAVIAM SIDO SANADOS. OBRIGAÇÃO DE FAZER. DESCABIMENTO. ALTERAÇÃO DA VERDADE DOS FATOS PELA AUTORA. MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ MANTIDA. INTELIGÊNCIA DAS NORMAS CONTIDAS NO ARTS. 80, II, E 81, AMBAS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. DANOS MATERIAIS DECORRENTES DA CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO. DESCABIMENTO, NO CASO. CONFIGURAÇÃO DE LIDE TEMERÁRIA. DANOS MORAIS. INOCORRÊNCIA. VAZAMENTOS DEVIDAMENTE CONSERTADOS PELO CONDOMÍNIO. MEROS ABORRECIMENTOS DECORRENTES DA VIDA EM SOCIEDADE. SUCUMBÊNCIA. MANUTENÇÃO. PARTE VENCIDA QUE DEVE ARCAR COM O PAGAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS E VERBA HONORÁRIA. INCIDÊNCIA DAS NORMAS CONTIDAS NOS ARTS. 82, INCISO II, E 85, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. HONORÁRIOS RECURSAIS. CABIMENTO. ART. 85, § 11, DA LEI Nº 13.105/2015. RECURSO DESPROVIDO122.

Ademais, não só é proibido falsear a verdade em Juízo ou na via administrativa como é dever, imposto a todos, colaborar para o descobrimento da verdade, conforme se aduz do art. 378 do CPC/15, in verbis “Art. 378. Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”123.

A verdade é uma variante do princípio da probidade que norteia todo o processo, para o qual a versão dada em juízo deve ser condizente com a realidade. Para Tornaghi, nestes casos, a infração pode consistir na afirmação de fato(s) inexistente(s), na negação de fato(s) existente(s) ou na descrição deste(s) sem correspondência exata com a realidade124.

Contribuindo com a presente concatenação, Aurinilton Sobrinho propõe a seguinte reflexão:

Ora, se o advogado é defensor dos valores do Estado Democrático de Direito; se é-lhe defeso expor os fatos em Juízo falseando deliberadamente a verdade ou estribando-se na má-fé; se deve manter conduta compatível com os princípios da moral individual, social e profissional, como conceber a existência de um “direito de mentir” assegurado ao Advogado?125

Não há, deveras, nenhum direito nesse sentido. Em que pese o mandatário possuir prerrogativas, possui também responsabilidades126. Nesse sentido, o EAOAB/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), no seu art. 32, estabelece:

Art. 32. O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.

Parágrafo único. Em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria127.

Lide temerária, que também encontra previsão no art. 80, V do CPC/15, é a atuação irresponsável perante a justiça, tal qual ocorre quando se emprega a ampla destreza – a manipulação da interpretação do julgador através de falácias ao invés de uma argumentação fundamentada, sólida e verdadeira é a técnica utilizada de forma deturpada, a qual, via de regra, causa dano processual, prejudica, indevidamente, a parte contrária128. Cabe frisar que o mandatário é solidariamente responsável com seu cliente, sendo “[...] presumido o prejuízo processual em decorrência da simples existência da lide temerária. Excepcionalidade que permite a condenação solidária do patrono com a parte nas verbas de litigância de má-fé”129.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO - DEVEDOR EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO CREDOR - LIDE TEMERÁRIA - COMPROVAÇÃO - MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - POSSIBILIDADE - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - REDUÇÃO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A litigância de má-fé é medida de exceção, a ser imposta somente quando houver prova cabal de uma das situações previstas no art. 80 do CPC, cujo rol é taxativo. 2. Manifesto o caráter temerário da ação de busca e apreensão ajuizada por credor que tinha inequívoca ciência de que seu crédito já havia sido incluído no plano de recuperação judicial do devedor. 3. Comprovada a litigância de má-fé, adequada a aplicação à parte autora de multa, nos termos do art. 81, do CPC. 4. Há que se reduzir os honorários de sucumbência, se a fixação não observou a baixa complexidade da matéria debatida, além dos demais critérios do art. 85, § 2º, do CPC. 5. Recurso parcialmente provido.130

O exercício da ampla destreza, portanto, afronta vários preceitos legais dispersos no ordenamento jurídico pátrio, a citar: arts. 5º, 6º, 77, I, II e III, 80, II e V e 378 do CPC/15, art. 187 do CC/02, arts. 2º, parágrafo único, I e 6º do CED-OAB/15 e art. 32 do EAOAB/94, sem prejuízo de outros que acabaram não sendo trazidos à baila. Em que pese tamanha afronta ao que é disposto em lei infraconstitucional já seja, per si, suficiente para justificar a inviabilidade, deveras ilegalidade da ampla destreza, a qual deveria ser expurgada da técnica jurídica e não empregada, é possível encontrar, também, incompatibilidade entre a ampla destreza e as normas constitucionais.

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3.1.2 viés ilegal da ampla destreza no plano constitucional

Sabe-se que a Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 ocupa, com relação à hierarquia entre as normas, o topo da pirâmide, irradiando-se por todo o ordenamento jurídico pátrio131.

A Constituição é a lei maior do país, o vértice do sistema jurídico. [...] A supremacia da Constituição decorre de sua própria origem, pois provém de um poder constituinte originário, de natureza absoluta, bem como do seu caráter de rigidez, sobrepondo-se as normas constitucionais em relação a todas as demais normas jurídicas132.

Ademais, em que pese a Constituição brasileira seja analítica, isto é, extensa, ampla133, não pôde, textualmente, inserir todas as normas constitucionais existentes, primeiro porque não é possível, afinal, como condensar as incontáveis situações constitucionalmente relevantes em um único diploma legal, segundo porque, ainda que fosse possível, não é do seu interesse, porquanto só a engessaria, deixando-a aquém do dinamismo social.

Em verdade, a densidade axiológica da CRFB/88 faz-lhe transcender ao seu próprio texto, estabelecendo suas raízes, seu sustento, em princípios constitucionais, explícitos e implícitos, capacitando o diploma a acompanhar as transformações e necessidades sociais134.

É a partir dessas premissas que existem normas principiológicas implícitas - muito embora não constantes no texto constitucional, possuem status constitucional, com força normativa plena135.

Tanto o é que o poder constituinte originário previu, no art. 5º, § 2º da CRFB/88, ipsis litteris:

Art. 5º Omissis

[...]

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

[...]136 (grifo nosso)

Destarte, muito embora os princípios da lealdade e boa-fé processual já sejam explícitos em nível infraconstitucional, são, ainda, implícitos em nível constitucional, com fundamento no devido processo legal137, art. 5º, LIV da CRFB/88 “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Nesse sentido, o STF, responsável pela interpretação da CRFB/88, decidiu:

O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma exigência de fair trial [julgamento justo], no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais. A máxima do fair trial é uma das faces do princípio do devido processo legal positivado na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição, voltado para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu pleno funcionamento, da boa-fé e lealdade dos sujeitos que dele participam, condição indispensável para a correção e legitimidade do conjunto de atos, relações e processos jurisdicionais e administrativos138.

Portanto, a boa-fé e a lealdade processual são indispensáveis para que os atos processuais, judiciais e extrajudiciais, sejam legítimos. Isso significa que a afronta a esses princípios, em razão do exercício da ampla destreza, não só viola normas infraconstitucionais, como também e sobretudo normas constitucionais, deslegitimando o que fora praticado. Há prejuízo à parte contrária, ao devido processo legal e à própria prestação jurisdicional. Nas palavras de Érica Noveli:

O princípio da boa-fé está atrelado ao dever de lealdade processual, a honestidade e a integridade entre as partes, logo, caso não atendido, trata-se de uma afronta não só a parte contrária na relação processual, mas, ainda, a transposição de tais efeitos contra o próprio Estado, que por sua vez, tem como base a entrega de maneira justa da tutela jurisdicional139.

O exercício da ampla destreza viola também o princípio constitucional implícito da cooperação, já que “um sistema que consagra a boa-fé como direito fundamental implícito do devido processo legal, consagra também o princípio da cooperação, porque a cooperação deriva da boa-fé processual”140.

A conduta desleal de ficcionar para desresponsabilizar quem é culpado prejudica o processo, embaraça o direito da outra parte. “Do ponto de vista processual, cooperar não significa um ajudar o outro, mas sim, não ter condutas que prejudiquem o processo, não criar embaraços ao direito do outro, permitir que o processo tenha seu bom andamento”141.

O processo não é um fim em si mesmo, é o meio ou instrumento apto a promover a adequada prestação jurisdicional, ou administrativa, devendo os sujeitos do processo agirem em estrita observância ao devido processo legal, o que inclui, portanto, a atuação cooperativa, leal e de boa-fé142.

Num vôo ligeiro, o objetivo da jurisdição, em seu aspecto jurídico, conecta o processo com o direito material, sendo o processo um instrumento de realização de interesse, como atuação da vontade concreta da lei. No aspecto social, o escopo da jurisdição concentra-se na pacificação com justiça, visando a realização da justiça em cada caso e, mediante a prática reiterada, a implantação do clima social de justiça143.

A elaboração de uma tese fictícia, alteradora da realidade dos fatos, serve tão somente para “beneficiar” quem procura manipular a interpretação do julgador em detrimento da adoção de uma decisão justa, que levaria em consideração as peculiaridades do caso concreto, que buscaria reparar o dano ou reprimir a transgressão na sua exata medida, mas que acaba resultando em uma decisão incoerente, já que teve por parâmetro a ficção.

Do resultado do processo, ou mesmo do seu próprio trâmite, podem surgir implicações que ultrapassem a esfera jurídica das partes, afetando a coletividade. E é esse prejuízo à terceiros um dos maiores problemas, senão o maior, decorrente da prática da ampla destreza144.

O transgressor que, culpado, vale-se de mentiras e consegue convencer o julgador, sendo desresponsabilizado, prejudica 1) a si mesmo porque a impunidade fomenta a reiteração transgressiva145, que o exporá, cada vez mais, a situações de risco, com consequências, por vezes, piores que a própria sanção; prejudica 2) a outra parte, que além do dano sofrido, deixará de ser reparada; prejudica 3) a instituição a qual o julgador pertence e/ou representa, pois ela é impedida de dar a tratativa adequada ao caso, sendo esvaziada da sua função de reprimir e corrigir condutas transgressoras, podendo, ainda, vir a ser descredibilizada146; prejudica também e principalmente 4) a coletividade, pois os atos nocivos contra outrem tem o condão de reverberar em outras pessoas – psíquico e/ou fisicamente. Nessa reverberação incluem-se a intensificação da sensação de insegurança, o reforço à crença equivocada de que é mais eficaz fazer a justiça com as próprias mãos, o eventual estímulo para que outros passem a transgredir, dentre outros147.

Essa relação de perda, sob qualquer vértice que se olhe, mostra-se dissonante com a Constituição brasileira, seja porque há ataque à dignidade da vítima (art. 1º, III da CRFB/88), seja porque o Estado, esvaziado da sua função de reprimir e corrigir, decide injustamente, havendo, portanto, descumprimento da sua obrigação de construir uma sociedade justa (art. 3º, I da CRFB/88), seja porque essa decisão, ainda, promove o mal estar da coletividade, já que intensifica a sensação de insegurança, dentre outras consequências já mencionadas, descumprindo o Estado, portanto, sua obrigação de promover o bem estar de todos (art. 3º, IV da CRFB/88), seja porque o processo em que há má-fé, deslealdade e falta de cooperativismo viola o devido processo legal (art. 5º, LIV da CRFB/88), os quais são, ainda, princípios constitucionais implícitos, havendo, portanto, inobservância quanto à sua adoção pela Constituição brasileira (art. 5º, § 2º da CRFB/88).

O exercício da ampla destreza, portanto, não pode ser admitido como forma de defesa enquanto implicar em mecanismo de ataque à Constituição Federal brasileira. A interpretação sistemática desse diploma legal, axiologicamente denso, revela verdadeira preocupação com o ser humano, proteção aos seus direitos, meios de efetivá-los, desde que não seja em detrimento dos direitos e garantias alheios148. Claudiney Gonçalves aduz:

O exercício ilimitado da plenitude de defesa constitui evidente abuso de direito, deixando de se ser um instrumento de concretização de direitos, para tornar-se uma arma para o uso indevido do processo, sem qualquer utilidade para solução dos litígios [...] o abuso do direito destrói a função social do processo149.

O processo é “veículo de pacificação social, não pode ser conduzido para satisfação de fins egoísticos, pautados pela má-fé e deslealdade processual, de sorte que condutas processuais pairadas nestes elementos devem ser coibidas”150 já que atacam as normas constitucionais e infraconstitucionais, desvirtuando a função social do processo151.

A ampla destreza, portanto, possui viés ilegal. É ilegítima a sua utilização em sede processual já que representa afronta a diversos dispositivos legais, quais sejam:

Tabela 1 – Dispositivos legais violados pelo exercício da ampla destreza

Fonte: Elaborado pelo autor.

3.2 Possíveis soluções à ampla destreza

Qual a chance de o transgressor ter autorresponsabilidade a ponto de reconhecer que transgrediu e aceitar as consequências dos próprios atos? Há de se concordar que muito baixa152. A ampla destreza acabou se tornando a regra.

É preciso, portanto, estimular o uso de medidas que combatam essa situação de tal maneira que haja desenvolvimento da autorresponsabilidade do transgressor. Acaso reste frustrado, deverá haver punição do comportamento individual nocivo.

3.2.1 Medidas que estimulam a autorresponsabilidade do transgressor

Assumir o próprio erro e entender que é preciso aceitar as consequências não é fácil. Não obstante, é possível estimular esse comportamento através de medidas que primam pelo diálogo. Inserir a pessoa no problema, fazendo-a entender os prejuízos que causou e como isso é indesejável, ainda que concomitantemente à aplicação de uma sanção, é melhor do que simplesmente sancionar153.

É interessante que haja, também, a concessão de benefícios para quem é autorresponsável, pois, dessa forma, haverá um maior interesse do transgressor em ser dadas as vantagens. O espírito da coisa, ao apresentar ao transgressor estímulo que o motive a reconhecer o erro, não é o de barganhar, mas lhe trazer ao problema, possibilitar um melhor entendimento acerca da situação danosa, para que haja, assim, a tratativa mais adequada, com maiores e melhores chances de amenização do dano154.

A iniciar pela transação, que vem sendo cada vez mais utilizada, onde:

No sentido técnico-jurídico [...] constitui negócio jurídico bilateral, pelo qual as partes previnem ou terminam relações jurídicas controvertidas, por meio de concessões mútuas. Resulta de um acordo de vontades, para evitar os riscos de futura demanda ou para extinguir litígios judiciais já instaurados, em que cada parte abre mão de uma parcela de seus direitos, em troca de tranquilidade155. (grifo do autor)

Portanto, à medida que as partes dialogam e cada uma cede um pouco, chega-se a um denominador comum que, em tese, atende a necessidade da vítima e pune o agressor de forma mais branda, estimulando-o, portanto, a ser autorresponsável, já que transigir implica em beneficiar-se ao assumir a responsabilidade da transgressão praticada, ao revés de ter a possibilidade de ser evasivo, judicialmente, sob o risco de ser penalizado, via de regra, de forma mais gravosa156.

A transação é cabível nos mais diversos ramos do Direito, cada qual com suas próprias regras. Cabe ao mandatário dar a orientação correta ao mandante esclarecendo como funciona a transação no caso concreto.

Encontramos, na esfera penal, diversos mecanismos que estimulam a autorresponsabilidade do transgressor, beneficiando-o, e, consequentemente, desestimulando o emprego da ampla destreza. É o caso da confissão, atenuante genérica prevista no art. 65, III, d do CP/40, in verbis “Art. 65 – São circunstâncias que sempre atenuam a pena: [...] III – ter o agente: [...] d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime”157. Na lição de Luiz Marques:

Ao confessar espontaneamente a prática delitiva, o acusado demonstra de maneira inequívoca que merece sanção menos severa que outrora, por colaborar decisivamente com as autoridades policial e judiciária na elucidação do crime, assim como, em decorrência do arrependimento pelo ilícito perpetrado (embora nem sempre seja essa a motivação do confitente), primeiro passo rumo à reinserção social do condenado, finalidade última de todo nosso sistema punitivo. [...] O julgador, para chegar à conclusão de seu decisum, pode valorar livremente eventual confissão ministrada pelo acusado, admitindo-se, até mesmo, malgrado o reconhecimento expresso de culpabilidade pelo réu, que se alcance o édito absolutório158.

De outra maneira, é possível estimular a autorresponsabilidade do transgressor – e consequente desuso da ampla destreza - oferecendo-lhe alguma pena alternativa à privativa de liberdade, nos termos dos arts. 43 a 48 do CP/40, que tratam das penas restritivas de direitos, cuja proposta é, mais do que punir, reestruturar socialmente o transgressor159.

É até comum, na prática forense penal, a defesa do transgressor apresentar a tese de substituição da pena privativa de liberdade por alguma restritiva de direitos, não como tese principal, que normalmente é a desresponsabilização, mas como tese subsidiária - na pior das hipóteses, a substituição seria bem-vinda. Nessa situação, não há, de fato, o desenvolvimento da autorresponsabilidade do transgressor, pelo contrário, é a ampla destreza sendo exercida de forma plena.

Diferentemente, o novo instituto intitulado acordo de não persecução penal (ANPP), inserido no CPP/41 sob o art. 28-A, amplia as “possibilidades de o investigado realizar acordo com o Ministério Público antes do oferecimento da denúncia”160. O interessante é que, dentre os requisitos, está a necessidade de o investigado confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal161.

Esse instituto é, quando cabível, referência de combate à ampla destreza no âmbito penal. Como existem outros requisitos e nuances a serem observadas, nem todos poderão usufruir do instituto162. De qualquer forma, a abertura de mais uma opção de negociação penal, sobretudo esta que combate, frontalmente, a ampla destreza, merece destaque e deve servir de modelo para a criação e aperfeiçoamento de estratégias negociais, em todas as áreas do Direito.

Quanto à justiça restaurativa, muito embora tenha se iniciado no Brasil em 2005163, ainda está em uma fase inicial. Ela concerne em

Reabilitar o ofensor através do estímulo de pedir perdão e se retratar diante da vítima [...] nele se insculpiu o mais importante princípio do movimento restaurativo, qual seja, a transformação do ser humano, dando a ele a chance para refletir sobre os seus erros e buscar caminhos a serem trilhados para repará-los de alguma maneira164.

Essa elevação do diálogo à condição de instrumento de transformação da vítima e do agressor “pressupõe o comprometimento com a verdade e com a transparência de sentimentos e intenções”165, opondo-se, portanto, à ampla destreza. “Submeter-se ao longo e doloroso processo de reavaliação dos atos e responsabilidades requer que os envolvidos no ato criminoso estejam dispostos a falar e a ouvir de maneira honesta e transformadora”166.

Parece utópico, mas essa realidade funciona e já é vivida, além daqui, em outros países. É interessante porque, além de combater a ampla destreza, ressignifica a situação conflituosa, oportunizando às partes autoconhecimento, reconhecimento do erro e empatia167.

Não raro, as partes envolvidas no conflito optam por regressar ao sistema tradicional dado o desgaste emocional a que se submetem. E se estas colocações valem para o agressor, também o são para a vítima que, com a mesma dificuldade, tem de lidar com suas emoções, traumas e medos para participar da forma desejada do encontro restaurativo. Levadas em consideração, tais dificuldades demonstram, claramente, que a justiça restaurativa não lança mão de processo mais “fácil” de resolução do conflito, mas sim, de uma metodologia mais ampla e complexa que avança na gênese humana, nos sentimentos; traz fenômenos, caso a caso, muito mais complexos à tona e analisa-os com profundidade jurídica, psicológica e até psiquiátrica168.

É o cenário ideal porque preocupa-se em estabelecer a verdade, buscando sancionar o agressor na medida do necessário e dando a ele, bem como a vítima, a oportunidade de resolverem a questão internamente, trabalhando seus psicológicos.

Na esfera cível, cita-se a autocomposição, antiga no ordenamento jurídico pátrio, mas que só ganhou contornos mais expressivos a partir de 2010169.

Similarmente à justiça restaurativa, a autocomposição – mediação e conciliação – também tem como pressuposto principal o diálogo entre as partes170. Importante destacar que na autocomposição rege o princípio da confidencialidade, sendo

[...] essencial para a garantia de que as sessões de mediação ou conciliação possam ter maior chance de sucesso. Isso porque, garantindo que as informações utilizadas nessas sessões não possam ser utilizadas no referido processo judicial e em outros, isso permite que as partes se sintam mais à vontade para estabelecer um diálogo aberto. Do contrário, sempre haveria o receio de uma determinada informação desfavorável, a exemplo de uma parte que aborda o problema envolvido, reconhecendo sua culpa poder ser utilizada no litígio judicial. A principal função da confidencialidade é a de proteger os seus participantes no caso de ausência de acordo, impedindo que possam ser utilizadas em seu desfavor no processo judicial171.

Dessa forma, intentando o diálogo verdadeiro entre as partes, é-lhes concedido a garantia da confidencialidade, que torna desnecessário, portanto, o exercício da ampla destreza.

Muito embora haja essa garantia que propicia tamanha abertura e transparência entre as partes, a prática forense cível revela uma indisposição das partes em estabelecer um diálogo de verdade, que se limitam a propor, avaliar e aceitar, ou não, acordos. Isso é ruim porque trava a discussão, faz as partes agirem, em algum grau, na defensiva, impedindo que se desvencilhem por completo, ou mesmo que se valham por completo da ampla destreza172.

A matriz teórica que respalda a autocomposição é vasta e pacífica, o seu uso já está bem difundido, o que não obsta a sua contínua ampliação. É preciso, contudo, fomentar nos acordantes a desconstrução da indisposição ao diálogo, aumentando a probabilidade de afastamento da ampla destreza quando houver a composição da lide173.

Também é possível falar em desenvolvimento da autorresponsabilidade do transgressor na esfera administrativa, tanto na administração privada como na pública. Enquanto a primeira, organizada através de contrato entre sócios, preocupa-se, em regra, com o lucro, a segunda, criada ou autorizada por determinação legal, preocupa-se com o bem comum174.

Na administração privada há uma liberdade maior para a transação porque a única coisa que a limita, além da legalidade, é a política interna da contratante. Dispõe, portanto, de um leque considerável de opções resolutivas do problema de forma que lhe satisfaça. Todavia, é interessante que haja uma gradação das sanções a serem aplicadas, do contrário sempre haverá o temor de uma eventual demissão, induzindo o transgressor a valer-se da ampla destreza.

Na administração pública, entretanto, prima o interesse público, cabendo “enfrentar a questão atinente à indisponibilidade do interesse público, caráter distintivo dos entes públicos que litigam, e que pode, à primeira vista, inviabilizar qualquer vislumbre de acordo ante a impossibilidade de tais entes transigirem com relação a seus interesses”175.

Contudo, ainda que a transação resulte em concessões, implicando, portanto, perda à Administração Pública e ao interesse público naquilo que cede, pode ser mais vantajoso em razão da celeridade e da própria liquidez, ou seja, é preferível transigir para cessar e/ou reparar o dano no curto prazo do que pleitear uma indenização mais atraente no longo prazo que, além de demorada, pode não acontecer caso o transgressor esteja em insolvência176.

[...] são diversos os casos em que a negociação pode gerar soluções criativas que prestigiam os interesses públicos de maneira mais apurada que a simples aplicação das soluções já previstas na legislação. Retirar da Administração Pública a possibilidade de negociar soluções alternativas ao descumprimento contratual por parte do contratado significar privá-la da busca pela melhor forma de satisfazer seus próprios interesses, que, como se sabe, devem ser coincidentes com os interesses públicos177.

Como exemplo de transação envolvendo a administração pública, cita-se o termo de ajustamento de conduta (TAC), o qual consiste em

[...] um acordo celebrado entre as partes interessadas com o objetivo de proteger direitos de caráter transindividual [...] [como, por exemplo,] biossegurança, [...] consumidor, [...] criança e adolescente, [...] idoso, [...] meio ambiente etc. [...] Trata-se de um título executivo extrajudicial que contém pelo menos uma obrigação de fazer ou de não fazer e a correspondente cominação para o caso de seu descumprimento178.

O exercício da ampla destreza, nessas situações de violação à direitos transindividuais, acarretaria danos tão graves e extensivos que, a fim de evitar esse ato de desumanidade, é passível de responsabilização objetiva179. O espaço para a ampla destreza é drasticamente reduzido, ou mesmo eliminado.

Existem outros mecanismos que estimulam a autorresponsabilidade do transgressor, citando-se, por exemplo, a colaboração premiada e o termo circunstanciado administrativo (TCA), além de muitos outros, tanto nos ramos do Direito citados, como nos não citados - todos capazes de combater a ampla destreza180. Havendo uma maior difusão dos institutos apresentados e daqueles não citados, mas que cumprem o mesmo propósito, vislumbrar-se-á, à medida que forem utilizados, a modificação do paradigma atual da primazia da mentira e evasão para a primazia da verdade e autorresponsabilidade.

3.2.2 Tipificação do crime de perjúrio: ultima ratio contra o exercício da ampla destreza

Em que pese já haver incompatibilidade entre o exercício da ampla destreza e o ordenamento jurídico pátrio, conforme demonstrado outrora o seu viés ilegal, violador de normas constitucionais e infraconstitucionais, é controversa e usualmente praticado, em um verdadeiro desserviço de convalidação dessa aberração jurídica.

Enquanto inexistem comandos legais que permitam o falseamento deliberado da verdade181, existem vários dispositivos que o proíbem, havendo, ainda, inúmeros institutos que estimulam a autorresponsabilidade do transgressor - mesmo assim, vê-se a ampla destreza sendo utilizada. Insta, portanto, a adoção de alguma medida mais contundente, de natureza sancionatória, a ser utilizada, em ultima ratio, contra o exercício da ampla destreza. Nesta senda emerge o crime do perjúrio, já existente em outros países182, carecendo de tipificação penal no ordenamento jurídico pátrio.

O PL 4192/2015, arquivado desde 2019, buscava alterar o CP/40 para prever o crime do perjúrio. Nos termos do PL supracitado:

Perjúrio

Art. 343-A. Fazer afirmação falsa como investigado ou parte em investigação conduzida por autoridade pública ou em processo judicial ou administrativo:

Pena – prisão, de um a três anos.

§ 1º As penas aumentam-se de um sexto a um terço se o crime é cometido em investigação criminal ou em processo penal.

§ 2º O fato deixa de ser punível se, antes do julgamento no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade.

A plausibilidade da tipificação penal em comento dá-se porque, como observado, o intuito não é cercear a defesa - mesmo havendo falseamento da verdade a subsunção não é imediata, é cabível retratação, desde que em momento oportuno -, tem por fulcro, deveras, sancionar o exercício da ampla destreza em razão do seu viés ilegal.

Na justificação do PL argumenta-se:

O Direito Constitucional ao silêncio decorre da garantia que todos tem de não se auto-incriminar [sic]. Vale dizer, não se pode impor ao investigado ou acusado o dever de produzir prova contra si. O ônus de provar a acusação é do órgão acusador. Ao réu, portanto, é assegurado o direito de manter-se passivo diante da acusação. A mentira, por outro lado, não decorre da passividade do réu, que, ao contrário, assume posição ativa para produzir declaração contrária à verdade183 .

Portanto, é assegurado ao réu o direito de não se autoincriminar, o que inclui manter-se em silêncio, ou mesmo omisso, não havendo, dessa forma, prejuízo à sua defesa e nem ao processo184. Do contrário, o falseamento da verdade decorre de um agir, ato processual que consiste em externar uma construção intelectiva com o objetivo de influenciar o processo ao bel-prazer185. A função social do processo não é essa186. Os valores constitucionais e infraconstitucionais não respaldam esse tipo de conduta187. Muito embora a proposta de alteração legislativa visando o combate a essa realidade devesse ter sido aprovada e promulgada, não o foi, acabou prevalecendo o lobby parlamentar contrário ao interesse coletivo.

Ainda na justificação do PL, encontra-se elucidação de Vladimir Aras no seguinte sentido:

Em qualquer dos países civilizados, o direito ao fair trial, ao devido processo legal, se confirma com as garantias da ampla defesa, do contraditório, da assistência de um advogado ou defensor, com o direito ao duplo grau, ao juiz natural e a um acusador independente e com a prerrogativa de não se auto-incriminar [sic], isto é, ficar em silêncio na polícia ou em juízo. No dilema entre mentir ou confessar, ao réu criminal basta o direito ao silêncio. Nenhum prejuízo advirá se o acusado calar-se. É a lei. Por outro lado, a mentira é ética e juridicamente repudiável, dela podendo advir consequências nefastas para terceiros e para a sociedade188.

É possível, portanto, não dizer a verdade sem falseá-la, através do silêncio e da omissão. A mentira, além de desnecessária quando não se quer ser verdadeiro, prejudica terceiros, prejudica a sociedade.

Haja vista a possibilidade de reapresentação do projeto de lei rejeitado, vez que estão cumpridos os requisitos, faz-se mister a sua ocorrência, em que se espera a aprovação e consequente promulgação em prol da coletividade, do Estado Democrático de Direito e da segurança jurídica. Sancionar, em ultima ratio, aquele que exerce a ampla destreza, é medida necessária, combativa da aberração jurídica perpetuada, conquanto o conjunto normativo e a atividade legiferante existem, em tese, para proteger a coletividade, e não ataca-la. Unum castigabis, emendabis centum - se você reprovar um erro, corrigirá uma centena.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINS, João Pedro. Ampla destreza: exercício abusivo da ampla defesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7300, 27 jun. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88737. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada à Coordenação do Curso de Direito do Centro Universitário Tiradentes, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Maceió, 2020.2. Orientadora: Professora Mestre Mariana Falcão Bastos Costa.

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