Ignorância, ódio e algumas palavras sobre direitos humanos

26/02/2021 às 09:46
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O texto busca apontar a origem e o verdadeiro significado da expressão direitos humanos, demonstrando que a ignorância e o ódio são protagonistas de um movimento que promove o desvirtuamento do significado da expressão, contribuindo para injustiça.

Muitas pessoas não compreendem bem o significado da expressão “Direitos Humanos”, por acreditarem tratar-se de algo criado para proteger criminosos, fato que não passa de um grande equívoco.

Certamente há mais de uma razão para a confusão, entre as quais podemos citar a precária formação educacional que atinge a muitos, e o proposital desvirtuamento do conceito, promovido por certos setores da sociedade - mídia sensacionalista, políticos oportunistas, etc.  

Pois bem, avaliando os eventos históricos do tema nota-se que o primeiro registro de declaração dos direitos humanos se deve ao rei Ciro, da antiga Pérsia que, em uma peça de argila delineou princípios básicos de direitos humanos que provocaram a libertação de escravos da cidade da Babilônia em 539, antes de Cristo. [1]

Dando um salto na história chegamos ao ano de 1776, nos Estados Unidos, cujo processo de independência contou com a elaboração de uma Declaração propugnando pelo direito à vida, à liberdade e à busca pela felicidade.

Seguindo, encontramos ainda a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, promovida pela Revolução Francesa, no movimento chamado iluminismo, cujos princípios são bem conhecidos – igalité, fraternité, liberté (1789). 

Mais recentemente, em 1948, motivada pelas atrocidades produzidas pelo governo fascista de Adolf Hitler, foi criada a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, com objetivo definitivo de promover a dignidade humana e a paz entre os cidadãos. 

Vale dizer que as atrocidades comandadas por Hitler somente foram possíveis graças à postura de retirar, por assim dizer, a humanidade do indivíduo judeu (e demais perseguidos). Ora, se judeu não é ser humano, o é, então, qualquer coisa. E contra qualquer coisa, pode-se tudo, inclusive eliminá-la.

Nesse sentido, o ódio de Hitler aos judeus estabeleceu a premissa, e os passos seguintes trataram de dissemina-la em meio ao povo alemão, aparelhando a lei com o objetivo de amparar e legitimar as atrocidades.  

O penalista Hans Von Welzel, professor da Universität Göttingem, concordou com a manipulação do princípio da adequação social para bem atender os ditames do Terceiro Reich.

Veja. Referido princípio estabelece que condutadas socialmente aceitas não podem ser criminalizadas. E se ficou socialmente aceito que judeu é qualquer coisa, então, não há crime algum na prática que leva à sua eliminação. O resultado disso é bem conhecido.

Welzel também congratulou-se com a flexibilização da vedação da analogia no direito penal (§ 2º, do art. 2º do Código Penal Alemão - StGB).

Então, naquele contexto, o que se viu foi o ódio assumir um papel determinante para guiar um processo de desumanização do humano imposto ao povo judeu, pelo que, a história do nazismo deveria ser suficiente para conscientização eterna de respeito à condição primeira de humanidade e de controle do ódio.

No livro “As Benevolentes”, do americano Jonathan Littel, narra-se a história de Maximilien Aue [2]. Trata-se de um oficial nazista integrante da temida SS e que atuara intensamente no front de Stalingrado.

O oficial conta que a carnificina era tanta que, em determinado momento, muitos militares executores já não suportavam mais a situação e foram acometidos de seríssimos problemas psicológicos e de embriaguez, havendo, inclusive, muitos casos de suicídio. Diante disso, resolveu-se então que, não somente as covas seriam cavadas pelos judeus prisioneiros, mas também a execução das mortes seria feita por “gente deles”. Conseguia-se, assim, afastar significativo número de militares do contato direto com a execução das mortes e, por conseguinte, reduzir o problema.

Para se ter uma ideia da força e da necessidade da ideologia do ódio nazista, Hitler já havia dito na sua obra, Mein Kampf, que se não houvesse o judeu, teria sido necessário inventá-lo tamanha a utilidade que há para canalização do ódio difuso que perpassa o cotidiano quando há um inimigo comum contra quem se pode cuspir e escarrar [3].

O mais estarrecedor é que, passado o nazismo, o ódio continua pulsante, vívido e impregnado no tecido social (agora sem farda e globalizado) manifestando-se através de discursos, ações (coletivas ou individuais) e até mesmo atos de agentes públicos que incitam a discriminação racial, social e religiosa, provocando violência moral, física e fatal.

Nesse contexto (de ignorância e de ódio), o desvirtuamento do conceito de direitos humanos, que criou nos últimos anos a lógica da sub expressão “direitos humanos para humanos direitos”, pode ter apoio nos interesses escusos de um líder (facínora) ou de um seguimento social (perverso) de momento. Ora, não é possível que primados que se revelam como conditio sine quo non para existência da vida humana possam sem manipulados ao gosto dos autoritários de plantão.

Por tudo isso, somente por equívoco ou por má fé é possível traduzir a expressão “Direitos Humanos” como manto protetor de criminosos e, neste sentido, colaciono um trecho da exposição de motivos e também de seis, dos 30 artigos da “Declaração Universal de Direitos Humanos”, para confirmar nossa alegação.

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“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum,

Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,

(...)

Artigo 1 - Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 3 - Todo o homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 5 - Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo 16 - I) Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, tem o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.

Artigo 17 - I) Todo o homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.

II) Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo 23 - II) Todo o homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.

Encerra-se com uma frase de Nelson Mandela: “A educação é a arma mais poderosa para mudar o mundo”.

  1. https://www.politize.com.br/direitos-humanos-o-que-sao/
  2. Flavio Ricardo Vassoler em https://www.youtube.com/watch?v=MBnDEeuX7DM
  3. Littell, Jonathan. As Benevolentes. Trad. Andre Telles. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

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Sobre o autor
Rogério Neres

Advogado criminal e professor de Direito penal; Mestre em Direito penal pela PUC-SP; Cursou a Escola Alemã de Ciências Criminais da Universität Göttingen, na Alemanha; Pós graduado em Direito penal econômico pela Universidade de Coimbra/Ibccrim; Associado ao Ibccrim e membro do IDDD.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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