A expressão princípio exprime a noção de mandamento nuclear do sistema. No âmbito contratual, os princípios constituem os preceitos básicos da organização dos contratos.
Os princípios são os postulados fundamentais que inspiram a elaboração das normas jurídicas. Estas são editadas em consonância com os princípios.
Esses princípios, às vezes, encontram-se contidos numa norma. Tal ocorre, por exemplo, com os princípios da probidade e boa-fé, previstos no art. 422 do CC.
A norma que contém um princípio é denominada de norma diretiva, exercendo importante papel na hermenêutica, pois, na dúvida acerca da adoção de uma ou outra interpretação, o hermeneuta deve adotar a exegese que mais atenda ao princípio contido na sobredita norma.
Saliente-se, porém, que diversos princípios encontram-se implícitos, guardando valores fundamentais da ordem jurídica.
1. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos constitucionais fundamentais irradiam efeitos no mundo jurídico não só nas relações entre o indivíduo e o Estado (eficácia vertical dos direitos fundamentais), como também nas relações privadas, travadas entre particulares, que é a denominada eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
É, por exemplo, nula a cláusula contratual que afrontar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Assim, os direitos fundamentais vinculam não apenas os poderes públicos, mas também os próprios particulares quando realizam negócios jurídicos. Modernamente operou-se a constitucionalização do direito civil, que se transmudou num direito civil constitucional, funcionando a Constituição Federal, sobretudo no que diz respeito aos seus direitos fundamentais, ao mesmo tempo como limite e garantia dos direitos privados.
Dentre os princípios constitucionais aplicáveis aos contratos, merecem destaque: a dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF), solidariedade social (art. 3º, I, da CF) e igualdade (art. 5º, caput, da CF). O Código Civil, como se sabe, contém inúmeras cláusulas gerais (conceitos legais indeterminados), como é o caso dos princípios da função social dos contratos e boa-fé objetiva. Essas cláusulas gerais, conforme observa o Ministro Gilmar Mendes, do STF, são a porta de entrada dos valores constitucionais nas relações privadas, pois estes preenchem aquelas.
2. DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIO E NORMA
O princípio lança sua força sobre todo o ordenamento jurídico, atuando numa área muito mais ampla do que a norma, pois esta se limita a regular situações específicas.
Os princípios são as premissas éticas que inspiram a elaboração das normas jurídicas. São mais do que normas, pois sua função primordial é servir como critério de interpretação destas, devendo ser observados pelo legislador, quando elabora as leis; pelos juízes, quando as aplica; e pelo cidadão, quando realiza o negócio jurídico.
3. CLASSIFICAÇÃO
No sistema contratual, destacam-se os seguintes princípios:
autonomia da vontade;
supremacia da ordem pública;
função social dos contratos;
boa-fé;
consensualismo;
obrigatoriedade;
relatividade.
3.1. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE
De acordo com esse princípio, as partes são livres para estipular as cláusulas contratuais e o tipo de contrato.
A autonomia da vontade compreende:
a) a liberdade de escolher o tipo de contrato;
b) a liberdade de escolher a pessoa com quem se irá contratar;
c) a liberdade de contratar ou não contratar;
d) a liberdade de escolher o conteúdo do contrato. Assim, os contratantes são livres para estipular o que lhes convenha, inclusive dispondo diversamente da lei. De fato, as normas contratuais, em regra, são supletivas ou subsidiárias, pois podem ser alteradas por vontade das partes. No silêncio do contrato, porém, essas normas do Código Civil são de aplicação obrigatória.
O princípio da autonomia da vontade, porém, não é absoluto, pois a liberdade dos contratantes encontra-se limitada pelo princípio da supremacia da ordem pública e pelos dois princípios do contrato que traçam as diretrizes da noção de socialidade. Esses dois princípios são:
a) princípio da função social do contrato;
b) princípio da boa-fé objetiva.
Alguns civilistas distinguem a liberdade de contratar e liberdade contratual. A primeira é o direito de celebrar ou não o contrato, podendo, até escolher o outro contratante, sendo, pois uma liberdade plena, em regra, comportando poucas exceções como é o caso do art.497 do CC que, dentre outras hipóteses, proíbe o administrador de comprar o bem que administra. A segunda é o direito de fixar, de comum acordo, o conteúdo do contrato como melhor lhes aprouver; nesse caso, a liberdade é mais fortemente afetada, encontrando-se limitada pelos valores constitucionais e princípios da supremacia da ordem pública, função social e boa-fé objetiva. Portanto, o poder da vontade é limitado pelo direito, razão pela qual alguns autores preferem denominar o princípio de autonomia privada, em vez de autonomia da vontade, porquanto a vontade é algo subjetivo, psicológico, enquanto que a autonomia contratual é exercida dentro dos limites permitidos pelo direito, de forma objetiva, real.
A função social do contrato, prevista no art.421 do CC, porém, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas apenas atenua ou reduz o seu alcance, máxime quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana (Enunciado 23 do CJF/STJ).
3.2. PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA ORDEM PÚBLICA
O princípio da supremacia da ordem pública é o que limita a liberdade de contratar, vedando as convenções contrárias às normas cogentes e aos bons costumes.
As normas cogentes ou coativas são as que não podem ser modificadas pela vontade das partes. Podem ser:
a) imperativas: são as que ordenam algum ato. Tal ocorre, por exemplo, com a lei que obriga o comerciante a vender mercadoria a quem quiser comprá-la.
b) proibitivas: vedam algum ato. Tal ocorre, por exemplo, com a lei que proíbe o anatocismo (juros compostos). Outro exemplo é a vedação da cláusula leonina nos contratos de sociedade.
Assim, o chamado dirigismo contratual consiste na intervenção do Estado no conteúdo dos contratos para evitar o desequilíbrio entre as partes e o abuso do poder econômico. Essa intervenção se dá através da edição de leis de ordem pública, editadas pela União, pois os Estados-Membros não podem legislar sobre contratos (art. 22 da CF).
Maria Helena Diniz realça, porém, que “o Estado intervém no contrato, não só mediante a aplicação de normas de ordem pública, mas também com a adoção de revisão judicial dos contratos, alterando-os, estabelecendo-lhes condições de execução, ou mesmo exonerando a parte lesada, conforme as circunstâncias, fundando-se em princípios de boa-fé e de supremacia do interesse coletivo, no amparo do fraco contra o forte, hipótese em que a vontade estatal substitui a vontade dos contratantes, valendo a sentença como se fosse declaração volitiva do interessado”.
3.3. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
Dispõe o art. 421 do CC que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Há, no dispositivo em análise, um equívoco ao referir-se à liberdade de contratar, pois esta liberdade, em regra, é absoluta, não sofre limites; o que na verdade é limitada pelo princípio da função social é a liberdade contratual. Acrescente-se ainda que o princípio da função social dos contratos é considerado, pelo art.2.035 do CC, como sendo preceito de ordem pública, logo o magistrado pode, de ofício, analisar se o contrato atende ou não a esse princípio.
O combate ao individualismo, que já era feito pelo princípio da supremacia da ordem pública, com o advento do Código de 2002 passou a ser reforçado pela função social do contrato, limitando ainda mais a autonomia da vontade, sem, porém, suprimí-la.
A lei não define o que vem a ser função social do contrato, de modo que poderá ser interpretada de formas diversas, propiciando a declaração de nulidade de cláusulas ou de todo o contrato. Decerto o legislador inspirou-se no art. 5°, XXIII, da CF, que limita o direito de propriedade ao atendimento de sua função social. Sendo o contrato um meio natural de promover a circulação de riquezas, urge que os interesses individuais das partes sejam compatibilizados com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem.
Assim, o princípio da função social do contrato consiste na prevalência do interesse coletivo sobre os interesses individuais dos contratantes. Tem por fundamento constitucional o princípio da solidariedade (art.3º, I, da CF).
O princípio da função social dos contratos deve ser observado em dois aspectos:
a) eficácia interna ou intrínseca: refere-se ao conteúdo contratual que as partes devem observar. Exemplos: proibição da onerosidade excessiva; proteção à dignidade da pessoa humana; observância dos direitos constitucionais fundamentais etc.
b) eficácia externa ou extrínseca: refere-se à obrigatoriedade de o contrato respeitar direitos de terceiros e da sociedade. O contrato não pode, por exemplo, ser prejudicial ao meio ambiente. Outro exemplo é a tutela externa do crédito (art.608 do CC).
O contrato, como salienta Nelson Nery Junior, “tem de ser entendido não apenas como as pretensões individuais dos contratantes, mas como verdadeiro instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade, onde encontra sua razão de ser e de onde se extrai a sua força, pois o contrato pressupõe a ordem estatal para lhe dar eficácia”.
O ilustre civilista ainda esclarece que “o contrato estará conformado à sua função social quando as partes se pautarem pelos valores da solidariedade (art. 3°, I da CF) e da justiça social (art 170, caput da CF), da livre iniciativa, for respeitada à dignidade da pessoa humana (art. 1°, III da CF), não se ferirem valores ambientais, etc.”
Haverá desatendimento da função social, quando: a) a prestação de uma das partes for exagerada ou desproporcional, extrapolando a álea normal do contrato; b) quando houver vantagem exagerada para uma das partes; c) quando quebrar-se a base objetiva ou subjetiva do contrato etc.
Assim, o contrato só cumprirá a sua função social quando for simultaneamente útil e justo. A utilidade e a justiça devem ser analisadas sobretudo em face dos interesses metaindividuais, do interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana e de outros preceitos constitucionais.
Acrescente-se ainda que, alguns autores sustentam que a desconformidade do contrato com sua função social pode ser corrigida pela via da revisão judicial do contrato. Outros, ao revés, preconizam que não é cabível essa revisão judicial, pois violaria o princípio da autonomia da vontade, de modo que o juiz, ao invés de alterar a cláusula contratual, deverá simplesmente anulá- la, e, em casos extremos, decretar a nulidade do próprio contrato.
Finalmente, além do art. 421 do CC, o princípio da função social ainda é consagrado no parágrafo único do art. 2.035 do CC, cujo teor é o seguinte: “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.
Uma primeira corrente sustenta que o dispositivo em análise é inconstitucional, pois a lei não pode retroagir para violar o ato jurídico perfeito, conforme art. 5º, inciso XXXVI da CF, que consagra o princípio da segurança das relações jurídicas.
Uma segunda corrente, acertadamente, preserva o dispositivo em análise, pois, conforme ensina Maria Helena Diniz, “incabível é a existência de direito adquirido ou ato jurídico perfeito contra norma de ordem pública, aplicável retroativamente a atos anteriores a ela. O direito precedente cede a ela o lugar, submetendo-se ao princípio da função social do contrato e da propriedade, com os quais não pode conflitar, visto que têm supremacia por força da Constituição Federal”. A propósito, dispõe o Enunciado 300 do CJF/STJ: “A lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes do novo Código Civil será a vigente na época da celebração; todavia, havendo alteração legislativa que evidencie anacronismo da lei revogada, o juiz equilibrará as obrigações das partes contratantes, ponderando os interesses traduzidos pelas regras revogada e revogadora, bem como a natureza e finalidade do negócio”.
3.4. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
A boa-fé pode ser dividida em:
a) objetiva: também chamada de concepção ética da boa-fé;
b) subjetiva: também denominada de concepção psicológica da boa-fé.
Desde logo, cumpre ressaltar que a boa-fé subjetiva exerce função preponderante na interpretação dos contratos, ao passo que a boa-fé objetiva atua mais como fonte integrativa, isto é, criando direitos e obrigações não previstos expressamente.
Saliente-se ainda que tanto a boa-fé objetiva quanto a subjetiva exercem uma função de controle sobre o contrato.
3.4.1. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
O princípio da boa-fé objetiva é o que impõe aos contratantes a obrigação de agir corretamente, nos padrões do homem comum, segundo os usos e costumes do lugar. É, pois, fonte de direito e obrigações, assim como a lei, porquanto ordena aos contratantes que ajam com probidade, honestidade e lealdade. Portanto, como ensina Nelson Nery Júnior, reputa-se celebrado o contrato com todos esses atributos que decorrem da boa-fé objetiva.
A Jornada STJ 26 define a boa-fé objetiva como a exigência de comportamento leal dos contratantes. E o enunciado 168 do CJF/STJ estabelece que “o princípio da boa-fé objetiva importa no reconhecimento de um direito a cumprir em favor do titular passivo da obrigação”.
A boa-fé objetiva cria para os contratantes a obrigação de cumprir alguns deveres anexos, isto é, implícitos no contrato. A propósito, a Jornada STJ 24 preceitua: “Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”. É o que a doutrina moderna denomina de violação positiva da obrigação ou do contrato.
O art. 422 do CC dispõe que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução os princípios de probidade e boa-fé”. Portanto, a boa-fé objetiva é um preceito de ordem pública, devendo ser examinada de ofício pelo juiz. Fundamenta-se no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF).
Observe-se que o legislador acrescentou à boa-fé o atributo da probidade, que consiste no comportamento moral das partes. Desses dois princípios, boa-fé objetiva e probidade, decorrem as expectativas de atitudes dos contratantes, no sentido de eles cooperarem reciprocamente pelo cumprimento dos deveres anexos, cuja análise deve ser conforme o padrão do homem médio e os usos e costumes locais.
A infringência à boa-fé objetiva propicia a intervenção do Estado nas relações contratuais. De fato, dispõe a Jornada STJ 26 que “a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes”.
Assim, lealdade e confiança são pressupostos da relação contratual, porquanto a boa-fé objetiva impõe aos contratantes o dever de conduta socialmente adequado aos usos e costumes locais. Os contratantes devem garantir a concretização das expectativas geradas pelo contrato.
O princípio da boa-fé objetiva é aplicável:
a) na fase pré-contratual;
b) na fase da formação do contrato;
c) na fase da execução do contrato;
d) na fase pós-contratual, isto é, após o término da execução do contrato.
A redação do art. 422 do CC, porém, é insuficiente, porque não faz menção à fase pré-contratual das negociações preliminares nem à fase pós-contratual (pós pactum finitum). Essas duas fases, porém, estão compreendidas. A propósito, salienta a Jornada STJ 25: “O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual”. Com isso, salienta Nelson Nery Junior, “os entabulantes, isto é, ainda não contratantes, podem responder por fatos que tenham ocorrido antes da celebração e da formação do contrato (responsabilidade pré-contratual) e os ex-contratantes, quando o contrato já se findou pela sua execução, também respondem por fatos que decorram do contrato findo (pós-eficácia das obrigações contratuais).
Por outro lado, o princípio da boa-fé objetiva já era previsto no Código de Defesa do Consumidor, de modo que nas relações consumeristas:
a) a oferta deve conter a informação ou publicidade suficientemente precisa (art.30);
b) o fornecedor deve assegurar ao consumidor o conhecimento prévio do conteúdo do contrato (art. 46);
c) o fornecedor deve garantir a continuidade da oferta de componentes e peças de reposição, após o contrato de aquisição do produto (art. 32) etc.
Finalmente, a prestigiada Maria Helena Diniz destaca que pelo art. 51, incisos de I a XVI, da Lei nº 8.078/90, em caso de relação de consumo, haverá nulidade de pleno direito das cláusulas abusivas, desleais ou leoninas, como por exemplo, as que:
a) exonerarem ou atenuarem a responsabilidade do fornecedor por vícios dos produtos ou serviços ou transferirem sua responsabilidade a terceiro;
b) prescreverem inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;
c) deixarem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;
d) autorizarem o fornecedor a cancelar, modificar o contrato ou a variar o preço unilateralmente;
e) possibilitarem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias.
A nulidade da cláusula, que contiver conteúdo desleal, não invalidará o contrato, nas relações de consumo, exceto quando de sua ausência houver ônus excessivamente a qualquer das partes (art. 51, § 2°, da Lei nº 8.078/90).
3.4.2. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ SUBJETIVA
O princípio da boa-fé subjetiva, também chamado de concepção psicológica da boa-fé, fundamenta-se numa crença ou ignorância. De acordo com esse princípio, nas declarações de vontade se atenderão mais à intenção nela consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem (art. 112 do CC).
A boa-fé subjetiva atua como fonte de interpretação da declaração de vontade. Aliás, o art. 113 do CC dispõe que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração”.
A boa-fé é, pois, a crença de estar agindo corretamente. Tal ocorre, por exemplo, quando o contratante ignora estar prejudicando interesse alheio.
A boa-fé é presumida, de modo que a alegação de má-fé deve ser comprovada pelo contratante que argui-la. O Código de Defesa do Consumidor, porém, prevê a inversão do ônus da prova, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação do consumidor ou quando este for hipossuficiente segundo as regras ordinárias de inexperiência (art. 6º, VIII). Portanto, presentes esses requisitos, opera-se a presunção de má-fé do fornecedor. Este deverá comprovar a sua boa-fé, invertendo-se, destarte, o ônus da prova.
3.4.2.1. FUNÇÕES DA BOA-FÉ
A boa-fé exerce tríplice função, a saber: interpretativa, integrativa e de controle.
A função interpretativa, que é típica da boa-fé subjetiva, consiste em revelar a vontade dos contratantes segundo os preceitos de lealdade e confiança. Dessa função decorrem:
a) o princípio da preservação dos contratos: de modo que, em regra, a nulidade de uma cláusula, que contiver conteúdo desleal, não invalidará todo o negócio;
b) o princípio da conversão dos contratos: consistente na transformação de um contrato nulo noutro válido, de espécie diferente, quando presentes os requisitos formais e substanciais deste, desde que a intenção das partes tenha sido realmente a celebração desse último negócio. Assim, a compra e venda de imóvel celebrado por instrumento particular pode ser convertida em compromisso de compra e venda;
c) o princípio do menor sacrifício do devedor: anote-se, porém, que a boa-fé objetiva, na medida em que cria novos direitos e deveres contratuais, acaba também auxiliando na interpretação sistemática dos contratos.
A função integrativa, ao revés, consiste na explicitação dos direitos e deveres anexos, isto é, não previstos expressamente no contrato. Assim, a despeito da omissão do contrato, compete ao vendedor colaborar com a retificação no Registro de Imóveis, fornecendo os documentos necessários. Essa função integrativa, que é típica da boa-fé objetiva, às vezes também é exercida pela boa-fé subjetiva. Com efeito, conforme salienta Nélson Nery Junior, às vezes a boa-fé subjetiva amplia as obrigações contratuais já existentes e as integra com obrigações primárias e secundárias de conservação e respeito do direito alheio.
Finalmente, a função de controle contratual, consistente na delimitação dos direitos que uma parte pode exercer contra a outra, é baseada na boa-fé subjetiva e na boa-fé objetiva. Com efeito, a boa-fé subjetiva, na qual se enfatiza a crença, alivia ou tempera as obrigações assumidas no contrato, evitando, por exemplo, o vir contra os próprios atos, isto é, o exercício de um direito em contradição com o comportamento exercido anteriormente (venire contra actum proprium non valet). Acrescente-se, ainda, que com a boa-fé objetiva, na qual se destaca a lealdade, amplia-se o conceito de abuso de direito, que doravante passa também a compreender:
a) a manifesta desproporção entre o exercício de um direito e o sacrifício imposto à outra parte;
b) o desleal exercício ou não exercício de um direito;
c) a desleal constituição de um direito.
Assim, quem contraria a boa-fé objetiva comete abuso de direito, cuja responsabilidade é objetiva, independentemente de culpa.
3.4.2.2. A BOA-FÉ OBJETIVA E A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS
De acordo com essa teoria, o contratante não pode contradizer um comportamento anterior seu, em homenagem aos princípios da lealdade e confiança.
Conquanto não proibido expressamente por lei, os atos próprios se revelam como abuso de direito, e, por isso, sua prática é ilícita.
São quatro as situações que integram a teoria dos atos próprios:
a) Venire contra factum proprium: o agente não pode contrariar o próprio comportamento. Exemplo: a pessoa não pode, depois de autorizar a revelação de informações pessoais suas, pleitear a indenização pelas perdas e danos. Outro exemplo: o plano de saúde que, por anos, recebe as contribuições do segurado, não pode alegar que a doença era anterior ao contrato.
b) Supressio (verwikung): o direito se extingue quando o seu não exercício no tempo revelar a intenção de não mais exercê-lo. É uma espécie de renúncia presumida. O art.330 do CC prevê que o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir a renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato. Outro exemplo: é a demora excessiva no ajuizamento da ação de indenização por danos morais, que faz presumir a ausência de sofrimento grave. Não basta, para a caracterização da supressio, o não exercício prolongado do direito, pois é preciso ainda a presença de circunstâncias fáticas, ou baseadas na experiência ordinária, que levam a crer que o titular abriu mão de exercê-lo, distinguindo-se, nesse aspecto, da prescrição e decadência, que se operam com o simples decurso do tempo. A supressio, que é a perda do direito, faz nascer, para a outra parte, a surrectio, que é a aquisição do direito em razão de um comportamento continuado. O art.330 do CC gera ao mesmo tempo a supressio, diante da perda do direito de pagar no local do contrato, e a surrectio, aquisição do direito de continuar pagando no local no qual se fez o pagamento por reiteradas vezes.
c) Tu quoque: o agente que descumpre a norma jurídica não pode invocar em seu favor essa mesma norma jurídica. Assim, o sujeito que descumpre o contrato não pode exigir que a outra parte cumpra, e, se o fizer, esta terá direito à exceptio non adimpleti contractus.
d) Duty to mitigate the loss: que é a mitigação do prejuízo pelo próprio credor, é também inspirado na boa-fé objetiva. A propósito o enunciado 169 do CJF/STJ: “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. A propósito, dispõe o art.769 do CC: “O segurado é obrigado a comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé”.
3.5. PRINCÍPIO DO CONSENSUALISMO
De acordo com o princípio do consensualismo, o acordo de vontades é suficiente para gerar a formação válida do contrato.
Esse princípio comporta duas exceções.
A primeira é referente aos contratos solenes, isto é, que exigem forma escrita. Nesse caso, enquanto o ajuste não for reduzido a escrito, o contrato não estará concluído validamente.
A segunda é atinente aos contratos reais, isto é, aqueles que só se formam com a entrega da coisa. Dentre esses contratos, destacam-se:
mútuo;
comodato;
penhor;
depósito;
doações manuais de coisa móvel de pequeno valor.
Nesses contratos, o simples acordo de vontades é insuficiente para a sua existência, sendo, pois, imprescindível a entrega da coisa. Antes dessa entrega ainda não haverá contrato, mas mera promessa de contratar.
3.6. PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE OU PACTA SUNT SERVANDA OU PRINCÍPIO DA FORÇA VINCULANTE DOS CONTRATOS
De acordo com o princípio da obrigatoriedade, o contrato deve ser fielmente cumprido pelos contratantes, sendo, pois, lei entre as partes.
Desse princípio decorre a intangibilidade do conteúdo do contrato, que não pode ser alterado unilateralmente por uma das partes.
A revisão judicial do contrato, em regra, não é admitida, devendo o magistrado limitar-se a anular as cláusulas abusivas, ao invés de alterar o seu conteúdo. Excepcionalmente, porém, o magistrado pode modificar o conteúdo contratual para fazer preservar os princípios da função social e da boa-fé objetiva, outrossim, para aplicar a chamada teoria da imprevisão (arts. 478 a 480), cujo estudo será desenvolvido no capítulo referente à extinção dos contratos.
Saliente-se, ainda, que o art. 49 do CDC contém mais uma exceção ao princípio da obrigatoriedade, porquanto permite ao consumidor desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias, a contar da assinatura ou do ato do recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone e a domicílio.
Finalmente, a última exceção ao princípio da obrigatoriedade ocorre quando o descumprimento do contrato é justificado por caso fortuito ou força maior.
3.7. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE
De acordo com o princípio da relatividade, o contrato só produz efeitos entre as partes. Não beneficia nem prejudica terceiros. Assim, em regra, não se pode, através de um contrato, criar direitos e obrigações para terceiros.
Todavia, o princípio da relatividade comporta as seguintes exceções:
a) as estipulações em favor de terceiro (art. 436 a 438);
b) promessa de fato de terceiro (arts.439 a 440);
c) contrato com pessoa a declarar (arts.467 a 471);
d) a responsabilidade de os herdeiros cumprirem os contratos do de cujus, até as forças da herança (art. 1.792);
e) o poder de o consumidor acionar judicialmente o fabricante, produtor, construtor ou importador, mesmo não tendo contratado diretamente com eles, na hipótese de reparação de danos causados por defeitos ou informações insuficientes do produto (art. 12 do CDC). A compra e venda do Código Civil, porém, é res inter alios acta em relação a essas pessoas, de modo que o comprador não pode acioná-las judicialmente.
Por outro lado, o princípio da função social do contrato não eliminou o princípio da relatividade dos contratos, mas com certeza o abrandou. Como esclarece Antonio Junqueira de Azevedo, “aceita a idéia de função social do contrato, dela evidentemente não se vai tirar a ilação de que, agora, os terceiros são partes do contrato, mas, por outro lado, torna-se evidente que os terceiros não podem comportar-se como se o contrato não existisse”.
No concernente à tutela externa do crédito, dispõe o art.608 do CC: “Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos”. Referida indenização, a meu ver, é paga independentemente da demonstração do prejuízo, que no caso é presumido.
Referências Bibliográficas
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GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, Vol. 3: Contratos e Atos Unilaterais, Editora Saraiva, 9ª Edição, São Paulo, 2012.
PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, Vol 3 – Contratos: Declaração Unilateral de vontade; Responsabilidade civil, 12ª edição, Rio de Janeiro, Editora Forense, 2006.
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