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Os fundamentos do "semidireito internacional".

Uma crítica política ao sistema jurídico internacional

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03/09/2006 às 00:00
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IV. OS FUNDAMENTOS DO SEMIDIREITO INTERNACIONAL: LINHAS E PROPOSTAS GERAIS

Se analisado de forma epistemologicamente isolada, o Direito Internacional acaba por se tornar disforme, não atendendo aos seus reclames, objetos e pressupostos fundamentais. O Direito Internacional, em seu sentido formalista, não foi, ao longo dos séculos, criado em um vácuo. Pelo contrário, é produto, como já asseverado, das forças políticas inseridas em uma moldura mais ampla da ordem mundial. Não se deve investigar a eficácia do Direito Internacional sem levar em devida consideração as forças políticas subjacentes. São essas forças e correlações de poder que precisam ser contempladas para explicar a complexa e entrópica realidade político-jurídica internacional. Advoga-se que o Semidireito Internacional, como corrente intermediária e conciliatória, não seja avaliado de forma dogmática somente como ordem deôntica do Sollen ("dever ser") em seu sentido material, e sim seja vislumbrado mais ampla e criticamente em parceria com a perspectiva das Relações Internacionais, cuja premissa maior é o Sein ("ser").

O estudo mais aprofundado do Semidireito Internacional com ênfase no processo de internalização dos atos internacionais no sistema normativo coativo dos países revela suas cinco fendas de incompletude e assimetria. Os cinco pontos abaixo representam os fundamentos do modelo que defendemos com a existência do "Semidireito internacional" como parte da crítica de cunho político ao sistema jurídico internacional.

1. Como não há a tão desejada tripartição montesquiana do poder público-estatal no plano internacional, pois existe a hipertrofia do Executivo no plano externo no processo de negociação, assinatura bem como de promulgação, publicação e registro dos atos internacionais, há concentração do poder com reduzida legitimação da volonté géneral (Rousseau). Assim, o Semidireito Internacional, como nascente da vontade desse Executivo hipertrofiado, ainda se mostra excessivamente estatocêntrico e antidemocrático pelo fato de não corporificar uma das principais premissas na formação do Direito objetivo: o processo legislativo pleno emanado democraticamente do povo, pelo povo e para o povo; [24]

2. O Semidireito Internacional evidencia o caráter voluntarista tanto no processo de assinatura ou de adesão dos atos jurídicos internacionais como também na denúncia dos respectivos atos pelos Estados nacionais;

3. A inexistência de um legislador inclusivo e democrático e de um judiciário dito "universais" com capacidade de imposição, fiscalização e coercitividade erga omnes revela as precariedades legais como meio regulador imparcial, objetivo e plenamente aceito pelos sujeitos internacionais (Estados, por competência originária, os Organismos Internacionais, por competência derivada, e, mais recentemente, os indivíduos, por competência extrapolativa ou também denominada, a nosso ver, de competência sistêmica); [25]

4. O Semidireito Internacional representa um conjunto normativo parcialmente deôntico, primitivo, [26] descentralizado atrelado ao trinômio força-poder-interesse, e é, como tal, estratificado em alta densidade (high politics) com quase nenhuma efetividade e eficácia e em baixa densidade (low politics) com alguma efetividade e eficácia assim determinado pela(s) superpotência(s) que amolda(m) e define(m) a "ordem mundial"; [27]

5. E, por fim, nem toda práxis externa dos Estados tem potencial jurígeno, conseqüentemente, nem toda jurisidicidade (mesmo que parcial, incompleta e assimétrica) resulta em regulação normativa da conduta internacional; ou seja, como se comprova a existência de hierarquia entre os Estados, ocorre uma subornização de interesses e não uma coordenação isonômica dos Estados. [28]

Alguns dos pontos explanados acima possuem um caráter de conhecimento amplo nos meios extra-acadêmicos. De qualquer forma, optou-se por realizar uma listagem dos cinco principais elementos (premissas norteadoras) que fundamentam o neologismo do Semidireito Internacional aqui defendido neste artigo.


V. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Diante das recorrentes transformações do cenário internacional marcado pela entropia, pelo hobbesianismo e pela desigualdade das relações de "força-poder-interesse" dos Estados é que o neologismo "Semidireito Internacional" foi aqui proposto. O esboço temático e teórico reforça a antinomia existente entre os atores internacional. O cenário internacional não é isonômico nem tampouco espelha os princípios idealistas de uma "comunidade internacional" justa, equilibrada e regida plenamente pelo DI. O cenário internacional é hierárquico de acordo com o poder relativo dos Estados. Também assim funciona o Semidireito Internacional, pautado nos interesses escalonados de acordo com o poder relativo dos Estados, classificados por meio de uma moldura de mensuração deste poder estatal.

Assim, importante mencionar a classificação das potências, à guisa de ilustração da engenharia de funcionamento do Semidireito Internacional, de acordo a ordem mundial vigente: superpotência (hegemonia plena com o exercício único, atualmente, dos EUA em escala global); potência (hegemonia parcial ou residual com vários centros descentralizados de poder regional como a UE, República Popular da China e Federação Russa); potência regional ou potência média (exercício de prepondência e influência não-hegemônica em escala regional ou sub-regional como com o Brasil na América do Sul, a África do Sul na África Subsahariana, a Índia no subcontinente indiano, e Japão em parte do leste e sudeste Asiático), potência regional ou média secundária (exercício de equilíbrio da influência na balança de poder regional ou sub-regional com o ideário de rivalidade com as potências regionais ou médias, como no caso da Argentina na América do Sul, do Paquistão no subcontinente indiano, Nigéria na África Subsahariana e Egito no eixo Oriente Próximo-África Sahariana), os Estados dependentes – também chamados de "Estados satélites" de uma esfera de influência – e os micro-estados com pouca ou quase nenhuma projeção de poder relativo.

Nesse sentido, o caso clássico julgado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) em 1986 intitulado Atividades Militares e Paramilitares Internas contra a Nicarágua – Nicarágua versus EUA – mostra que, mesmo tendo dado ganho de causa à Nicarágua, ainda hoje não obteve a necessário reparação aos atos cometidos pelos EUA. O caso da mais alta Corte do Sistema da ONU materializa os institutos do modelo do Semidireito Internacional aqui defendido. Revela também as fendas de incompletude e assimetria do sistema jurídico internacional, onde o trinômio força-poder-interesse prepondera sob a isonomia e a pretensa justeza da Carta da ONU e demais instrumentos internacionais. [29]

As sucessivas intervenções, durante os quarenta e cinco anos de Guerra Fria com características de rivalidade bipolar com seu macrocomportamento de "soma zero", da URSS no Afeganistão em dezembro de 1979 ou dos EUA em Granada, em 1983, no Panamá, em 1989, ou no Iraque, a partir de março de 2002, ocorreram a revelia dos principais instrumentos legais, hierarquizados sistemicamente pela Carta da ONU. Em tais casos, o imperativo hegemônico se sobrepôs ao sistema jurídico vigente, sob os auspícios de organismos multilaterais. O trinômio força-poder-interesse das superpotências relativizam o poder do Direito Internacional, transformando-o em mais um instrumento na lógica de dominação global. O atrelamento do sentido pleno de justeza inter-estatal tem-se afastado, portanto, do necessário critério objetivo que a norma jurídica deveria ter. A imagem simbólica da deusa romana (iustitia) da justiça [30] com os olhos vendados, a balança e os olhos vendados ("equal justice under law") [31] não se aplica à esfera internacional.

A crítica política ao sistema jurídico internacional hodierno revela a necessidade cada vez mais patente de buscar uma corrente intermediária e conciliatória, corporificada no Semidireito Internacional. As cinco premissas do modelo do Semidireito Internacional asseveram as razões explicativas da complexa realidade jurídica internacional que ainda se fundamenta no estatocentrismo (Paradigma de Westphalia). As recorrentes transformações no cenário internacional devem ser contempladas de forma crítica e ampla para descrever e explicar a semijurisdicidade internacional em meio às ordem mundial cravejada pela desigualdade, pela disparidade Norte e Sul e também pela arrogância na preservação conservadora do status quo da ordem mundial.


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Notas

01 Adotou-se aqui o posicionamento de alguns doutrinadores do mundo anglo-saxão common law, que, embora reconheçam a dicotomia público-privado internacional também do sistema ítalo-germânico civilista, preferem considerar o DI de forma de ampla e integrada, sem enveredar pelos particularismos da esfera pública e privada. O DI aqui é assim referendado.

02 Refiro-me aqui à contestada resolução do Conselho de Segurança da ONU S/RES 1441 aprovada em 8 de novembro de 2002 pela votação unânime de 15x00x00. A S/RES 1441 possui a dúbia cláusula operativa onde o Iraque sofreria "graves conseqüências" caso não cumprisse o prazo exigido pela mesma para abertura e inspeção irrestrita de suas usinas, armazéns e depósitos. A doutrina de "autodefesa antecipatória" dos EUA posiciona os interesses hegemônicos norte-americanos acima dos institutos jurídicos e do multilateralismo, daí as muitas controvérsias surgidas sobre a eficácia e a efetividade do Direito Internacional. Cf. CASTRO, Thales. O Conselho de Segurança da ONU e a ordem mundial. Curitiba, Juruá Editora, 2006. p. 32-44.

03 Kelsen define Direito Internacional como "um complexo de normas que regulam a conduta recíproca dos Estados que são os sujeitos específicos do Direito Internacional." Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 1994. p. 355.

04 Os princípios da pacta sunt servanda e do consuetudo est servanda respaldam o ideário de defesa da plenitude do Direito Internacional. Cf. AUGUST, Ray. Public International Law: text, cases and readings. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1995. p. 160-171.

05 De acordo com o jurísta internacionalista Dinstein, há uma diferença entre o jus cogens com imperatividade e coercibilidade reconhecidas, que denomina de norma peremptória, e o jus dispositivum com caráter de norma ordinária de Direito Internacional com reduzida coercibilidade. Cf. DINSTEIN, Yoram. Guerra, Agressão e Legítima Defesa. 3ª. ed. Barueri, Manole, 2004. p. 141-142.

06 Duas máximas latinas importantes na filosofia moral e política de Hobbes sintetizam o caráter realista de sua obra Leviatã. São elas: "homo lupus hominis" e "bellum omnium contra omnes". Ambas descrevem a natureza anárquica do cenário internacional bem como a voracidade do desejo de conflito armado em um estado de natureza onde todos são contra todos. Cf. HOBBES, Thomas. Leviathan: the matter, form and power of a commonwealth ecclesiastical and civil. Indianápolis, Liberal Arts Press, Inc., 1958. p. 65-66; 108.

07 O significado do jus cogens está contigo no artigo 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados – a CVDT – de 1969. O referido artigo é citado in verbis: "Tratado é nulo se, no momento de sua conclusão, entrar em conflito com o norma peremptória do Direito Internacional geral. Para fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como uma norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que se pode ser modificada por uma norma de Direito Internacional geral da mesma natureza". Consultar o Artigo 71 da CVDT sobre os efeitos da nulidade de um instrumento legal internacional. Cf. MAZZUOLI, Valério. Coletânea de Direito Internacional. 2a. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 198.

08 Fenda de aderência é aqui definida como um distanciamento coercitivo entre a norma jurídica e os fatos internacionais. Esse distanciamento revela as carências e as assimetrias do DI que serão detalhadas adiante.

09 O Artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça discplina sobre as seis principais fontes (formal plena e material) do Direito Internacional. São elas assim estipuladas: convenções internacionais, costume internacional, princípios gerais do Direito, doutrina, jurisprudência, eqüidade ("ex aequo et bono"). Cf. A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS E O ESTATUTO DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Op. ct. p. 84.

10 O processo de superar as antigas dictomizações rígidas ocorre também nas ciências políticas. Zaverucha, a exemplo deste fato, defende uma tricotomização, superando a tradicional dicotomia "democracia" versus "regime autoritário" para classificar o Brasil como uma "semidemocracia" tendo como fundamento analítico inter alia as obras de Przeworski e Mainwaring. Em sua opinião, a "semidemocracia" e tutelada pelas Forças Armadas. Cf. ZAVERUCHA, Jorge. FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o autoritarismo e a democracia, 1999-2002. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2005. p. 25-32.

11 É verdade que o termo "Estado" já estava presente em Maquiavel (O Príncipe) e, posteriormente, com a Paz de Augusburgo de 1555 com o princípio de protoautonomia estatal de cujus regio ejus religio. Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: a prática de intervenção humanitária no pós-guerra fria. Rio de Janeiro, Renovar, 2000. p. 20.

12 A importância do Tratado de Paz de Westphalia para o DI e para as Relações Internacionais é patente não somente pelo fato de ter formalizado e reconhecido a independência das Províncias Unidas dos Países Baixos, mas também por ter redefinindo a ordem mundial pós-Guerra por meio do primado da soberania do Estado nacional baseada no interesse, enterreando os últimos resquícios de medievalismo e religiosidade teocêntrica política. Também Westphalia acarreta o declínio da Espanha como potência hegemônica Européia e testemunha a emergência da França católica e da Holanda, país com grande dinamismo comercial e marítimo internacional, como grandes potências sucessoras. Cf. CARNEIRO, Henrique. Guerra dos Trinta Anos. In MAGNOLI, Demétrio. História das Guerras. São Paulo, Editora Contexto, 2006. p. 165-180.

13 Como ilustração dos princpíos realistas da "razão de Estado", a França – o maior país católico à época – do Cardeal Richilieu, chanceler do Rei Luís XIII entre 1624 e 1642, apoiou os príncipes germânicos especialmente da Boêmia e Palatinado juntamente com a Suécia, Dinarmarca e Países Baixos contra a Casa de Habsburgos (também católica) da Áustria, Espanha e do declinante Sacro Império Romano. Ou seja, os fins políticos se justificariam diante dos interesses nacionais franceses, mesmo à revelia da ética religiosa e moralidade espiritual. Cf. CARNEIRO, Henrique. Guerra dos Trinta Anos. In MAGNOLI, Demétrio. História das Guerras. Op. cit. p. 184-186.

14 Várias diplomas legais onusianos confirmam o estatocentrismo de Westphalia. O Artigo 4 da Carta da ONU bem como o Artigo 34 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça reafirmam que somente os Estados podem ter voz, voto, presença e processo decisório nos Organismos Internacionais do Sistema da ONU. Tendo em vista também o Artigo 103 da Carta da ONU, que estabelece uma hierarquia das normas jurídicas internacionais, pode-se enfatizar que esses dois artigos servem como inspiração e harmonização sistêmica dos vários atos legais internacionais. Cf. A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS E O ESTATUTO DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Nova Iorque, Departamento de Informações Públicas, 1993. p. 10; p. 30; p. 80.

15 Até mesmo o citado jurista holandês Grócio ao publicar suas obras clássicas vai também utilizar o DI à época de forma interessada. Ao defender o princípio de liberdade de navegação e comércio internacional (mare liberum), estava defendendo, indiretamente, os interesses estratégicos marítimos e comerciais da Compania das Índias Orientais – empresa holandesa – com grande fluxos de investimentos nos vários continentes. Ou seja, é mais um exemplo da carga de interesse, manifestada pela força e pelo poder de grupos de Estados, com o uso seletivo dos instrumentos legais internacionais.

16 Vale salientar que, grande parte da codificação do Direito Internacional, ocorreu no século XX especialmente com o Liga das Nações e com a Conferência de Havana (1928) e, mais precisamente depois da Segunda Guerra Mundial. Cf. BUERGENTHAL, Thomas; MURPHY, Sean. Public International Law. 3ª. ed. St Paul, West Publishing Group, 2002. p. 27.

17 O Artigo 102 da Carta da ONU (Capítulo XVI – Disposições Diversas) dispõe sobre o registro no Secretariado dos tratados e demais instrumentos legais em que os atuais 191 Estados-membros da ONU sejam partes dos mesmos. Esse artigo visa a abolir a nociva prática da DIlomacia secreta que tanto durante a Liga das Nações (1920-1945) ou até mesmo antes durante o século XIX da balança de poder na Europa com o Sistema de Metternich fora causa de rivalidades e grandes guerras inter-estatais.

18 A violência institucionalizada na forma de beligerância (de fato ou de jure) como ultima ratio dos Estados se torna uma forma de legitimação no exercício de sua própria soberania, revelando as fragilidades dos atos jurídicos regulatórios inter-estatais.

19 Tanto a Ciência das Relações Internacionais quanto o Direito Internacional possuem autonomia em seu sentido amplo como ciências enraizadas em seus respectivos troncos epistemológicos.

20 Há debates sobre a própria nomenclatura do DI (sic) como sendo mais adequado "inter-estatal" que "internacional" já que o Estado é o cerne das Relações Internacionais. Decidiu-se manter o uso mais comum e recorrente de Direito Internacional, embora a nação tenha reduzida participação na esfera externa. Ou seja, o cenário externo é estatocêntro (desde a Paz de Westphalia de 1648) e permite pouca abertura, efetividade e eficácia decisórias às nações não-organizadas jurídica e politicamente.

21Cf. TORRÉ, Abelardo. Introducción al Derecho. Buenos Aires, Perrot, 1957. p. 45-49. O Capítulo IV ("El derecho subjectivo y el deber jurídico") foi utilizado em TORRÉ para fundamentar o parágrafo acima.

22 Diferentemente da "regra", a "norma" é portadora de sanções interpretadas e aplicadas ao caso concreto por parte das autoridades público-estatais competentes; tais autoridades podem ser aqui denominadas também por "instituições coercitivas" (Judiciário, Ministério Público Polícia Civil e Militar) que aplicam a força coativa do Direito.

23Cf. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. 3ª. ed. Brasília, UnB, 1995.

24 As muitas escolas de pensamento sobre teoria do Direito com Kelsen com seu dogmatismo gnoseológico da norma positiva ("Grundnorm") com sua teoria pura do Direito versus o jusnaturalismo de Rousseau, Kant entre outros ilustram que a norma jurídica é portadora de sanções e, como tal, exerce poder de regulação, harmonização e controle da vida social.

25 Nossa interpretação de cunho realista do sistema onusiano mostra que há uma espécie de legislador universal com imputação normativa plena e efetiva que é o Conselho de Segurança da ONU (Artigos 24 e 25 da Carta), embora o CSNU somente cria a prolata resoluções em um determinado ramo da vida internacional: a preservação do status quo da ordem mundial; há, naturalmente, um série de tribunais internacionais (CIJ, ICTFY, ICTR, TPI etc...) embora os mesmos dependem ainda da aceitação de sua juris dire na forma de ratificação legislativa e da aprovação Executiva. O CSNU não é um órgão democrático e amplamente aceito como tal.

26 Kelsen defende a objetividade e o purismo dogmático bem como o monismo na relação entre o DI e as normas jurídicas internas. A natureza primitiva do DI – Semidireito Internacional em nossa visão – é também defendida por Kelsen em diversas passagens das suas obras, como por exemplo: Capítulo VII de seu livro Teoria Pura do Direito e o Capítulo VI da sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado. Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op cit. p. 358-360. Cf. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 321-376.

27 Por "ordem mundial" se concebe uma função diretamente atrelada à estrutura cratológica e axiológica das Relações Internacionais de um determinado momento histórico (t), onde a cada momento histórico corresponde uma determinada ordem mundial. Por axiologia se entende o estudo do conjunto dos valores sociais, morais, intelectuais e filosóficos de um determinado grupo hegemônico e por cratologia (C) se entende a estrutura e a forma de poder internacional (político-diplomático, econômico-financeiro, cultural, militar e geodemográfico) em sua alta e baixa densidades. Cf. CASTRO, Thales. Elementos de política internacional: redefinições e perspectivas. Curitiba, Editora Juruá, 2005. p. 53-60.

28 Tipicamente de cunho idealista-legalista, a Carta da ONU, em seus artigos 1 e 2, assevera que um dos fundamentos centrais da Organização, criada na Conferência de São Francisco, é a igualdade soberana de todos seus Estados-Membros. Ora, há uma contradição fática nessa leitura ao visualizar que há Estados mais influentes, preponderantes e com maior projeção de poder que outros especialmente no Conselho de Segurança da ONU. Cf. LEECH, Noyes; OLIVER, Covey, SWEENEY, Joseph. The International Legal System: cases and materials – documentary supplement. Nova Iorque, The Foundation Press, 1973. p. 17-23.

29Cf. LEECH, Noyes; OLIVER, Covey, SWEENEY, Joseph. The International Legal System: cases and materials – documentary supplement. Op. cit. p. 25.

30Cf. FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, dominação, decisão. São Paulo, Atlas, 1993. p. 34-35.

31 O lema do direito anglo-americano do common law "justiça igualitária sob a égide da Lei" com seus elementos intrínsecos de lex tradita e lex scripta, no topo do palácio da Suprema Corte dos EUA em Washington traz questionementos e refelxões necessários das carências do DI, reforçando os pontos defendidos pelo modelo do Semidireito Internacional.

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Sobre o autor
Thales Cavalacanti Castro

professor adjunto da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Faculdade Integrada do Recife (FIR), doutor em Ciência Política pela UFPE, doutorando em Direito (JD) pela Texas Tech University School of Law (EUA), mestre em Ciência Política (Public Affairs) pela Indiana University of Pennsylvania (EUA), bacharel em Relações Internacionais pela Indiana University of Pennsylvania (EUA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Thales Cavalacanti. Os fundamentos do "semidireito internacional".: Uma crítica política ao sistema jurídico internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1159, 3 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8890. Acesso em: 19 abr. 2024.

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