I. ENTRE UFANISTAS E NEGADORES DO DIREITO INTERNACIONAL: PARA ALÉM DAS DUAS GRANDES CORRENTES
O amplo tema suscitado neste artigo se fundamenta na forma de um primeiro esboço de proposta acerca da dicotomia efetividade-eficácia do conjunto normativo jurídico internacional. Levou-se em consideração, no processo de sua feitura, os recorrentes problemas estruturais de parcialidade hegemônica, de pouca força coercitiva e de seletividade hermenêutica interessada das normas jurídicas internacionais ou do Direito Internacional (DI), [01] especialmente, quando aplicados ao atual contexto político macrossistêmico unipolar.
Muitos dos debates atuais sobre efetividade e eficácia do Direito Internacional após a intervenção no Iraque a partir de março de 2003 sob a égide inter alia do Artigo 51 da Carta da ONU ("autodefesa antecipatória" da Doutrina Bush), [02] tendem a esbarrar em uma fática e notória comprovação: a materialização do conjunto normativo do Direito Internacional, também em sua vertente pública, depende muito do trinômio força-poder-interesse de um grupo de países caracterizados como potências.
Não há consensualização na literatura sobre a matéria, particularmente, quando predominam elementos ideológicos subjacentes à sua análise. Os excessos dos vieses ideológicos muitas vezes deturpam o pensamento crítico-científico nos debates neste campo. Os ideologismos, cumpre ressaltar, que muitas vezes se confundem com sentimentos anti-americanistas ou anti-hegemônicos em um sistema internacional unipolar, não avançam nesta necessária discussão. Dessa forma, buscou-se retirar, ao máximo, os recortes ideológicos do debate objetivo sobre a jurisdicidade – ou mais precisamente, da efetividade e da eficácia – do Direito Internacional.
Há duas grandes correntes sobre a efetividade e a eficácia do Direito Internacional. [03] Tais correntes se bifurcam no reconhecimento da plena efetividade e da eficácia do DI com leve tonalidade de ufanismo e na sua quase total rejeição. Uma breve análise sobre o espectro das duas grandes correntes mostra-se essencial para melhor fundamentar a raison d’étre da necessidade de uma nova perspectiva aqui denominada de "Semidireito Internacional", eqüidistante aos dois pólos das principais correntes.
A primeira corrente que, de forma ufanista e idealista, admite não somente sua completa efetividade e eficácia, como também desvia, à guisa de justificativa, o foco das reconhecidas deficiências do DI para a irresponsabilidade dos países centrais. Se o DI porventura é falho é em decorrência não de sua jurisdicidade e sim por conta da racionalidade maquiavélica de boa parte dos Estados e de seus policymakers na luta pelo poder e na defesa de sua agenda doméstica e externa. [04] Isto é, as falhas e as precariedades do DIP são exógenas ao sistema jurídico, havendo, assim, uma ênfase no caráter deôntico ("dever ser") do DI que prima pela necessidade de seu cumprimento com a existência de uma "comunidade internacional" legalmente estabelecida e ordenada. [05] O sistema jurídico internacional é perfeito em suas atribuições, é coeso e representa a forma de regulação dos Estados na esfera internacional. A superação das arbitrariedades, da truculência e do ímpeto belicista unilateral do(s) país(es) hegemônico(s) ocorreria unicamente pela limitação da autonomia da vontade desses Estados com a predominância e o reconhecimento universal da jurisdicidade do DI. Essa corrente também assevera que, de forma idílica, a ética, a moralidade, o multilateralismo e o espírito cooperativo dos povos sob a égide do Direito Internacional devem prevalecer sobre as ambições armamentistas alimentadas pela sede hegemônica de países centrais – casus belli para várias instabilidades, guerras, revoluções e conflitos armados no cenário internacional.
A segunda corrente nega a efetividade e a eficácia (jurisdicidade) do Direito Internacional como também rejeita a existência de uma "comunidade internacional". De cunho realista, essa corrente desconhece a jurisdicidade traduzida em termos de reduzida efetividade e eficácia do DI. A moldura do paradigma realista influencia essa corrente por meio da crença de existência de uma anarquia internacional onde o Direito Internacional não exerce força reguladora significativa, como salienta Hobbes, ao descrever o "estado da natureza": [06] "The notions of right and wrong, justice and injustice, have there no place. Where there is no common power, there is no law; where no law, no injustice. Force and fraud are in war two cardinal values". Defende também que as sanções com seus dúbios qualificadores de licitude e ilicitude são problemáticas pelo fato de estarem atreladas à politização no âmbito inter-estatal. Não há objetividade, imparcialidade e isonomia do DI por conta da heteronomia do cenário internacional com suas forças estatais e não-estatais subjacentes – não nos esqueçamos da expressiva capacidade de influência das GCTs (Grandes Corporações Transnancionais). A expressão emblemática dessa corrente afirma que o DI não é, nem se materializa em "Direito" e muito menos "internacional" pelas características de dependência do soberano processo legislativo interno e também pela cogência parcial e assimétrica do sistema jurídico internacional. [07] A parcialidade da cogência da norma jurídica a que me refiro diz respeito à observação de que tanto o artigo 53 quanto o 64 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (CVDT) de 1969 não especificarem quais parâmetros devem ser utilizados para a aceitação da coercibilidade (caráter peremptório) de uma norma de Direito Internacional. A vagueza de tal dispositivo apenas reforça a debilidade na determinação universal pela comunidade internacional (sic) da imperatividade e da cogência das normas do Direito Internacional. Em outras palavras, essa corrente não reconhece a capacidade do DI em estabelecer a governança internacional, em decorrência do que denominamos de "fenda de aderência" [08], do voluntarismo na adesão e denúncia bem como do problema concernente às sanções dos vários instrumentos legais. [09]
Ambas as correntes possuem nuances de verdade e alguns excessos; ambas estão, parcialmente, corretas em suas proposituras axiomáticas. Como conciliar, pois, tais verdades parcializadas das duas grandes correntes paradigmáticas, construindo um modelo para explicar a eficácia e a eficiência do Direito Internacional no cenário internacional contemporâneo unipolar pós-11 de setembro? Como estipular as premissas e os parâmetros desse novo modelo conciliatório em meio a preeminência da Doutrina Bush de "autodefesa antecipatória" de quase rejeição do Direito Internacional na condução da guerra contra o terrorismo? Qual o papel e a jurisdicidade do DI quando este vem a contradizer aos interesses hegemônicos contra o "eixo do mal"? Qual a relação e o nexo causal entre hegemonia política, interesses estatais e jurisdicidade do Direito Internacional?
Uma alternativa seria propor uma corrente para além da dicotomia tradicional (defensores idealistas do DI versus negadores realistas do DI), consolidando a tendência a tricotomização. [10] Em tal perspectiva de síntese das duas principais correntes, salientar-se-ia que o DI é eficaz e eficiente em momentos específicos, politicamente determinados, no cenário internacional estratificado na lógica de poder. Os momentos específicos de eficácia ou não do DI são determinados pelo(s) país(es) que amoldam e determinam a ordem mundial de acordo com sua agenda externa, calcada no trinômio força-poder-interesse. Dessa forma, preferiu-se adotar a terminologia "Semidireito Internacional" revelando sua jurisdicização parcial, descentralizada com reduzida efetividade e eficácia para os Estados. Tal neologismo terminológico Semidireito Internacional melhor define, a nosso ver, o sistema jurídico inter-estatal como produto do trinômio força-poder-interesse de uma determinada ordem mundial, estratificado em alta (assuntos que versam sobre segurança internacional, defesa interna e geopolítica estratégica militar) e baixa densidades (cooperação em assuntos não-geoestratégicos incluindo relações diplomáticas e consulares bilaterais).
É necessário ir além dos meros discursos vazios sobre, exclusivamente, a ineficácia do sistema jurídico internacional sem apresentar razões plausíveis para tal observação fática. Esse é um tema que não se esgota, naturalmente, nesse breve artigo. De qualquer maneira, um dos propósitos centrais deste artigo é contribuir, de forma crítica e ativa, ao debate revelando o weltanschauung do sistema jurídico em meio à politicidade acirrada e inerente às Relações Internacionais contemporâneas (sistema westphaliano).
Com isso, objetiva-se contribuir, utilizando como referência epistemológica a política internacional, para o debate sobre a eficácia e efetividade do Direito Internacional e defender que, por conta de suas fendas de incompletude e assimetria, há elementos de um "Semidireito Internacional". O prefixo "semi" é indicativo de sua natureza parcial, revelando a dependência do Direito das Gentes com a esfera política internacional. O "semi" se refere ao caráter de relativização da eficácia e da eficiência do DI em momentos ou instâncias pontuais, como em processos de justificativa de intervenções militares ou ataques cirúrgicos, em que o elemento jurídico-regulador objetivo da conduta internacional seria esquecido em prol de interesses estatais.
II. HISTORICIDADE, ESTATOCENTRISMO E DIREITO INTERNACIONAL
Independentemente das duas principais correntes, o tema da eficácia e da efetividade do DI é controverso e antigo. Os contornos de tal debate têm como pressuposto o conceito político de "Estado". [11] O Estado moderno surge a partir de longo processo como uma síntese histórica que remonta ao século XVI com a Paz de Augusburgo (1555). No entanto, foi com a Paz de Westphalia (1648) que a estatalidade foi uniformizada, reconhecida e formalizada. Vale salientar que o Tratado de Paz de Westphalia foi um conjunto de 11 tratados assinados em Osnabrück e Munster. [12] Desde o Tratado de Paz de Westphalia (1648) que pôs fim à sangrenta Guerra dos Trinta Anos, com quase 1/5 da população européia morta (4 milhões aproximadamente), entre católicos e os príncipes germânicos protestantes, a soberania estatal foi reconhecida e atrelada à integridade territorial não admitindo influência de quaisquer outras forças políticas ou eclesiásticas alheias ao próprio Estado. [13] O citado tratado consagra também o primado da "razão de Estado" como engrenagem central das Relações Internacionais. As reflexões e conseqüências deste momento histórico para o DI contemporâneo são o de reforçar sua debilidade diante de interesses políticos de alta densidade de acordo com uma lógica de hipertrofia do poder, não de isonomia jurídica. O estatocentrismo do Sistema de Westphalia acabara com os últimos resquícios da obediência múltipla e simultânea dos indivíduos ao monarca, ao senhor feudal, ao Papa e a toda classe nobiliárquica. A partir do estatocentrismo do tratado, a obediência dos indivíduos seria, politicamente, ordenada em um corpus jurídico nacional com liberdade religiosa.
Nesse contexto, importante também citar o papel da Revolução Industrial Inglesa a partir de meados do século XVIII e das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) para consolidar a forma e o regime de Estado e de Governo. As duas últimas tiveram força importante também nos ideais democrático-burgueses com o enterramento, na França, do Antigo Regime. Essas revoluções foram instrumentais também para separar a esfera público-estatal da esfera religiosa, criando os princípios do Estado nacional laico e soberano com a primazia do sistema jurídico interno autônomo. O Estado é meio e fim da vida internacional e, como tal, pode utilizar sua soberania e seu sistema normativo como autojustificativa de sua vontade interna e externa. É claro que há constrangimentos ("constraints") a esse exercício de soberania, porém, manifestadamente, o constrangimento ou impedimento jurídico inter-estatal nem sempre é o principal elemento normatizador. O Estado nacional ainda centraliza, portanto, as articulações e o processo decisório político-jurídico e exerce ainda o exclusivismo de titularidade na esfera internacional. [14]
A trajetória do estatocentrismo acompanha as modificações do Direito Internacional que também vai ter seu florescimento a partir do contexto histórico após Westphalia (1648). Em um primeiro momento, a gênese do DI vai focalizar nos aspectos na condução da beligerância. O jusfilósofo internacionalista holandês Hugo Grócio, autor da célebre obra Das Leis da Guerra e da Paz (De Jure Belli ac Pacis), vai ser um dos pioneiros para os estudos do Direito Internacional, primeiramente, como direito da guerra e na guerra na sua tradicional dicotomoia jus ad bellum e jus in bello e, posteriormente, como defensor do princípio da liberdade de navegação dos mares (mare liberum). [15] Em um segundo momento, já no século XX, o Direito Internacional vai ir além da regulação das atividades bélicas sendo também ente de regulação parcial e descentralizada no campo dos direitos humanos, comércio exterior, imigração e relações diplomáticas e consulares. [16] Não se pode esquecer os primeiros organismos internacionais temáticos, criados na segunda metade do século XIX, bem como as Conferências de Haia (1899 e 1907) como contribuições relativas para o aumento do processo de jurisdicização do DI na esfera global.
Com o reflexo do aumento da complexidade na interação entre os vários atores estatais e atores não-estatais (empresas transnacionais e organizações não-governamentais) no cenário internacional, houve algum incremento no processo de jurisdicização e codificação sistêmica da esfera legal que teve respaldo e contou com a participação de Organismos Internacionais no interbellum, com a Liga das Nações (1920-1945) e, no pós-guerra, com a ONU (a partir de 1945). [17] Os organismos internacionais e agências especializadas da ONU vão também exercer papel na codificação e sistematização do DI a partir da segunda metade do século XX e já no início do século XXI. O processo de codificação e sistematização do DI, também no âmbito da ONU com a Comissão de Direito Internacional e mesmo extra-ONU, embora represente esforço relevante, ainda mostra-se ineficaz na conscientização público-social do jus gentium.
Ao invés de servir de fator do necessário amadurecimento civilizatório dos povos, como desejava, idealmente, Dante (De Monarchia), Grócio (Mare Liberum), Abade de Saint-Pierre (Projet de Paix Perpétuelle) ou mesmo em Kant (Da Paz Perpétua), o Direito Internacional acaba sendo um elemento de manipulação por parte dos hegemonismos existentes. Nesse processo, vários organismos internacionais do próprio Sistema da ONU também se tornam peças da autotutela e da autocomposição dos Estados centrais. [18]
III. SOBRE A CORRELAÇÃO DE FORÇAS DA POLÍTICA E O IDEALISMO DO DIREITO INTERNACIONAL: ALGUMAS ANÁLISES
Quando é trabalhado sob o ponto de vista da Ciência Política e das Relações Internacionais (ciência autônoma derivando da amplitude metodológica e analítica das ciências sociais), o Direito Internacional é concebido como de coercibilidade baixa e é dependente do jogo de forças e da correlação de poder dos Estados.
Os quadros abaixo (figura 1) mostram os troncos epistemológicos das duas ciências autônomas, suas correlações e distanciamentos como forma de explicar a realidade internacional. Também serve como fundamento crítico para ressaltar os principais pontos da existência de um semidireito internacional, com suas vaguezas, inépcias e assimetrias. Com foco na norma positivada (ciência jurídica) e com centralidade no fenômeno social e humano (Ciência Política e Relações Internacionais), a figura 1 traz reflexões explicativas sobre a corrente do "semidireito internacional". [19]
Figura 1- Relações gerais epistemológicas entre Política (Relações Internacionais) e Direito Internacional: eixos, aproximações e divergências
Ciências Humanas |
Ciências Sociais |
Ciências Políticas(Objeto: as relações de poder entre os vários atores sociais e políticos tendo o "favor" e o "interesse" como moeda de troca.) |
Ciência das Relações Internacionais (Objeto: Inexistência de "comunidade internacional". Relações desiguais de força-poder-interesse e existência de entropia entre atores estatais, não estatais e individuais. Existência de ordem mundial hegemônica estruturada em polaridade-lateralidade e capilarizada em high e low politics.) |
Ciências Sociais Aplicadas |
Ciências Jurídicas(Objeto: controle social e ordem pública em um sistema coativo por meio da norma jurídica positivada pelo Estado.) |
Direito Internacional (Objeto: Regulação da conduta dos Estados e dos OIs pela isonomia e pelo idealismo-principismo com várias fontes jurídicas formais e materiais existentes no objetivo de manter a estabilidade, a paz, a harmonia e demais valores de uma "comunidade internacional" |
Como sugerem os quadros acima, o DI não é um sistema normativo inter-estatal (corpus juris) pleno, completo, integralizado quando analisado sob a ótica realista das Relações Internacionais. A eficácia e a efetividade do "Direito Internacional" – conjunto de instrumentos jurídicos propostos pelos Estados, com o exercício exclusivo da summa potestas, e pelos Organismos Internacionais com o objetivo ideal de regular a conduta coletiva – é dependente de fatores extra-normativos que lhe conferem grau reduzido, relativamente, de jurisdicização. [20]
A praxeologia dos conceitos de Direito, tanto na sua vertente objetiva (letra legal) quanto na subjetiva (imputação da norma jurídica no meio social), tende a externar os diversos recortes de controle social no binômio tempo-espaço de uma sociedade. [21] As manifestações da vida social demandam limitações da esfera pública para que o pacto político e o contrato social possam ser efetivos dando forma à convivência pacífica e harmoniosa. [22] No plano internacional, não há, claramente, estipulado um pacto político e um contrato social onde os indivíduos possam delegar parcela de sua liberdade individual e coletiva para o "Soberano". Isto é, a cessão necessária de parcela da soberania pessoal para formação do "governo civil", no liberalismo de Locke e Rousseau, destina-se ao Estado e não a uma estrutura governamental surpaestatal.
Sem embargo, poder-se-ia também ir além defendendo que o sistema normativo internacional seria uma forma pré-jurídica pela carência dos elementos intrínsecos ao Direito material (coação, coercitividade, poder fiscalizatório, segurança normativa, controle social). Acerca deste contexto, Bobbio ressaltando as assimetrias do sistema jurídico internacional, chegou a afimar: "Estados em suas relações externas ainda vivem num estado não-jurídico." [23] O ideário de uma forma pré-jurídica associada ao DI não se mostra válida pelos excessos hermenêuticos de esquecer, residualmente, que o DI exerce, em contextos específicos, algum fator de normatização e regulação da vida político-estatal internacional.