RESUMO
O presente trabalho visa abordar a questão do consentimento no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, partindo de uma análise acerca da pré-existência de uma vulnerabilidade inerente à mulher traficada, buscando verificar se o referido consentimento seria causa suficiente para descaracterizar o crime. Analisa ainda as duas principais modalidades do tráfico de pessoas, quais sejam, o tráfico forçado e o tráfico voluntário, relatando alguns casos famosos de mulheres vítimas do crime em questão. Busca-se demonstrar a gravidade do delito e a forma com que o ordenamento jurídico brasileiro o aborda, demonstrando as consequências de descaracterizar o crime com base no consentimento da vítima, o que gera diversos problemas e discussões. Reforça também a importância da prevenção e supressão do tráfico de pessoas, partindo do pressuposto de se tratar de um crime pouco noticiado no Brasil, porém com demasiados casos. Ao final, expõe o entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca do tema.
Palavras-chave: Tráfico de Mulheres. Exploração Sexual. Consentimento. Vulnerabilidade.
SUMÁRIO
Introdução. 1 Contextualização do Tráfico de Pessoas. 1.1 O tráfico de Pessoas no Ordenamento Jurídico Internacional. 1.2 O Tráfico de Pessoas no Código Penal brasileiro. 2 Modalidades do Tráfico de Pessoas. 2.1 Tráfico Forçado. 2.2 Tráfico Voluntário. 3 O Consentimento no Tráfico de Pessoas para Exploração Sexual. 3.1 A Vulnerabilidade das vítimas. 3.2 O impacto da descaracterização do tráfico de pessoas com o consentimento. 3.3 Análise doutrinária e de precedente. 3.3.1 Análise da doutrina acerca do consentimento no tráfico de pessoas para exploração sexual. 3.3.2 Análise do julgamento da Apelação Criminal n. 0005165- 44.2011.4.01.3600/MT pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O tráfico de pessoas é uma das atividades ilícitas mais rentáveis e com maior dificuldade de rastreamento e supressão. Isto ocorre, principalmente, devido ao grande número de pessoas envolvidas em organizações criminosas criadas, exclusivamente, visando o cometimento do mencionado delito. Além disso, é um crime comumente praticado por autoridades e pessoas conhecidas e renomadas na sociedade, gerando uma maior dificuldade de se prosseguir com suspeitas ou investigações. Trata-se de um assunto de suma relevância na sociedade e praticado, especialmente, contra mulheres e para os fins de exploração sexual.
Infelizmente, é um crime ainda pouco noticiado no Brasil, apesar de ocorrerem diversos casos todos os dias. Por esta razão, torna-se um tema com uma relevância ainda maior, devendo ser abertamente discutido e divulgado no meio acadêmico, social e político, trazendo uma maior possibilidade de educação e repressão.
No ordenamento brasileiro, o delito possui previsão expressa no art. 149-A, do Código Penal, o qual descreve inteiramente a conduta, deixando de mencionar, contudo, como se proceder nos casos em que há o consentimento válido da vítima.
Destaca-se não se tratar de um tema recente, estando presente na sociedade por diversas gerações e estando cada vez mais se aperfeiçoando e se tornando mais comum e de difícil constatação. A prática do referido delito chama a atenção principalmente pela grande violência envolvida e pelo desrespeito aos direitos humanos básicos que deveriam ser assegurados a todos os cidadãos.
Dessa forma, no primeiro capítulo, busca-se fazer uma contextualização acerca do crime, exemplificando todo o aparato jurídico criado até o momento. O capítulo seguinte visa demonstrar e explicar as modalidades de tráfico de pessoas, trazendo casos e relatos de vítimas reais. Por fim, no último capítulo, tem-se a abordagem acerca do consentimento dado pela vítima e o impacto da descaracterização do crime frente a essa anuência, além da análise dos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais.
1 CONTEXTUALIZAÇÃO ACERCA DO CRIME DE TRÁFICO DE PESSOAS
O tráfico de pessoas é, de fato, um tema de suma importância na sociedade atual, mas também de grandes controvérsias. Não se trata de um fenômeno recente, sendo praticado desde a antiguidade e praticamente sempre com o mesmo propósito, qual seja, a obtenção de uma vantagem econômica. Tal vantagem, na maioria dos casos, é obtida por meio da exploração sexual de mulheres. Além disso, é um tema que abarca grandes polêmicas, como prostituição e migração.
Infelizmente, esse crime é uma atividade de alto lucro, tendo a Organização para Segurança e a Cooperação na Europa divulgado que a estimativa era de que o tráfico movimentaria cerca de 32 bilhões de dólares por ano2. O que faz com que seja uma atividade ainda mais tentadora são os seus baixos riscos, tendo em vista que as ilicitudes são, em sua grande maioria, disfarçadas de atividades legais, como agências de modelo ou babás, bares e restaurantes. Além disso, os traficantes costumam escolher países mais distantes, de línguas estrangeiras, para que as vítimas não consigam se comunicar ou pedir ajuda. E mais, as redes poderosas de tráfico são comumente comandadas por autoridades ou pessoas da alta sociedade, as quais dificilmente serão alvos de investigações ou suspeitas.
No Brasil, o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual está quase sempre ligado à grande desigualdade social e ao desenvolvimento precário, o que deixa as vítimas vulneráveis a propostas de irem para outras cidades ou países em busca de uma melhoria na qualidade de vida ou de um aumento salarial.
Segundo o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, somente em 2018 foram feitas 159 denúncias de tráfico de pessoas. Desse total, cerca de 17% ocorreu dentro do país e com a finalidade de exploração sexual das vítimas, que, em sua maioria, eram mulheres 3.
As políticas internacionais acerca do tráfico de pessoas foram ganhando força a partir do ano de 2000, momento em que foi aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a criação da Convenção de Palermo, um dos principais aparatos legislativos sobre o tema. A criação da Convenção significou um importante marco para o combate ao tráfico de pessoas, objetivando regular não só o combate em si, como também a prevenção e a punição para o crime. E mais, representou o entendimento dos Estados-Membros no que tange à gravidade do delito e à necessidade de confrontá-lo 4.
Conforme informativo do Ministério da Indústria, Emprego e Comunicações da Suécia, as Nações Unidas estimavam que, em meados de 2004, cerca de quatro milhões de mulheres eram vítimas do tráfico de pessoas, sendo a maioria com a finalidade de exploração sexual 5. Assim, pode-se notar que o mercado de seres humanos é crescente no âmbito internacional, sendo cada vez mais fortalecido pelas redes que lucram com a compra e venda de mulheres para exploração sexual.
1.1 O TRÁFICO DE PESSOAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNACIONAL
O marco jurídico internacional para o combate ao tráfico de pessoas foi, definitivamente, o Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, aprovado por volta do ano de 2004, também conhecido como Protocolo de Palermo
Conforme demonstra Nelson Hungria, a campanha contra o tráfico de mulheres desencadeou debates entre grandes países como Holanda, Inglaterra, França e Alemanha, com o objetivo de que se chegasse a alguma medida de auxílio recíproco contra os traficantes 6. O resultado desses debates foi a elaboração dos primeiros tratados acerca do tema, dentre os quais podemos destacar o Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, assinado em 1904, e a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, assinada em 1910 7.
A mencionada Convenção Internacional declarava que o consentimento seria irrelevante caso a vítima fosse uma mulher casada ou uma solteira menor de 20 anos, mas se fosse uma prostituta ou uma solteira maior de 20 anos, o consentimento implicaria na desclassificação do crime 8.
Após a recém criação da Organização das Nações Unidas (ONU), os estados-membros aprovaram a Convenção e o protocolo final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio. Uma grande mudança no aparato legal foi a substituição da expressão “tráfico de mulheres” para “tráfico de pessoas”.
Foi apenas em 15 de novembro de 2000 que restou aprovada pela Assembleia Geral da ONU, a criação da Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional, conhecida como Convenção de Palermo, entrando em vigor em 23 de setembro de 2003. Conforme já mencionado alhures, a Convenção de Palermo foi um dos grandes marcos de combate ao tráfico de pessoas e um importante instrumento internacional, significando um avanço na prevenção e supressão do referido delito.
A Convenção é seguida de três protocolos, os quais englobam áreas específicas do crime organizado, sendo o Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial mulheres e crianças, o relevante para o tema aqui abordado. Tal protocolo foi aprovado pela resolução da Assembleia-Geral, entrando em vigor em 25 de dezembro de 2003, tratando-se, assim, do primeiro aparato jurídico de relevância no que tange ao crime do tráfico de pessoas, criminalizando condutas e estabelecendo canais de cooperação internacional para o combate e prevenção, como bem declarado em seu preâmbulo: “[...] uma ação eficaz para prevenir e combater o tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças, exige por parte dos países de origem, de trânsito e de destino uma abordagem global e internacional [...]”.
O Protocolo, em seu art. 3o, alínea “a”, define o tráfico de pessoas como sendo 9:
Recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos.
Ainda no art. 3o, em sua alínea “b”, acrescenta que o consentimento dado pela vítima do tráfico será irrelevante se utilizados os meios referidos na alínea “a”.
No Brasil, a Convenção de Palermo foi promulgada em 12 de março de 2004, por meio do Decreto no 5.015, e o Protocolo de Palermo foi promulgado por meio do Decreto no 5.017, da mesma data.
1.2 O TRÁFICO DE PESSOAS NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
No que diz respeito ao ordenamento jurídico interno, este sempre esteve atrasado com relação ao ordenamento internacional. O mais próximo de criminalização do tráfico que existiu por muito tempo no ordenamento brasileiro era o art. 278 da Lei n. 2.992 de 1915, a qual trazia disposições acerca do lenocínio,também conhecido pelas atividades de intermediação ou favorecimento da prostituição 10:
Artigo 278. Manter ou explorar casas de tolerância, admitir na casa em que residir, pessoas de sexos differentes, ou do mesmo sexo, que ahi se reúnam para fins libidinosos; induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miseria, quer constrangendo-as por intimidação ou ameaças a entregarem-se á prostituição; prestar, por conta própria ou de outrem, sob sua ou alheia responssabilidade, qualquer assistencia ou auxílio ao commercio da prostituição: Pena - de prisão cellular por um ou tres annos e multa de 1:000$ a 2:000$000.
Foi apenas com o Código Penal de 1940 que passou-se ter por tipificado o crime de tráfico de pessoas 11. O delito encontrava-se previsto no artigo 231 do Código Penal, com a seguinte redação dada pela Lei no 12.015/0912:
Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro.
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la.
§ 2o A pena é aumentada da metade se:
I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato;
III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou
IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude.
§ 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.” (NR)
Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la.
§ 2o A pena é aumentada da metade se:
I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato;
III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou
IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude.
§ 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.” (NR)
Destaca-se que o crime se encontrava previsto no capítulo de crimes sexuais, sendo posteriormente alterado, ganhando nova redação e capitulação com o advento da Lei no 13.344/16, a qual trouxe o novo artigo 149-A, inserido no capítulo de liberdade individual 13:
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual.
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.
Inicialmente, cumpre destacar se tratar de um tipo penal misto alternativo, ou seja, ainda que o agente pratique todas as condutas descritas no caput, incorrerá na prática de apenas um único crime. Além disso, observa-se que a pena aplicada ao crime de tráfico se tornou mais gravosa com a entrada em vigor da nova Lei. Dessa forma, o referido artigo não poderá retroagir para os crimes praticados anteriormente a esse aparato legislativo por se tratar de “novatio legis in pejus”, ou seja, uma lei nova mais grave que traz um maior prejuízo para o réu.
Contudo, a nova Lei trouxe também diversas controvérsias e discussões por parte dos doutrinadores, sendo a maior delas a previsão da situação de vulnerabilidade da vítima, ainda que maior de 18 anos, como causa de invalidar o seu consentimento 14.
Insta destacar que, antes da Lei n. 13.344/2016, o emprego de violência ou de fraude servia como causa de aumento da pena. Contudo, com a nova capitulação da conduta, violência e fraude passaram a fazer parte da tipificação, sem as quais não haveria o crime. Diante desse novo cenário, o consentimento válido da vítima exclui a tipicidade e, consequentemente, exclui o crime de tráfico de pessoas 15.
2 MODALIDADES DO TRÁFICO PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL
O Tráfico de mulheres para exploração sexual possui duas modalidades principais: i) o tráfico forçado, ou seja, aquele em que a vítima não possui conhecimento do seu destino, sendo pega de surpresa em decorrência de fraudes ou sequestros, por exemplo; e ii) o tráfico voluntário, ou seja, quando a vítima sabe que irá se submeter ao tráfico para sua exploração sexual.
2.1 TRÁFICO FORÇADO
Infelizmente, uma das formas mais comuns de tráfico de pessoas é a sua modalidade forçada, ou seja, onde os agentes criminosos se valem da grave ameaça, violência, fraude ou abuso. Trata-se do típico caso em que uma vítima é enganada, possuindo total desconhecimento do seu destino.
Nesse tópico, cabe incluir o relato de Shandra Woworuntu, vítima do tráfico de pessoas para exploração sexual, a qual, atualmente, fundou uma Organização de combate ao tráfico de pessoas e dá palestras pelo mundo todo.
Shandra é natural da Indonésia e, ao perder o emprego, candidatou-se a um processo seletivo para trabalhar em um grande hotel nos Estados Unidos, visando recomeçar a vida. Contudo, ao chegar ao país, descobriu ter sido vítima do tráfico de pessoas. A vítima conta que passou por um processo demorado para contratação no suposto hotel, tendo tudo sido intermediado por uma agência de recrutamento na Indonésia. Ao chegar na cidade de Nova Iorque, foi buscada no aeroporto por um homem que se dizia da agência que a havia contratado e, a partir daquele momento, sua vida tomou um novo rumo.
A vítima relata 16:
Outro caso similar é o de uma paraense, que preferiu não ser identificada na entrevista que concedeu à TV Liberal em meados de 2013. A vítima conta 17:
Os traficantes me disseram que eu devia a eles US$ 30 mil e que pagaria US$ 100 toda vez que fizesse um programa. Nas semanas e meses seguintes, fui levada a diferentes bordéis, prédios, hotéis e cassinos na costa leste dos EUA. Raramente ficava dois dias no mesmo lugar e nunca sabia onde estava ou aonde ía.
[...
Era uma rotina difícil e dolorosa. Fisicamente, estava fraca. Os traficantes só me alimentavam com sopa de arroz com uns poucos pepinos, e eu estava drogada normalmente. A ameaça constante de violência e a necessidade de estar sempre em alerta também eram muito exaustivas.
Pensei que ia trabalhar como cozinheira ou no que eu achava que era um supermercado e chegando lá era para me prostituir. A gente era obrigada, porque a gente tinha que pagar a comida, os remédios, tudo que a gente consumia lá a gente tinha que pagar, era dessa forma.
Uma história famosa foi a da jovem que serviu de inspiração para a novela Salve Jorge, transmitida na Rede Globo em 2012. A mulher trabalhava como empregada doméstica no Rio de janeiro quando recebeu uma proposta de uma conhecida para trabalhar como garçonete em um restaurante brasileiro de Tel Aviv, Israel. Ao chegar no país, a jovem conta que tomaram o seu passaporte e a levaram para um prostíbulo:
Os casos acima retratam exemplos da modalidade de tráfico forçado por meio da fraude, tendo em vista que as vítimas acreditavam estar indo trabalhar, não tendo conhecimento do seu real destino. Infelizmente, casos assim são extremamente comuns, apesar de pouco noticiados.
2.2 TRÁFICO VOLUNTÁRIO
Entretanto, há ainda a modalidade de tráfico voluntário, ou seja, quando a mulher sabe quais serão as consequências da sua anuência e mesmo assim aceita se submeter ao tráfico. Na grande maioria dos casos, essa modalidade se dá em decorrência da dificultosa situação econômica da vítima, aliada ao desejo de melhoria nas condições de vida.
Olharam para mim e me disseram: ‘Troca de roupa e vai trabalhar’. Comecei a chorar, desesperada. Mas as outras brasileiras que já trabalhavam na boate me disseram para não me recusar, porque eles iriam me bater, me deixar com fome, ou até sumir comigo. As meninas me maquiaram. Coloquei um shortinho e um sutiã e fiquei no sofá do salão, exposta como mercadoria 18.
Existem os casos em que a vítima sabe exatamente as condições a que irá se submeter, possuindo plena consciência da sua decisão. Esses são os casos em que é possível se perceber um maior desespero pela melhoria de vida e aumento salarial, haja vista que, apesar de saber o que irá acontecer, se submeter ao tráfico para exploração sexual ainda parece, aos olhos da vítima, sua melhor alternativa ou talvez a sua única opção.
Contudo, é importante destacar que também existem os casos em que a vítima, apesar de saber para onde está indo e o que está indo fazer, não possui consciência das condições a que será subordinada. São os casos em que a mulher sabe que irá praticar a prostituição, mas não sabe que passará a viver, muitas vezes, em condições degradantes, como em ambientes sujos, sem ter onde dormir e sem ter o que comer, além de sofrer violência física e psicológica dos aliciadores.
Este último exemplo de modalidade, de certa forma, aparenta se tratar de uma modalidade de vício no consentimento da vítima, pois a ela é suprimida informações importantes quanto ao estilo de vida que levará. Em muitos casos, os aliciadores/traficantes retiram o passaporte das mulheres, medida que faz com que elas sejam impedidas de sair do país onde se encontram. Além disso, é extremamente comum que as vítimas acabem se endividando com seus traficantes e ficando presas, por conta dessa dívida, na vida da prostituição 19.
Assim, apesar dessa modalidade se iniciar de uma forma voluntária e com o consentimento da vítima, a partir do momento em que ela é submetida às condições degradantes, das quais não possuía conhecimento no momento de sua anuência, esse consentimento se torna viciado.
Casos muito famosos ocorrem também na Nigéria, país este conhecido por sua imensa rede de tráfico de pessoas. Diversas jovens são atraídas para a vida da exploração sexual, consentindo que sejam traficadas, principalmente para a Europa, em busca de melhoria nas condições de vida.
O diferencial da Nigéria está na forma com que os traficantes obtêm a promessa das vítimas de que irão pagar suas dívidas e não contarão para ninguém sobre os acontecimentos. Antes de deixarem o país, as vítimas são submetidas a um ritual conhecido como “Juju” 20, o qual, basicamente, se trata de um seguro de vida ou pacto, simbolizando o juramento feito pelas vítimas às madames, como são chamadas as responsáveis pela exploração sexual. O pacto é selado com a obrigação de que as vítimas irão se submeter e obedecer a seus traficantes e, caso descumpram o acordo, o juju se encarregará de fazer justiça, atraindo loucura, infortúnio, doença e até mesmo morte 21. A crença no mencionado ritual é tão forte que, de fato, obriga as vítimas a obedecerem aos seus traficantes/aliciadores, havendo poucos casos em que resolvem denunciar o ocorrido.
3 O CONSENTIMENTO NO TRÁFICO DE PESSOAS PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL
A anuência das vítimas do tráfico de pessoas é, atualmente, alvo de grandes discussões e divergências. Conforme já mencionado alhures, o art. 3o, alínea “b”, do Decreto 5.017/04, prevê que o consentimento dado pela vítima do tráfico será irrelevante se presentes os meios referidos na alínea “a”, tais como coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade e situação de vulnerabilidade. Ocorre que, inexistindo os referidos meios, o consentimento descaracterizaria o crime de tráfico de pessoas. Destaca-se que o atual Código Penal não trata a respeito do consentimento, restando apenas analisar o Decreto referente ao Protocolo de Palermo. O que aqui se indaga é: haveria de fato um consentimento válido e livre de vícios quando se trata de tráfico de pessoas para exploração sexual? E se sim, seria condizente descaracterizar o crime com base nesse consentimento?
Segundo Luiz Flávio Gomes “o consentimento pela parte que se submete ao tráfico de pessoas não elimina a responsabilidade do agente pela prática ilícita, em face da proteção legal do bem tutelado” 22. Entende-se, assim, que a pessoa traficada possui liberdade de escolha, podendo exercê-la da maneira que melhor entender. Então, caso uma mulher deseje ir para outro Estado ou para o exterior com a finalidade de se prostituir em busca de uma melhor condição financeira, o Estado não poderia intervir penalmente. Todavia, o que deve ser reprimido é a atitude de quem, de qualquer forma, auxilia essa mulher.
Nesse momento, cabe uma analogia com a prostituição. No Brasil, a prostituição não é crime, sendo, inclusive, reconhecida como profissão desde 2002 pelo Ministério do Trabalho 23. Contudo, qualquer forma de auxílio à prostituição é punida criminalmente. Assim, estão previstos no Código Penal os crimes de favorecimento da prostituição, casa de prostituição e rufianismo. O mesmo deveria ocorrer no que tange ao tráfico de pessoas, tendo em vista que o Estado não deve intervir na decisão de uma mulher de ir para outro local visando a prostituição, mas deve punir penalmente aqueles que auxiliam ou lucram com esse transporte.
Outro ponto que insta ressaltar é o fato de que, só porque em um caso específico o traficante não se utilizou de meios ardilosos ou fraudulentos para obter a exploração sexual da vítima, não significa que em outro caso também não o tenha feito. Assim, deixar um traficante impune por um determinado caso eventualmente implicaria sua impunidade nos demais.
A grande questão a ser tratada, contudo, diz respeito aos casos em que inexistem vícios de consentimento pela vítima do tráfico, ou seja, os casos em que as mulheres têm consciência para onde estão indo, para quê estão indo e em que condições irão se encontrar nesse local. Nesses casos, segundo o artigo 3o do Decreto, o consentimento deixa de ser irrelevante e passa a ser motivo de descaracterização do tipo penal. O problema é: existe consentimento totalmente livre de vícios nos casos de tráfico de pessoas? Importa destacar que, dificilmente, uma mulher com boas condições financeiras e boa qualidade de vida se submeteria a prostituição, o que nos leva a pensar que, ainda que houvesse a anuência dessa mulher, sua conduta estaria se baseando em uma vulnerabilidade intrínseca.
3.1 A VULNERABILIDADE DA VÍTIMA
Importa salientar que, quando o dispositivo legal diz que o consentimento é irrelevante frente à situação de vulnerabilidade, a interpretação que se tem é no sentido da vítima ser menor de 18 anos ou possuir alguma incapacidade de consentimento, por doença mental, por exemplo. Acontece que ser vulnerável vai muito mais além de não possuir discernimento dos seus atos.
A vulnerabilidade diz respeito a uma exposição devido à fragilidade. Tal exposição vem de diversos setores, principalmente os sociais, culturais e econômicos. Assim, uma pessoa com dificuldade financeira, que vive uma desigualdade social e sem acesso à cultura e à educação é tão vulnerável quanto um menor de idade, por exemplo, e, às vezes, até mais. Essas modalidades de vulnerabilidade também deveriam ser levadas em conta na hora de se analisar a caracterização do crime de tráfico de pessoas.
Cumpre evidenciar a definição de Rogério Greco sobre fraude do tipo penal:
Fraude, aqui, é todo ardil, engano, simulação no sentido de fazer com que a vítima se iluda com as promessas levadas a efeito pelo agende, acreditando serem verdadeiras quando, na realidade, estará caindo em uma armadilha. Talvez esse seja um dos meios mais utilizados para a prática do tráfico de pessoas, principalmente quando diz respeito às finalidades de submissão ao trabalho em condições análogas à de escravo ou exploração sexual. Isso porque, normalmente, a vítima, nesses casos, se encontra numa situação de vulnerabilidade, a exemplo daquela pessoa que vive em situação de miséria, está desempregada há muito tempo, vive em um meio promíscuo, vem de um lar destruído, tem baixa instrução, vive na marginalidade, dentre outros. As falsas promessas de trabalho, por exemplo, em um país de primeiro mundo, soam como um bálsamo na vítima, que se deixa levar por falsas ilusões. Quando chegam em seu local de destino caem na realidade, e se veem obrigadas a se prostituir, trabalhar em regime de escravidão, sem recebimento de salários ou mesmo com salários muito aquém das suas necessidades, dentre outros. 24
Já a psicóloga Mary Spink, em sua pesquisa sobre a vida em áreas de risco, afirmou que a vulnerabilidade:
[...] busca integrar três dimensões: a individual, referida ao acesso à informação e à capacidade de processá-la e utilizá-la para fins de prevenção; a social, incluindo aí os aspectos estruturais da desigualdade, as relações raciais e de gênero e a estrutura jurídico- política dos países; e a programática ou institucional, referente às maneiras como as instituições atuam para reproduzir condições sociais de vulnerabilidade 25.
É certo que uma mulher com baixa renda, baixa escolaridade ou até mesmo com problemas familiares, será atraída pela proposta de melhora na qualidade de vida com a exploração sexual. A partir do momento em que o agenciador/aliciador/recrutador se aproveita dessa situação em que a mulher se encontra, está caracterizado o abuso e, consequentemente, o vício em seu consentimento.
3.2 O IMPACTO DA DESCARACTERIZAÇÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS COM O CONSENTIMENTO
O delito descrito no art. 149-A, do Código Penal, traz a qualificação do crime a partir do vício no consentimento da vítima, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, mas fica silente quanto aos casos em não há vício, passando a ideia de que, nesses casos, não há crime. Essa ausência de previsão legal abre espaço para entendimentos no sentido de afastar o delito quando a mulher conscientemente concorda com a sua exploração sexual.
O crime de tráfico de pessoas ainda é bastante subestimado na sociedade, onde ainda persiste uma parcela da população acreditando que esse delito apenas ocorra em países mais distantes, estando fora da realidade do Brasil. Ocorre que,São Paulo, por exemplo, é um dos grandes centros de tráfico de pessoas do mundo, onde, diariamente, mulheres se tornam vítimas de tal atrocidade. Cabe, então, ao legislador, oferecer uma maior proteção a essas mulheres, inibindo, de qualquer forma, o tráfico.
Diante da descaracterização do crime perante o consentimento da vítima, diversos traficantes e criminosos em geral sairiam impunes e, certamente, continuariam com a prática do tráfico de pessoas e ainda mais confiantes. Ainda que inexista qualquer tipo vício na anuência, nada garante que o agenciador/aliciador/recrutador não se utilize dessas artimanhas com outras vítimas.
Possibilitar a desconfiguração do tráfico com base apenas do consentimento da vítima significa aumentar a impunidade dos criminosos responsáveis por este delito e desamparar diversas vítimas que sofrem diariamente com a ganância e ambição dos traficantes. E mais, significa fortalecer as redes criminosas. Os danos sofridos pelas vítimas são diversos, afetando não apenas a própria individualidade da mulher traficada, mas também a sociedade como um todo. Inúmeros são os impactos causados pelo tráfico e, dentre eles, o professor Hédel de Andrade Torres, enumera os impactos econômico, social, legal, físico e psicológico 26.
Segundo o professor, o impacto econômico teria como causa o endividamento com os traficantes, gerando a perda de bens da vítima para satisfazer as dívidas. O impacto social decorreria do confinamento e estigmatização da sua condição de vida, acarretando no isolamento social, desconfiança e excesso de timidez. O impacto legal poderia ter como causa uma gravidez indesejada ou a condição de migrante sem os seus devidos documentos, o que geraria perda da guarda dos filhos, encarceramento e deportação. O dano físico seria em decorrência do uso forçado de drogas, agressões, abortos forçados, má qualidade de vida e alimentação, podendo causar diversas doenças e, até mesmo, a morte. Por fim e talvez mais evidente, o impacto psicológico, tendo como fato gerador as ameaças, os maus tratos, o abuso e a violência em geral, ocasionando em diversas síndromes e doenças, como ataques de pânico e depressão, podendo, inclusive, levar ao suicídio.
Uma mediadora social, antiga vítima do tráfico de pessoas e que atualmente trabalha na Associação para a Prevenção, Reinserção e Atenção à Mulher Prostituída (APRAMP), conta a dificuldade de ajudar uma vítima do tráfico, devido ao intenso trauma que passaram e ainda alerta: “não são prostitutas, que é como a maioria as vê. É muito difícil ajudá-las porque não confiam mais em ninguém. Nem na polícia” 27.
O depoimento da mediadora apenas comprova todo o impacto psicológico sofrido pelas vítimas e a perda da confiança nas autoridades policiais e judiciárias. Assim, diversas são as vítimas que acabam ficando desamparadas após o crime. A ineficácia do sistema em punir os culpados pelo delito apenas aumenta a descrença dessas mulheres no sistema judiciário como um todo e deixar de punir os agentes em decorrência do consentimento reforça a ausência de credibilidade.
No mesmo sentido, a psicóloga e professora da Universidade Federal do Amazonas, Consuelana Lopes Leitão, afirma:
As consequências são físicas, psíquicas e sociais. A vítima pode desenvolver baixa autoestima, transtornos de ansiedade generalizada, além do risco de entrar no mundo do tráfico e se tornar usuário de álcool e drogas, além de contrair doenças sexualmente transmissíveis. 28
3.3 ANÁLISE DOUTRINÁRIA E DE PRECEDENTE
Neste ponto, cabe reforçar a existência de controvérsias quando se trata do consentimento da vítima do tráfico de pessoas para exploração sexual, onde cada autor e tribunal têm se posicionado de um jeito. Passamos então à análise desses entendimentos.
3.3.1 Análise da doutrina acerca do consentimento no Tráfico de Pessoas para exploração sexual
O consentimento no tráfico de pessoas para exploração sexual é um tema de grandes controvérsias na doutrina. Diversos autores se destacam ao abordarem a questão. Inicialmente, insta comentar acerca do Luciano Ferreira Dornelas, delegado da Polícia Federal, que defende a possibilidade da existência de um consentimento válido e eficaz, o qual seria capaz de excluir o crime em questão. Para melhor explicar o seu ponto de vista, retoma a autora e professora Cristina Zackseski 29:
Para que o consentimento não seja nulo, três requisitos devem estar presentes: existência da presença do ofendido, do ofensor, da ingerência em um bem juridicamente relevante pelo ofensor e da manifestação de aquiescência, pelo ofendido, sobre esta ingerência. A validade está relacionada à imputabilidade penal, ou seja, à capacidade natural de discernimento, por parte do ofendido, do caráter do criminoso da conduta realizada pelo agente e à necessidade de que a vontade seja produzida e manifestada sem vícios (erro, coação e fraude). No caso de tráfico de pessoas, o abuso de autoridade e o abuso de situação de vulnerabilidade são somados aos requisitos de validade 30.
Dessa forma, ambos os autores mencionados alhures possuem o entendimento de que, em suma, o consentimento apenas será válido quando livre dos vícios presentes no próprio dispositivo legal, inclusive ao tratar-se da situação de abuso dada a fragilidade econômica ou social em que se encontra a vítima. Contudo, entendem que, caso não haja essa fragilidade e nem outros tipos de vícios, o consentimento poderia excluir o crime.
Mahmoud Cherif Bassiouni, professor de direito na Universidade DePaul e conhecido por ser o “pai do direito internacional criminal” disse que:
Essa questão abrange o debate sobre se uma mulher pode consentir na prostituiç ão. Alguns dizem que não, mas os defensores dos direitos humanos afirmam que os trabalhadores do sexo tê m direitos como quaisquer outros trabalhadores. Alguns baseiam seus argumentos na irrefutável presunção de nulidade de qualquer concordância com a prática da prostituição e outras formas de trabalho sexual que se fundamentem na natureza lucrativa dessa atividade. Outros apoiam esse ponto de vista porque consideram esse tipo de consentimento para se prostituir, como resultado da coação econômica ou abuso de vulnerabilidade econômica da pessoa em questão. Aqueles que se posicionam no lado contrário do debate sustentam que as mulheres podem admitir livremente em se tornarem trabalhadores sexuais e que essa escolha deve ser respeitada. Existe consenso quanto à incapacidade de um menor de idade dar consentimento vá lido a esse tipo de exploraç ão mas, ainda assim, discute-se qual a idade para o consentimento à luz da diversidade cultural no mundo. Esses debates tê m enfraquecido os esforç os dos que desejam impedir essa prá tica desumana 31.
Luiz Flávio Gomes, por outro lado, defende que, havendo anuência da vítima, estaria excluída a tipicidade do delito, fundamentando-se para tanto na teoria da imputação objetiva. E mais, para o referido autor, todos os bens jurídicos tutelados pelo tráfico de pessoas são disponíveis, tais como a liberdade individual e a sexual 32.
Destaca-se que a teoria da imputação objetiva, conforme preceitua Cezar Roberto Bitencourt, é aquela cujo fundamento está:
[...] na conjugação do risco causado ao bem jurídico tutelado e o resguardo normativo. Nessa ótica, só é considerada típica uma ação se o agente causou um risco juridicamente proibido. Segundo essa teoria, não se pode imputar objetivamente o resultado típico quando o risco ao bem jurídico for diminuído, quando o risco for ausente ou quando o resultado da ação se der de fora do campo de proteção concedido pela norma 33.
Diferentemente pensa Rogério Sanches da Cunha, o qual acredita que o bem jurídico tutelado no tráfico de pessoas, seja ele qual for, é sempre indisponível, o que, consequentemente, retoma a ideia de que o consentimento da pessoa não retira a responsabilidade do agente 34.
Nessa mesma linha temos o posicionamento de Xavier Plassat Sakamoto, o qual defende a irrelevância do consentimento em qualquer situação:
Percebe-se que na maior parte dos casos em que há exploração da pessoa, seja laboral ou sexualmente, o elemento vulnerabilidade está presente. Sendo assim, o consentimento não se dá de forma totalmente livre e consciente, pois a pessoa encontra-se fragilizada por indeterminados fatores, não devendo ser relevado para fins de descriminalização da conduta 35.
Assim, nota-se que, de fato, existem grandes controvérsias na doutrina como um todo quando se trata do consentimento dado pela vítima do tráfico de pessoas, uns acreditando que tal anuência descaracterizaria o delito e outros defendendo que a vulnerabilidade estaria sempre implícita de alguma forma, o que tornaria incabível a descriminalização do tráfico em qualquer caso.
3.3.2 Análise do julgamento da Apelação Criminal n. 0005165- 44.2011.4.01.3600/MT pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região
O entendimento atual dos tribunais tem se dado no sentido de que, existindo o consentimento voluntário e livre de opressão ou abuso por parte da mulher, não há o que se falar na configuração do delito de tráfico de pessoas. Inclusive, foi exatamente nesse sentido que votaram os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 1a Região no julgamento da apelação criminal n. 0005165- 44.2011.4.01.3600/MT, de agosto de 2019 36:
PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS. EXPLORAÇÃO SEXUAL DE MULHERES. ART. 231 DO CÓDIGO PENAL. CONDUTA PRATICADA NA VIGÊNCIA DA LEI 11.106/2005. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 13.344/2016.
1. A Lei 13.344/2016 expressamente revogou os artigos 231 e 231- A do Código Penal e introduziu no mesmo diploma normativo o artigo 149-A, estabelecendo nova tipologia para o crime de tráfico de pessoas, cuja conduta ainda permanece criminalizada pela referida lei, uma vez que o novo tipo penal prevê todas as hipóteses anteriores, aplicando-se, no caso, o princípio da continuidade normativo típica da conduta.
2. À luz do Protocolo de Palermo e da Lei 13.344/16, somente há tráfico de pessoas, se presentes as ações, meios e finalidades nele descritas. Por conseguinte, a vontade da vítima maior de 18 anos apenas será desconsiderada, se ocorrer ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade, num contexto de exploração do trabalho sexual.
3. Os diversos depoimentos testemunhais colhidos, tanto em sede policial como em Juízo, sob o crivo do contraditório, permitem que se visualize com clareza a forma em que as mulheres eram encaminhadas para a Espanha e tinham os documentos necessários para a viagem providenciados, não havendo nenhuma referência às circunstâncias elementares do novo tipo penal.
4. O tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual (art. 231-A, caput, e § 1o do Código Penal) não se concretizou, uma vez que as mulheres que trabalhavam como prostitutas na boate dos Recorridos para ali foram e permaneceram alojadas por livre e espontânea vontade.
5. Considerando a superveniência da Lei 13.344/2016, tenho pela absolvição dos réus, com fulcro no art. 386, III, do CPP.
6. Apelações providas.
A Relatora, Exma Sra. Desembargadora Federal Mônica Sifuentes, em seu voto, ainda se manifestou da seguinte forma:
À luz do Protocolo e da Lei 13.344/16, somente há tráfico de pessoas, se presentes as ações, meios e finalidades nele descritas. Por conseguinte, a vontade da vítima maior de 18 anos apenas será desconsiderada, se ocorrer ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade, num contexto de exploração do trabalho sexual.
Portanto, não há que se falar na configuração do delito de tráfico internacional de pessoas, consoante a interpretação dada ao art. 149-A, se o profissional do sexo voluntariamente entrar ou sair do país, manifestando consentimento de forma livre de opressão ou de abuso de vulnerabilidade.
[...]
Equivale dizer, especialmente com relação ao crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, que uma vez verificada a existência de consentimento válido, sem qualquer vício, resta afastada a tipicidade da conduta.
[...]
Assim, não há que se falar na incidência no delito de tráfico de pessoas quanto aos réus, considerando a plena consciência das mulheres enviadas para a Espanha, inclusive quanto a contratações de intermediários, com a cobrança de certos valores pelas participações previamente determinados e acordados por ambas as partes, como no caso dos autos.
No caso em apreço, três pessoas haviam sido acusadas pelo crime de tráfico internacional de pessoas por terem auxiliado na ida de brasileiras para a Espanha, local onde exerceriam a prostituição. Inicialmente, o tribunal estabeleceu que a revogação do art. 231, do antigo Código Penal, em nada interfere na tipicidade do tráfico de pessoas, pois a mesma conduta foi estabelecida com o advento da Lei n. 13.344/2016 e com o art. 149-A, do novo Código Penal.
Contudo, os desembargadores da 3a Turma do Tribunal Regional Federal da 1a Região decidiram absolver os réus da acusação, sob o fundamento de que houve o consentimento válido das vítimas. Alegaram, ainda, que em nenhum áudio das conversas interceptadas e depoimentos das testemunhas restou demonstrada a ameaça ou coação, tendo as vítimas consentido livremente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nota-se, por todo o exposto, que o tráfico de pessoas é um delito de alta complexidade e rentabilidade, sendo praticado por décadas, mas sempre com o mesmo objetivo de obter lucro em face da exploração das vítimas. A ganância gerada em decorrência dessa lucratividade faz com que o delito seja cada vez mais visado e realizado pelos criminosos.
Sabe-se que a maioria das suas vítimas é do sexo feminino e, normalmente, com histórico de pobreza, baixa escolaridade e problemas familiares, o que faz com que sejam atraídas mais facilmente pelas redes de tráfico, que abusam dessa situação de vulnerabilidade.
Apesar do Brasil ter progredido em relação ao aparato legislativo que cuida do tráfico de pessoas, tem-se que as leis nacionais e os tratados ainda não são suficientes para inibir por completo a prática de tal atrocidade. O grande exemplo disso é a questão da desclassificação do crime frente ao consentimento válido e livre de vícios da vítima, em decorrência do silêncio legal acerca do assunto.
A controvérsia sobre o tema é no sentido de que nunca haveria um consentimento totalmente livro de vícios, tendo em vista a vulnerabilidade inerente da vítima. Assim, dificilmente haverá casos em que uma mulher com boas condições financeiras e familiares irá se submeter à prostituição, pois tais casos costumam acontecer quando a vítima está em busca de uma melhoria na qualidade de vida. Dessa forma, não seria sensato descaracterizar o crime com base no consentimento da vítima.
E mais, destaca-se que a mulher possui liberdade sobre o seu corpo, podendo decidir se prostituir livremente, não devendo o Estado interferir ou punir esses casos. O que aqui se critica é a impunidade das pessoas que a auxiliam nesse processo.
Nesse sentido, diversos criminosos deixam de ser punidos pois acabam sendo absolvidos do crime frente à anuência dada pela vítima. Tal fato faz com que se cresça uma sensação de impunidade dos agentes praticantes do delito, fazendo com que as vítimas criem uma descrença no sistema judiciário como um todo e com que grandes redes de tráfico fiquem imunes e ainda mais confiantes para cometerem novos crimes.
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