A ineficácia das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha e o crime de feminicídio

05/03/2021 às 01:00
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O crime de feminicídio surge como um possível resultado nas situações em que há o aumento na violência doméstica e como este crime pode resultar da ineficácia das medidas protetivas de urgência trazidas pela Lei Maria da Penha.

Introdução

Primordialmente essa pesquisa denota o seguinte tema “a ineficácia das medidas protetivas de urgência e o crime de feminicídio”.

Perante o contexto histórico da luta feminina contra a violência de gênero e a por direitos fundamentais, evidenciados através dos alarmantes casos de violência doméstica e familiar. Seria, portanto, eficaz a concessão das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha? Haveria algum outro mecanismo jurídico que pudesse assegurar a integridade das vítimas?

O objetivo geral desta pesquisa é: analisar a ineficácia na aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, assim como a possibilidade de existência de uma relação com o crime de feminicídio.

Para tal finalidade, foram designados os seguintes objetivos específicos: analisar o impacto trazido pela incorporação da Convenção de Belém do Pará ao ordenamento jurídico brasileiro.

Em seu primeiro tópico introduz sobre a árdua luta por direitos fundamentais e a evolução da legislação internacional e brasileira perante os casos de violência contra a mulher, possuindo como marco exordial e significativo, a introdução da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, posteriormente, sendo criada e integrada a legislação pátria a Lei n° 11.340 de 2006, popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”.

Adiante em seu segundo tópico, aborda o surgimento e promulgação da lei que dispõe sobre a violência doméstica e familiar no Brasil, a Lei Maria da Penha. Em seu texto, vem dispor das formas de violência, a abrangência do termo “mulher”, as medidas que visam proteger as vítimas e seus dependentes, assim como a possibilidade de punição em caso de descumprimento das medidas impostas.

Seguindo em análise dos artigos, entramos no terceiro tópico o qual expõe as modalidades e conceituações de violência contra mulher no âmbito doméstico-familiar previstas na legislação em debate, bem como as possíveis tipificações no Código Penal Brasileiro e as formas de execução destas agressões.

Prontamente no quarto tópico, torna-se necessário o entendimento e a abrangência do termo “mulher”, assim como a aplicabilidade da Lei n° 11.340 de 2006 as mulheres que integram a comunidade LGBTQI+. Levando em consideração a jurisprudência que dispõe da aplicação da legislação as mulheres transexuais e travestis.

No quinto tópico, analisa-se as medidas protetivas de urgência, a possibilidade de prisão preventiva nos termos da Lei n° 11.340 de 2006 e do Código de Processo penal e a implementação da qualificadora do feminicídio

Em suma, o presente trabalho apresenta uma pesquisa bibliográfica sobre o referido tema com o intuito de indicar a possibilidade de existir uma relação entre a ineficácia das medidas protetivas de urgência e o crime de feminicídio.

1. Violência contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

A prática de violências baseadas no gênero, de certo modo, foi perpetuada e ignorada pelo Estado, que se omitia diante dos casos de violência sexual para consecução de confissões na época da Ditadura Militar no Brasil, assim como a esterilização forçada como estratégia para controle social, o aborto forçado e a tipificação do adultério como crime, são hipóteses de violações aos corpos femininos. Em âmbito internacional, ainda é comum o tráfico humano, principalmente de mulheres, com a finalidade para venda de órgãos, prostituição e escravização sexual, no passado os casos de estupros em guerra para obtenção de confissões ou como no caso do Nazismo, para criação de uma raça considerada pura por Hitler.

            As mulheres persistem lutando pela preservação da sua integridade física e mental. Sempre concatenada a propriedade ou objeto, devendo ser passada sua posse do pai para o marido. Com isso, é importante salientar que os casos de violência doméstica não ocorriam apenas em uma relação conjugal, haviam ocasiões do pai ou do irmão também atuarem como agressores. Quando casadas, a figura do agressor apenas era transferida para o marido. Não devendo calar-se no que diz respeito aos casos de violência envolvendo as amantes, as relações extraconjugais, dentre outras relações familiares em que a mulher sempre configurou a posição de vulnerabilidade.

            A figura feminina perante uma sociedade patriarcal e machista não poderia ser desvinculada a imagem de submissão, inferioridade e fragilidade. A sociedade sempre fechou os olhos para os casos de violência contra a mulher, criando e reproduzindo ditados populares, assim como frases em tons jocosos que reforçam essa omissão e adotando uma postura de cumplicidade para com os casos de violência doméstica. Como avulta a Des. Maria Berenice Dias, do TJRS:

Ditados populares, com natureza aparentemente jocosa, acabam por absolver e naturalizar a violência doméstica: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”; “ele pode não saber por que bate, mas ela sabe por que apanha”. Esses, entre outros ditos repetidos como brincadeira, revelam certa conivência da sociedade para com a violência contra a mulher. Talvez o mais terrível deles seja: “mulher gosta de apanhar”. Trata-se de uma ideia enganosa, certamente gerada pela dificuldade que a vítima tem de denunciar seu agressor. Seja por medo, por vergonha, seja por não ter para onde ir, ou receio de não conseguir se manter sozinha e sustentar os filhos. O fato é que a mulher resiste em buscar a punição de quem ama ou, ao menos, amou um dia

            A história das mulheres foi marcada pela luta por igualdade, visando sair dessa posição de inferioridade que lhe foi imposta desde o nascimento, dispondo como ponto crucial o movimento social feminista, pautado nas exigências de políticas públicas que visassem coibir, prevenir e erradicar a violência contra a mulher.

            Desde o início dos anos 80, a luta do movimento feminista estava ocorrendo em outros países, era conhecido nacionalmente, aqui no Brasil e internacionalmente, levantando pautas em apoio a igualdade de gênero e ao respeito da mulher como detentora de direitos. Em decorrência deste movimento, no Brasil, as mulheres obtiveram alguns direitos, dentre eles, a possibilidade de frequentar escolas e universidades, poder viajar sem a necessidade de autorização do companheiro, poder se divorciar, ao sufrágio feminino com algumas imposições, direitos reprodutivos, sendo este, o acesso a métodos contraceptivos e ao aborto resultante do crime de estupro.

            O movimento feminista influenciou na criação e implementação de uma delegacia especializada para investigação de delitos resultantes da violência pautada no gênero feminino, a primeira foi criada no ano de 1985 em São Paulo. A princípio essas delegacias não foram recepcionadas, sendo de certa forma, não eficazes. Devido ao atendimento despreparado por parte dos policiais, em sua maioria homens, o que trazia desconforto as vítimas, que eram desacreditadas ao tentar realizar a denúncia contra o agressor. Em determinados momentos, coagidas pela autoridade policial a não registrarem a ocorrência, através de questionamentos como: “Quem irá te sustentar? E seus filhos? Onde vocês irão morar? Tem certeza que você não teve culpa?”.

            A violência contra mulher, surge como uma manifestação concreta da discriminação de gênero e do desprezo pela imagem feminina, de modo que levanta o questionamento acerca da igualdade entre os gêneros. A princípio, o primeiro documento a trazer a ideia de igualdade entre gêneros e a prevenção da violência pautada no gênero e nas relações intrafamiliares foi a Constituição da República, de 1988, preconizando em seu artigo 226 que, “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, destarte, seguindo o raciocínio do presente artigo, seu §8 salienta que, “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. O texto citado apresenta a ideia utópica, de que a mulher assumiria a posição de igual para com os homens, que por séculos impuseram a estas, o lugar de subalternas.

            Enquanto no Brasil não havia indícios da criação de uma legislação voltada para prevenção e punição da violência pautada no gênero, em âmbito internacional eram realizados sucessivos eventos pautados na tutela dos direitos da população feminina, a Organização das Nações Unidas – ONU – como principal aliada para trazer garantias de proteção à mulher mediante acordos internacionais.

            A Conferência de Direitos Humanos das Nações Unidas, no ano de 1993, foi fundamental para luta contra a violência de gênero no âmbito internacional, foi esta Conferência que definiu formalmente a violência contra a mulher como violação aos direitos humanos.

            Assim, em 1994, através da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA, foi adotada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que tem por objetivo a eliminação da violência contra a mulher, assim como a prevenção e punição, trazendo a definição do termo “violência contra a mulher” e sendo esta violência tratada como grave problema de saúde pública.2 Corroborando a violência contra a mulher como uma violação aos direitos humanos e estabelecendo deveres aos Estados assinantes de tal Convenção.

            A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ficou conhecida como a Convenção de Belém do Pará, devido ao fato de ter sido inicialmente adotada aqui no Brasil, pelo Estado de Belém do Pará. Foi reconhecida pelo Brasil, no ano de 1995, quando aprovada pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo 107/95) e no ano seguinte, promulgada pelo Presidente da República através do Decreto 1.973/96.

Esta é considerada o primeiro tratado internacional que dispõe sobre a proteção aos direitos humanos das mulheres a reconhecer expressamente a violência contra a mulher como um problema enraizado e difundido na sociedade, afirmando ainda, que a violência contra a mulher consiste em uma grave violação aos direitos humanos e à ofensa à dignidade humana, de modo a manifesta-se as relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens. Ressaltando tal afirmação no Preâmbulo do instrumento em apreciação:

A Assembleia Geral […] Preocupada porque a violência em que vivem muitas mulheres na América, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, é uma situação generalizada; […] Convencida da necessidade de dotar o sistema interamericano de um instrumento internacional que contribua para solucionar o problema da violência contra a mulher; […]

                De maneira que a Convenção, criada pela OEA, em seu o artigo 1° conceitua o que seria a violência contra a mulher da seguinte forma, “violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”.

            Esta Convenção foi um grande avanço na proteção internacional dos direitos das mulheres visando prevenir, punir e erradicar a violência contra mulher, uma violência específica baseada no gênero, trazendo um importante rol de diretos a serem assegurados às mulheres com a finalidade de assegurar à mulher o direito a uma vida sem violência. Influenciando diretamente na elaboração da Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei da Maria da Penha.

1.1. LEI N° 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006 – Lei Maria da Penha

Maria da Penha, conhecida mundialmente no cenário de luta pelo direito das mulheres, após ser vítima de diversas agressões e duas tentativas de homicídio por parte do seu esposo, foi a personagem central e influenciadora no surgimento da Lei n° 11.340/2006, a lei da violência doméstica.

Titulada popularmente como Lei Maria da Penha, decorre da história verídica de Maria da Penha Maia Fernandes, formada em Farmácia pela Universidade Federal do Estado do Ceará, tem três filhas e foi casada com o economista colombiano, M. A. H. V. seu agressor.

Sofreu a primeira grande violência no ano de 1983, quando seu marido tentou matá-la, atirando na sua cabeça com uma espingarda enquanto dormia, como resultado dessa primeira tentativa de homicídio, ficou paraplégica. Após quatro meses da primeira tentativa de homicídio, tornou-se vítima mais uma vez das atrocidades do seu companheiro, que tentou eletrocutá-la durante o banho. Após um ano da primeira tentativa de homicídio, o Ministério Público ofertou a denúncia.

Foi no ano de 1998 que, Maria da Penha, o Centro para Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) denunciaram o ato para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH /OEA), fazendo com que o caso ganhasse uma dimensão internacional, o que foi importante nessa batalha contra a violência no âmbito familiar.

Mesmo diante de toda repercussão internacional a respeito da grave violação aos direitos humanos, o Estado brasileiro permanecia omisso. No ano de 2001, foi acusado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres brasileiras.

Perante a ausência de uma legislação especial que tratasse da violência doméstica e familiar contra a mulher, acentuando o padrão na prática de agressões contra à mulher e a impunidade dos agressores. Surgiu, um Consórcio de ONG’s feministas para que houvesse a elaboração de uma lei, visando proteger e garantir justiça às mulheres agredidas. Depois de debates com os Poderes Executivo e Legislativo e a sociedade, o projeto de lei 4.559 de 2004 foi aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

Após 24 anos da primeira tentativa de homicídio foi sancionada a lei n° 11.340 de 2006, que tem como objetivo proteger, coibir e erradicar as situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente de cor, raça, etnia ou orientação sexual, como expõe os artigos da respectiva Lei.

Art. 1° Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8 do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

A Lei foi elaborada após pressão internacional para criação de uma legislação voltada para proteção da mulher e visando cumprir o compromisso assumido internacionalmente pelo Brasil. Após anos de uma violência omitida pela sociedade, esta foi saudada por Silvia Pimentel: “o Brasil está de parabéns, pois se trata de um instrumento legal cuidadoso, detalhado e abrangente, que representa o esforço de contextualização das duas paradigmáticas convenções.” As Convenções citadas por Pimentel, trata-se da Convenção de Belém do Pará e da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres.

2. A Violência Doméstica ou Familiar e as Formas de Violência contra a Mulher Apresentadas pela Lei Maria da Penha

            A lei que dispõe acerca da violência doméstica, criada como medida de punição internacional para o Brasil após a omissão diante do caso “Maria da Penha”, não é um mero instrumento punitivo. Nas palavras de Sanches e Pinto, “a Lei Maria da Penha não é uma simples lei, é um precioso estatuto, não somente de caráter repressivo, mas sobretudo, preventivo e assistencial.

A Lei Maria da Penha foi marcante na luta em combate a violência contra mulher no âmbito doméstico ou familiar, em consonância com Tratados e Convenções, os quais o Brasil é signatário a lei foi sancionada visando prevenir, erradicar e punir a violência contra a mulher, tem como um marco inicial a incorporação da Convenção de Belém do Pará, posteriormente a sanção da lei 11.340 de 2006 – Lei da Violência Doméstica e a aprovação da lei 13.104 de 2015 - Lei do Feminicídio.

Em harmonia com o que dispõe a Convenção de Belém do Pará, a lei da Violência Doméstica elucida o conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher e qual a sua abrangência diante dos âmbitos e relações entre a vítima e o agressor.

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Em face do disposto pela citada lei, a violência contra mulher não abrange somente o âmbito doméstico e relações íntimas de convívio, como também o familiar e relações íntimas de afeto que não haja coabitação, entretanto acautela Guilherme Nucci:

A mulher agredida no âmbito da unidade doméstica deve fazer parte da relação familiar. Não seria lógico que qualquer mulher, bastando estar na casa de alguém, onde há relação doméstica entre terceiros, se agredida fosse, gerasse a aplicação da agravante trazida pela Lei Maria da Penha.

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Em síntese, não é necessário que a vítima e seu agressor convivam sob o mesmo teto para que a Lei Maria da Penha seja aplicada, de modo que é essencial apenas a existência de qualquer relação íntima de afeto.

Ademais, a legislação explicita a conceituação das formas de violência contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar, como preceitua o artigo 7° da Lei Maria da Penha, in verbis:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

A violência física, de acordo com a Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça de Sergipe, é aquela entendida como qualquer conduta que venha a ofender a integridade ou a saúde corporal da mulher. É aquele que fazendo uso da força visa lesar a integridade física ou a saúde corporal da vítima, resultando em marcas aparentes ou não, ofendendo aquilo que é denominado tradicionalmente de vis corporalis.

No posicionamento da nobríssima Sonia Rovinski:

Ainda que a agressão não deixe marcas aparentes, o uso da força física que ofensa o corpo ou a saúde da mulher constitui vis corporalis, expressão que define a violência física. A violência física pode deixar sinais ou sintomas que facilitam a sua identificação: hematomas, arranhões, queimaduras e fraturas. O estresse crônico gerado em razão da violência também pode desencadear sintomas físicos, como dores de cabeça, fadiga crônica, dores nas costas e até distúrbios do sono.

Assim, na maioria dos casos, a violência física é o último ato de agressão do ciclo de violência, visando deixar marcas ou sequelas no corpo da vítima. A violência doméstica praticada através da violência física é mais visível a terceiros, estas agressões são acompanhadas de justificativas por parte da vítima para negar que houve uma agressão a sua integridade física.

A violência psicológica consiste em toda e qualquer ação que vise causar alteração no estado mental da vítima, amedrontando ou causando dano a sua integridade psicológica. O agressor menospreza, ridiculariza, ameaça, ofende, manipula a vítima, até mesmo explorando o direito de ir e vir da sua vítima, sentindo prazer ao fazer isso. Enquanto a vítima torna-se uma refém, humilhada, menosprezada e angustiada com medo de reagir devido a dependência emocional criada através do ciclo da violência.

Segundo Rogério Cunha e Ronaldo Pinto a violência psicológica consiste:

Na agressão emocional (tão ou mais grave que a física). O comportamento típico se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro se sentir amedrontado, inferiorizado e diminuído, configurando a vis compulsiva.

Segundo José Navarro Góngora, a violência psicológica consiste na agressão emocional, seguindo três grandes estratégias: submissão pelo medo, desqualificação da imagem e bloqueio das formas de sair.

A violência psicológica pode estar acompanhada por outra forma de violência doméstica, a exemplo, da violência moral. Conforme a Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça de Sergipe, “entende-se por violência moral qualquer conduta que importe em calúnia, quando o agressor ou agressora afirma falsamente que aquela praticou crime que ela não cometeu; difamação; quando o agressor atribui à mulher fatos que maculem a sua reputação, ou injúria, ofende a dignidade da mulher”. A violência moral em certos casos pode anteceder a prática da violência física.

Elucida Virgínia Feix, que:

A violência moral é sempre uma afronta à autoestima e ao reconhecimento social, apresentando-se na forma de desqualificação, inferiorização ou ridicularização. Diante das novas tecnologias de informação, internet e redes sociais, a violência moral contra a mulher tem adquirido novas dimensões. São ofensas divulgadas em espaços virtuais massivamente e em rede, de forma instantânea e de difícil comprovação e combate.

A mulher vítima da violência moral convive com a exposição e ataques a sua honra sem possibilidade de defesa, encontra-se diante do aniquilamento da sua reputação. Com os avanços da tecnologia e meios de comunicação tornou-se mais rápido e prático a divulgação de ataques a moral desta mulher, na maioria das ocorrências, não é possível a localização do agressor que a violou moralmente para que este responda por seus atos.

A violência sexual é todo e qualquer crime contra a liberdade sexual, de forma abrangente, consiste em qualquer conduta com o intuito de constranger a mulher a manter, a participar ou a presenciar relação sexual não desejada, através de constrangimento, ameaça ou utilização da força. A violência sexual também se expressa no impedimento da utilização de método contraceptivo, forçar a vítima a prostituir-se mediante coação ou manipulação, limitando ou anulando o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

As vítimas da violência sexual sentem-se constrangidas de buscar atendimento, porque em alguns casos os profissionais que vão atende-las não estão preparados para isso, tornando a experiência ainda mais traumática e vergonhosa, fazendo com que essas vítimas por medo não denunciem e não comentem sobre, principalmente, quando envolve um parente próximo, como pai, irmão ou tio. Nas palavras de Rogério Cunha e Ronaldo Pinto, “Agressões como essas provocam nas vítimas, não raras as vezes, culpa, vergonha e medo, o que as faz decidir, quase sempre, por ocultar o evento.”

A violência patrimonial, como elucida a Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça de Sergipe, “importa em qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos pertencentes à mulher, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.” Assim como as outras formas de violência doméstica, a violência patrimonial nem sempre se apresenta sozinha, ela pode vir acompanhada de uma outra forma de violência contra mulher, essa violência é discreta e silenciosa, causando na vítima uma dependência financeira prevista e desejada pelo seu agressor.

Explana Maria Berenice Dias, a violência patrimonial, “cabe ser tipificado como violência patrimonial quando a subtração ocorre com a finalidade de causar dor ou dissabor à mulher, pouco importando o valor dos bens subtraídos.” Equitativamente, Delgado explana que, “a violência patrimonial está nucleada em três condutas: subtrair, destruir e reter.”

Nota-se uma complexidade em encontrar apenas uma forma de violência doméstica, visto que em algumas situações, uma modalidade desta violência serve como gatilho para ocorrência de outra ou outras. A exemplo, as agressões podem iniciar-se na forma de violência psicológica ou moral e atingir a modalidade de violência física. Dessa forma, pode-se destacar que as formas de violência acontecem em decorrência uma da outra 21 ou ocorrem concomitantemente.

O artigo 7° do citado diploma legal possui um rol meramente exemplificativo e não possui o intuito de criar novos tipos penais, em consonância com o princípio da tipicidade, o artigo vêm estabelecer em grandes grupos de espécies de violência, dentre os quais se traduzem em inúmeros ilícitos civis e penais já devidamente previstos em lei.

Como consequência da leitura do artigo 7° da Lei Maria da Penha há uma corrente doutrinária que defende haver a incidência dos institutos da lei especializada, mesmo perante a inexistência de um ilícito penal.23 Ressaltando que o presente artigo do diploma legal possui um rol exemplificativo das formas de violência, de modo que pode haver o entendimento de que determinada prática caracteriza uma modalidade de violência intrafamiliar entretanto, não se tratar de um ilícito penal.

2.1. A Violência Intrafamiliar e a Comunidade LGBTQI+

A Lei 11.340/2006 por não possuir uma natureza jurídica específica, traz aspectos que oscilam entre a esfera cível e a esfera criminal. Em seus artigos iniciais, o documento apresenta a sua finalidade, a abrangência do termo mulher, as modalidades de violência, o âmbito de abrangência e o conceito de família para situações de aplicação da legislação.  

Como recorda Maria Berenice, “pela primeira vez uma lei traz o conceito de família, iniciativa que não teve nem a Constituição e nem o Código Civil. Além disso o faz de forma corajosa. Para assegurar sua aplicação a Lei Maria da Penha define família (LMP, art. 5°, II)”, sendo esta, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. A Lei inovou ao trazer, para o âmbito infraconstitucional, a ideia de que a família não é constituída por imposição de lei, mas, sim, por vontade dos seus próprios membros.

Tal definição de família trouxe um avanço ao ordenamento jurídico, criando espaço para novos modelos de família. Como salientam Iglesias Fernanda de Azevedo e Rodrigo Viana Saraiva, “aceitar novos modelos familiares não significa dizer que a família está destruída. Conceber apenas a família nuclear composta pelo casal heterossexual e filhos como o único modelo de família aceitável, é incompatível com a natureza afetiva da família”.

No entanto, ampliar o conceito de família não foi o único avanço que a legislação trouxe. Da mesma maneira que a lei amplia o termo “família”, a mesma traz a abrangência do termo mulher em seu artigo 2°, in verbis:

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Diante de tal definição, a proteção que a lei prevê também consagra aquelas mulheres que são LGBTQI+. De modo a proteger, aquelas que são lésbicas, travestis, transsexuais, transgêneros e intersexuais quando, estas, forem vítimas da violência e o autor é pessoa com quem possuem relação afetiva no âmbito da unidade doméstica ou familiar. Enfatiza Dias, que, “expressa e repetidamente a Lei Maria da Penha reconhece a união homoafetiva como família, ao dizer que sua aplicação independe da orientação sexual (LMP, arts. 2.° e 5.° parágrafo único)”. Em evidência, o texto dos artigos mencionados:

Art. 2°. Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 5°. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Salientam Rogério Sanches e Ronaldo Pinto, “notável a inovação trazida pela lei neste dispositivo legal, ao prever que a proteção à mulher, contra a violência, independe da orientação sexual dos envolvidos. Ressalta Sérgio Ricardo de Souza:

A cônjuge ou a companheira da vítima responde pela prática de violência de âmbito familiar (LMP, art. 5°, parágrafo único). Basta estar o vínculo caracterizado como relação doméstica, familiar ou de afetividade, pois o legislador deu prioridade à criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher, sem importar o gênero do agressor.

Não restam dúvidas a respeito da aplicação da Lei 11.340/2006 aos casos em que envolvem agressões entre duas mulheres. Em consonância, a jurisprudência encontra-se pacificada em relação a aplicabilidade da Lei 11.340/2006 aos casais homoafetivos lésbicos, de modo a ser possível a integração da mulher como agressora, desde que sua vítima seja outra mulher, tratando-se de uma qualidade especial para configurar como vítima. Tal entendimento segue pacificado na maioria dos Tribunais brasileiros, assim como no Superior Tribunal de Justiça, segue a jurisprudência.

Conflito de jurisdição. Relação Homoafetiva. Vítima mulher e agressora mulher. Incidência da Lei 11.340. Conflito procedente. Está pacificado no Superior Tribunal de Justiça: A Terceira Seção deste Superior Tribunal afirmou que o legislador, ao editar a Lei Maria da Penha, teve me conta a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica em relações patriarcais. Ainda, restou consignado que o escopo da lei é a proteção da mulher em situação de fragilidade/vulnerabilidade diante do homem ou de outra mulher, desde que caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade. Situação ocorrida no caso em julgamento, razão pelo qual a competência para o exame do procedimento é o do Juizado de Violência Doméstica. Decisão: Conflito de competência procedente. Por maioria. (TJRS, CJ 70077136091, 1a C. Crim., Rel. Sylvio Baptista Neto, j. 25/04/2018).

“(...) Restando configurado que as partes mantinham uma relação homoafetiva, e que esse relacionamento de íntimo afeto acabou em agressões e ameaças, nos termos do art. 5°. Da Lei 11.340/2006, compete ao Juiz da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher o seu processamento e julgamento. 2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Suscitante” (TJMG, CC 1.0000.10.050729-2/000, j. 05.10.2010, rel. Antônio Armando dos Anjos).

Quanto a aplicabilidade da Lei às relações homoafetivas lésbicas há pacificação tanto da jurisprudência quanto da doutrina majoritária, entretanto surge a dúvida quando a aplicação desta lei as pessoas transsexuais, travestis e transgêneros, que possuem a identidade de gênero31. feminina e as pessoas intersexuais

Embora a lei não adote expressamente o termo “identidade de gênero”, a lei assegura a proteção também as mulheres transexuais, travestis e transgêneros. Conforme anotado pela Des. Maria Berenice Dias, do TJRS:

No momento em que é afirmado que está sob o abrigo da lei a mulher, sem se distinguir sua orientação sexual, alcançam-se tanto lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros que mantêm relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência contra o gênero feminino justificam especial proteção.

Não reconhecer a aplicabilidade da Lei Maria da Penha as pessoas que possuem identidade de gênero feminina, atenta contra o princípio constitucional a dignidade da pessoa humana, fere os direitos humanos. Omitir-se diante da questão é concordar com a prática da violência doméstica ou familiar contra os corpos trans femininos. Outra violação a este princípio, é notável quando a doutrina minoritária afirma que para o reconhecimento dessa aplicabilidade, se faz necessária a mudança registral e até mesmo a realização da cirurgia de redesignação sexual para que esta mulher trans, seja de fato considerada mulher encaixada nos moldes da lei que dispõe contra a violência doméstica. Consolidando o entendimento de que não há necessidade de tais mudanças, o tema tornou-se objeto do enunciado do FONAVID, no enunciado 46:

A Lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentemente de alteração registral de nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do artigo 5° da Lei n. 11.340/2006 – Aprovado no IX FONAVID Natal.

Seguindo o entendimento de que a Lei 11.340/2006 deve proteger as mulheres trans, recentemente, o juiz Alexandre Machado de Oliveira, do Juizado de Violência Doméstica Contra a Mulher de Arapiraca (AL), decidiu que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada em casos de agressão contra pessoas transexual.

Ao discutirmos, de forma adequada, os direitos da comunidade LGBTQI+ é importante que nós cidadãos não apenas defendamos nossos direitos individuais, mas que assumamos a defesa de todos os direitos dos demais indivíduos componentes da comunidade.

O viés de liberdade sobre o qual nos debruçamos é o de não estar subjugado a outrem. O direito de liberdade que deve ser reconhecido à autora da ação é o de poder conduzir seu modo de vida sem constrangimentos.

O alcance da Lei Maria da Penha às mulheres transgênero e transexuais, bem como o reconhecimento de outros direitos, a exemplo do uso de banheiro feminino, deve ser definido com base na leitura moralizante da Constituição. Nesse sentido devem ser lidas e interpretadas as cláusulas constitucionais que definem os pressupostos do Estado Democrático de Direito, que integra, politicamente, os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade, prossegue o magistrado.

Com a decisão moderna e vanguardista do magistrado, há uma abertura para que outros tribunais estaduais assim decidam, em favor da mulher, sendo cisgênero ou transexual. O entendimento que prevalece de forma majoritária é que a lei 11.340/2006 atende as mulheres trans, estando em consonância com a ementa da lei que visa proteger a mulher, vítima da violência doméstica ou familiar. Essa proteção especial trazida pela Lei Maria da Penha é justificada através dos papeis sociais que somente a mulher é instada a desempenhar, justamente pela condição de ser mulher, de modo que se pertencesse ao gênero masculino, tal obrigação não lhe seria imposta e não haveria o desrespeito a essas mesmas normas.

Perante tal consolidação de entendimento jurisprudencial e as decisões em favor da aplicação da legislação, que dispõe da violência doméstica, as mulheres da comunidade LGBTQI+ estamos diante de um avanço do direito e da justiça. Tais decisões diante de uma sociedade enraizada em preconceitos, trazem um reconhecimento para uma parcela da sociedade esquecida e marginalizada como é a comunidade LGBTQI+, em especial, as mulheres que também integram este grupo.

3. DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA PREVISTAS NA LEI MARIA DA PENHA E O CRIME DE FEMINICÍDIO

Com a finalidade de coibir a prática de violência contra a mulher, e assegurar a integridade das vítimas, a Lei Maria da Penha elencou medidas cautelares com o intuito de frustrar os intentos do agressor. Tais medidas pretendem garantir a proteção e segurança da vida da mulher que foi ou permanece vítima de violência intrafamiliar.

Como enfatiza Maria Berenice Dias, “elenca a Lei Maria da Penha um rol de medidas para dar efetividade ao seu propósito: assegurar à mulher o direito a uma vida sem violência.”. Entretanto, as disposições para assegurar esse direito não se limitam apenas as medidas protetivas de urgências previstas nos artigos 22 a 24 da LMP, outras medidas podem ser adotadas a fim de reprimir as agressões e proteger as vítimas da mesma.

A legislação descreve as medidas protetivas e as classifica em duas seções, cada qual em um artigo e suas hipóteses elencadas de forma exemplificativa. In verbis:

Seção II

Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I- suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003 

II- afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV- restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V- prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

VI- comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e

VII- acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

Seção III

Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida

Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

I- encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

II- determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

III- determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV- determinar a separação de corpos.

V- determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para essa instituição, independentemente da existência de vaga.

As medidas trazidas neste artigo possuem o objetivo de coibir diretamente o agressor de seus atos infracionais, lhe restringindo direitos, como: a suspensão da posse ou a restrição do porte de arma de fogo, o afastamento do convívio familiar, suspensão das visitas, de modo a buscar evitar que o resultado desta violência se agrave. Recentemente, foi incorporado ao artigo a alteração legislativa que impõe como medida protetiva o acompanhamento psicossocial e a frequentação em programas individuais ou em grupo, visando recuperar e reeducar o agressor, para que este não seja reincida.

O artigo 23 da LMP, compreende as medidas protetivas de urgência à ofendida, com o mesmo propósito das medidas expressas no artigo anterior. Estas são direcionadas, visando trazer uma maior garantia de efetividade na decisão a ser tomada, ou em situações que é possível prevê que o agressor não respeitará o que lhe foi imposto, devido ao seu perfil possessivo. Dentre estas medidas, encontra-se como novidade a previsão da possibilidade da separação de corpos, ou seja, a opção da vítima entrar com uma ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução da união estável perante o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Para BIANCHINI, BAZZO e CHAKIAN, “essa cessação do vínculo jurídico entre as partes, pode contribuir para diminuir o equivocado e perigoso sentimento de posse do homem em relação à mulher com quem mantinha um vínculo afetivo.”35 Tal afirmação é utópica, ao analisar casos concretos, em evidência aqueles que chegam a mídia, um dos fatores principais para o cometimento de um homicídio no âmbito das relações domésticas decorre do sentimento de posse que o agressor sente pela vítima.

Com o propósito de amenizar a situação das vítimas de violência doméstica e familiar, assim como assegurar sua integridade, a legislação dispõe de soluções incisivas, dentre elas, quanto ao descumprimento destas medidas protetivas, estabelecendo, a princípio que, o descumprimento trata-se um delito penal, de modo a ser irrelevante o juízo que as concedeu, seja este um juízo cível ou penal, e de modo que não se faz a exclusão da aplicação de outras sanções, desde que cabíveis ao fato.

Em conformidade, pontua Dias, que, “para assegurar maior efetividade à Lei Maria da Penha, restou reconhecido como delito penal o descumprimento da decisão judicial que defere de medidas protetivas de urgência, ao qual é cominada a pena de três meses a dois anos (LMP, art. 24-A).” Mesmo diante da punição prevista dentro da legislação específica, a existência de casos em que a violência doméstica resulta na morte da vítima trazem situações em que, o simples ato da mulher terminar o relacionamento ou a decretação do afastamento do companheiro, pode resultar no agravamento da violência. O resultado mais grave da violência doméstica é o crime de feminicídio, não previsto na LMP mas previsto no Código Penal. A possibilidade deste resultado ao ser concedida uma medida protetiva, alerta para ineficácia das  mesmas.

Ao adentrar a relação das medidas protetivas e o crime de feminicídio como possível resultado, é necessário compreender a essência desta recente tipificação e qual diploma legal incluiu este dispositivo ao Código Penal como uma qualificadora no crime de homicídio, previsto no artigo 121 do vigente diploma legal.

Nas considerações iniciais de BIANCHINI, BAZZO e CHAKIAN para o surgimento da lei:

Até há pouco tempo considerado, em sua maioria, como um “crime passional”, ou seja, praticado em contexto de sentimento de amor e paixão, o feminicídio passou a ser preocupação da legislação penal brasileira somente no ano de 2015, mesmo sendo evidente o fato de que se trata da maior causa de mortes violentas femininas em todo o mundo, conforme confirmam há anos coletas de dados e produção de estatísticas, não no âmbito da Segurança Pública, mas da Saúde Pública.

Antes do surgimento da lei que respaldou legalmente o crime de feminicídio, as mortes motivadas em razão do gênero feminino eram classificadas como meros crimes passionais, casos em que o agressor matava sua companheira instigado pela violenta paixão ou por ciúmes. Até certo tempo, existia a ideia de legítima defesa da honra, sendo esta uma excludente de ilicitude, prevista no artigo 27 do Código Penal, que vigorou entre 1890 e 1940, em síntese, o artigo explicava que não seria considerado crime aquele que cometesse tal ato durante o estado emocional alterado, por exemplo, o marido que matou sua esposa por acreditar ser vítima de traição conjugal ou não agisse conforme os costumes da época e suas ordens.

É importante ressaltar que o crime de feminicídio não é aquele cometido apenas no âmbito da relação conjugal, entretanto, os dados alarmantes da prática deste delito são no âmbito  das relações doméstico familiares, em que a mulher é vítima do seu atual ou ex-companheiro ou de sua atual ou ex-companheira, partindo do pressuposto de que a Lei Maria da Penha abrange as relações lésbicas.

Assim como a criação da Lei Maria da Penha gerou intensos e longos debates no que diz respeito a sua constitucionalidade, com a Lei que tipifica o crime de Feminicídio não foi diferente, houveram autores da área jurídica que se posicionavam contra a criação da lei e outros que se posicionavam favoravelmente.

Após intensos debates, no dia 10 de março de 2015, sugerida pela CPMI da Violência contra a Mulher, entrou em vigor a Lei do Feminicídio (Lei n° 13.104/2015), e, ao contrário da Lei Maria da Penha, ainda não teve sua constitucionalidade questionada ou reafirmada pelas Cortes Superiores. A CPMI da Violência Doméstica contra a Mulher, ressaltou no ano de 2013  em seu relatório final:

O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante.

A lei do Feminicídio não foi criada unicamente com o intuito de qualificar o crime de homicídio que antes era considerado como um homicídio passional ou por motivo torpe, mas sim, de certa forma, tentar resguardar que a violência doméstica atinja um resultado irreversível, a morte. Diante das modalidades de violência abarcadas pela LMP, o feminicídio pode surgir como resultado de qualquer uma delas, principalmente da violência física, onde o agressor já ultrapassou todos os limites psicológicos do seu ódio, passando a provocar marcas físicas em sua vítima

As já mencionadas medidas protetivas de urgência, em sua essência, funcionam como um mecanismo para prevenir e reprimir eventual reincidência na violência doméstica, entretanto, mesmo diante da penalização em razão do descumprimento de tais medidas, como a tipificação penal prevista no artigo 24-A da LMP e a prisão preventiva, disposta no artigo 20 da LMP em conjunto com o artigo 312 do Código de Processo Penal, o número de casos de feminicídios decorrentes da violência no âmbito das relações domésticas e familiares são alarmantes, bem como os demais tipos penais praticados no mesmo contexto.

As mulheres possuem medo de denunciar seus algozes, mas há aquelas que conseguem se libertar do ciclo de violência e denunciam. As denúncias são estatísticas para que a sociedade tenha consciência a respeito do aumento e da diminuição nos índices de violência contra a mulher. Os dados disponibilizados dizem respeito à denúncias que chegaram ao conhecimento das autoridades responsáveis. A preocupação com os dados, abrange àquelas vítimas que não conseguem denunciar por medo, vergonha ou por serem silenciadas definitivamente com a morte.

No ano de 2018, os dados retirados do Ligue 180, foram relatados “92.663 denúncias de violações contra mulheres”. No primeiro semestre de 2019, o canal registrou um aumento nas denúncias de 10,93%, em relação ao mesmo período do ano anterior.

A qualificadora do feminicídio surge como um resultado das violências pautadas na Lei Maria da Penha, e frequentemente, está ligado ao descumprimento das medidas protetivas impostas. O agressor, que não se intimida com as possíveis penalidades, opta por causar maiores danos e traumas a sua vítima, assim reincidindo num crime de maior gravidade. Ao receber a notícia do término do relacionamento, ou até mesmo a informação de que foi denunciado e sua vítima recebeu uma protetiva, o acuado profere frases com ameaças a vida da mesma, interligando sua existência à condição de pertence-lo.

Frequentemente, canais de informação abordam casos de violência doméstica que tem como resultado o feminicídio, situações em que o companheiro ou ex-companheiro matou a mulher em decorrência de ciúmes, pelo fim do relacionamento ou por serem denunciados e enquadrados na Lei Maria da Penha.

Conclusão

É de grande relevância compreender que a violência contra a mulher é uma doença social. Sendo, então, agravada quando acontece dentro do âmbito doméstico ou familiar, ao qual a vítima relaciona-se afetivamente com o seu agressor ou a violência deriva-se desta relação.

Os dados, referentes a violência doméstica são alarmantes, principalmente quando preexiste uma relação afetiva e uma proximidade do agressor com a vítima, o que pode ser analisado não apenas como crescimento da agressão contra mulher, mas também com o aumento das denúncias dos casos, e com a midiatização de parte destas agressões.

Com o surgimento do movimento feminista na década de 80, as vítimas passaram a contar com o apoio de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher como vítima, mesmo que estejam presentes em apenas 7% das cidades brasileiras. Outra conquista foi a promoção de direitos com a finalidade de assegurar maior dignidade e autonomia as mulheres, no entanto, uma parcela significativa destes direitos não são respeitados, mesmo que previstos.

As Delegacias Especializadas não foram tão especializadas assim, uma vez que a equipe por trás do funcionamento se encontrava completamente despreparada e enraizada no machismo, o que tornava cada vez mais difícil a vítima comparecer para denúncia e levar adiante suas queixas de violência, sendo estas desencorajadas e humilhadas por parte dos profissionais presentes para desempenhar tais funções.

A princípio, não havia previsão legislativa com o intuito de assegurar a integridade das vítimas de violência doméstica ou familiar, logo não havia como prevenir a prática de agressões e punir quem as praticava. A lentidão para surgimento de uma norma jurídica brasileira reforça a omissão do Estado e o impacto desta mazela social, derivada de uma sociedade patriarcal, machista e misógina.

Através dos estudos e pesquisas realizadas, é cristalino que a Lei Maria da Penha institui mecanismos através das medidas protetivas de urgência para reprimir e prevenir a prática de agressões, entretanto esses mecanismos não apresentam dados de eficácia para frear o crescimento nos índices de violência contra as mulheres no âmbito doméstico familiar, embora a concessão de tais medidas seja assustadoramente alta nas delegacias e juízos.

Com todas as medidas protetivas previstas não há certeza de que a mulher estará segura da fúria do agressor, podendo este agravar os atos violentos até sendo capaz de matá-la, o que acontece em uma parte significativa dos casos, as mulheres tornam-se estatísticas na tentativa de feminicídio e no feminicídio consumado, além dos casos que tornam-se midiáticos, com mulheres assustadas e com medo de seus agressores, escondidas, fugindo e com o sentimento de perseguição dia a dia, com a incerteza se irá viver ou morrer pelas mãos daquele que um dia expressou que a amava e justificava as agressões por amor.

No entanto, somente a existência e concessão destas medidas não é uma resposta, e nem garantia de que o Estado não está se omitindo. A Lei Maria da Penha prevê acompanhamento da vítima e processo de reabilitação para o agressor, entretanto a realidade é incompatível, na maioria dos casos isso não ocorre, ao ser notificado de uma medida protetiva, uma margem dos agressores tende a aumentar os atos violentos e até mesmo matar sua companheira ou ex- companheira, servindo-se da crença de que não incorrerá em punição significativa.

Há estados brasileiros que contam com o apoio da Ronda da Penha da Guarda Municipal, voltada exclusivamente para acompanhar as mulheres vítimas de violência intrafamiliar que receberam medidas protetivas de urgência, no entanto falta apoio para esta Ronda, principalmente suporte do Governo para manutenção da mesma.

A equação para assegurar a eficácia das medidas não é simples, chegando a ser uma incógnita, mas por quê? De um lado se têm as vítimas amedrontadas por não saberem como o procedimento será realizado, se receberam apenas um papel dizendo “Concessão de Medida Protetiva de Urgência”, ou de fato receberam apoio estatal para assegurar sua integridade. Diante desta dúvida, não denunciam e sofrem em silêncio. Por outro lado, as vítimas que denunciaram, conseguiram a protetiva e ainda assim foram incapacitadas em decorrência de agressão ou foram assassinadas. Em contraponto, se têm as vítimas que denunciaram, conseguiram a protetiva e conseguiram cessar a violência.

O problema da eficácia das medidas não está na Lei Maria da Penha, está na Segurança Pública que ainda não a colocou em prática em sua totalidade, está no Estado que mesmo após a criação da lei permanece omisso, na sociedade que diante de uma situação de violência contra mulher opta por fechar os olhos e ignorar com a justificativa de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, por ainda carregar a ideia de “ela apanha por gosta”.

A lei n° 11.340/2006 foi uma punição imposta ao Estado brasileiro diante da omissão perante o caso de Maria da Penha Maia Fernandes, a qual sofreu duas tentativas de homicídio e inúmeras agressões nas mãos do seu cônjuge, este caso tornou-se internacional e ganhou destaque diante da profunda violação aos Direitos Humanos, entretanto, antes de Maria da Penha, quantas outras vítimas não existiram? O problema da ineficácia das medidas protetivas mão está simplesmente na lei e na falta de repressão policial adequada, mas sim, na sociedade enraizada no machismo e na misoginia, e no Estado omisso e conivente com tais atos que violam os Direitos Humanos das vítimas.

Após exposição de todos esses fatos, pode-se chegar à conclusão de que a violência contra mulher no âmbito doméstico e familiar deve ser tratada como uma mazela social, sendo abordada de forma expressiva com a finalidade de prevenir novos casos e punir aqueles que já existentes, fornecendo meios eficazes e acessíveis para que os artigos previstos dentro da lei 11.340/2006 tornem-se uma realidade, sendo cumpridos de forma efetiva, e não de maneira fragmentada, a exemplo da prisão preventiva em caso de descumprimento de medida protetiva na qual pouco tempo depois o agressor estar em liberdade apresentando novamente um risco a sua vítima.

Toda essa pesquisa serviu para elucidar o tema e para buscar demonstrar que a mulher vítima de violência doméstica e familiar deve ser amparada de todas as formas, em busca disso se deu a implementação da Convenção de Belém do Pará e posteriormente a promulgação da lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, sempre levando em conta a proteção da integridade física, psicossocial e financeira da mulher, visando prevenir novas agressões que possam levar a prática de um homicídio qualificado pelo feminicídio.

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