Resumo: O presente artigo busca realizar uma abordagem conceitual acerca do chamado discurso de ódio (hate speech), bem como sua possível inserção no âmbito da liberdade de expressão, direito fundamental insculpido na Constituição Federal de 1988. Analisa, nesse contexto, se o hate speech seria na verdade uma ameaça ao debate democrático, na vertente de diminuição da participação dos grupos minoritários nos espaços de decisão, à luz sobretudo do efeito resfriador, que afeta especialmente essas coletividades, culminando com violações de direitos humanos. A fim de cumprir tal finalidade, adota-se uma pesquisa bibliográfica, complementada com dados jurisprudenciais brasileiros e convencionais dos quais o país é signatário. Com esse viés e à luz do regime democrático e pluralista, buscado pela Carta Magna, expõe-se que os grupos minoritários, historicamente alijados do espaço de ideias, se tornam ainda mais distantes e afetados com a propagação do discurso de ódio. Além do mais, os danos ocasionados se manifestam de forma difusa, em que o grupo em si considerado é atingido, porém as pessoas pertencentes são atacadas de formas e proporções diferentes. Como conclusão, expõe-se que o hate speech não está no âmbito do exercício legítimo da liberdade de expressão consagrada no ordenamento jurídico brasileiro e, ao contrário, diante de sua propagação, os pilares do regime democrático-brasileiro encontram-se em risco, uma vez que torna o ambiente hostil, propício para violações de direitos humanos e esvazia o caráter comunicativo do direito fundamental à liberdade de expressão.
Palavras-chave: Liberdade de expressão. Discurso de ódio. Ameaça ao regime democrático. Grupos minoritários. Efeito Resfriador.
1. Introdução
Remonta-se à Aristóteles o célebre entendimento de que o ser humano é social e, inserido nesse contexto, necessita pertencer a uma coletividade para sua própria sobrevivência. Como efetivação dessa característica, uma das formas essenciais de desenvolvimento em sua plenitude da personalidade humana, a livre expressão de ideias, ganha especial relevo. Não à toa, citada temática sempre está na ordem do dia seja nos debates acadêmicos, filosóficos, políticos, doutrinários e jurisprudenciais, seja nas Cortes Nacionais ou Internacionais.
Nessa vertente, o presente artigo visa a realizar uma abordagem conceitual e crítica acerca do chamado discurso de ódio, bem como de sua possível inserção no âmbito da liberdade de expressão, esculpida na Constituição Federal de 1988. Serão analisados ainda se citado fenômeno seria na verdade uma ameaça ao debate democrático, sobretudo na vertente de diminuição de participação dos grupos minoritários nos espaços de decisão, à luz do fenômeno conhecido como “efeito resfriador”.
Faz-se necessário abordar de maneira crítica acerca da propagação cada vez maior de ideais discriminatórios, fazendo com que os pilares do regime democrático brasileiro estejam em risco, uma vez que as manifestações de ódio, tornam o ambiente hostil e propício para violações de direitos humanos. Menciona-se ainda que os citados discursos atingem sobremaneira os grupos historicamente vulneráveis, que desde a construção da sociedade brasileira encontram-se alijados dos espaços decisórios de destaque, aumentando ainda mais o fosso da desigualdade.
2. Linhas contextuais sobre a liberdade de expressão no Brasil
Liberdade de expressão é, em sua essência, um direito individual com vertentes distintas e ao mesmo tempo complementares: se por um lado busca tutelar o direito de externar ideias, opiniões, juízos de valor, por outro visa a assegurar a livre comunicação de fatos e o direito a deles ser informado . Percebe-se assim, que ao mesmo tempo em que se manifesta como verdadeiro meio para o desenvolvimento da personalidade, essa proteção busca efetivar o interesse público na harmonização de juízos, mormente considerando a sociedade plural e democrática concebida pela Carta Magna de 1988.
A livre manifestação do pensamento, como direito fundamental que é, não surgiu simplesmente “do nada”, não se efetivou pelo simples “cair da árvore”, assim como as frutas maduras o fazem. Pelo contrário, foi sendo implementada e reconhecida de forma gradual, conforme o âmbito histórico, político e filosófico a partir de certos acontecimentos e debates, que propiciaram seu reconhecimento. A essa característica, a doutrina denomina como historicidade e, parafraseando Norberto Bobbio, a liberdade de expressão é uma “conquista da sociedade” .
No Brasil, possui status de direito fundamental desde a Constituição do Império, em 1824, sendo confirmada essa classificação em todas as Constituições até então vigentes. Com o fito de contextualizar o leitor, não sendo o propósito deste estudo esgotar o tema, é cabível destacar que nem sempre na história brasileira esse direito fundamental foi efetivado de forma plena. No período ditatorial militar, nos idos de 1964-1985 (sim, a história narra e conta que foi uma ditadura!), a liberdade de expressão só poderia ser exercida em conformidade com os ditames do poder em exercício. Caso contrário, o cidadão poderia pagar até mesmo com a sua vida, tudo sob o pretexto da segurança nacional e da ordem pública.
Um período obscuro da história brasileira em que ocorreram as mais diversas violações de direitos humanos e até mesmo “exportações” de métodos de tortura, como o “pau de arara”, sendo necessário o reconhecimento dos acontecimentos, a fim de que a sociedade possa superar esse legado macabro, mormente porque um povo sem passado é um povo sem futuro. Seguindo as diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU), o Ministério Público Federal possui atuação temática e sobremaneira destacada no âmbito da justiça de transição e da Comissão Nacional da Verdade.
O marco normativo foi a entrada em vigor da Carta Magna de 1988 que torna a liberdade de expressão como pilar da busca de uma sociedade plural e democrática, com resguardo em seu artigo 5º, IV, sendo ainda definida como cláusula pétrea (art. 60, §4º, CF). Reiterando a proteção, o artigo 220 do referido diploma legal assegura que a manifestação do pensamento não sofrerá qualquer restrição, observado o disposto na Constituição.
Em contraposição, pela própria Constituição Federal, percebe-se que a liberdade de expressão não possui caráter absoluto, sendo alguns limites expostos na própria Carta Magna, dentre eles: vedação do anonimato (art. 5º, IV); direito de resposta (art. 5º, V); restrições à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos e terapias (art. 220, § 4º); classificação indicativa (art. 21, XVI); e dever de respeitar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X).
Em nome dessa reconhecida posição preferencial no ordenamento jurídico brasileiro, há intensos debates acerca da proteção ou não do chamado discurso de ódio (hate speech), circundando a polêmica sobre a existência ou não de limites a esse direito fundamental e até que ponto tais barreiras não lhe imporiam um verdadeiro não-exercício. Por outro lado, é consabido que outros valores possuem resguardo constitucional, tais como, a privacidade, a honra e, aqui neste ensaio, destacado de forma mais veemente, a igualdade material como forma de exercício de direitos de grupos minoritários.
Nesse diapasão, sobremaneira importante a contextualização a partir do conceito de hate speech, à luz do Direito comparado e dos instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos.
3. Conceituando o discurso de ódio
O discurso de ódio (hate speech) é conceituado como sendo manifestação de desprezo, intolerância ou ódio contra determinados grupos, com fundamento em preconceitos das mais diversas origens, tais como, etnia, raça, religião, orientação sexual, deficiência física ou mental, de modo a incitar a violência ou outros tipos de violação de direitos. Nesse sentido, cabível transcrever o seguinte trecho do voto histórico do Eminente Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Min. Celso de Mello quando do julgamento da ADO 26/DF:
À liberdade religiosa se aplica integralmente o célebre ensinamento do Professor de Oxford, ISAIAH BERLIN, exposto em uma palestra em 1958, que fez uma dicotomia entre liberdade de expressão negativa e liberdade de expressão positiva, afirmando que a essência da liberdade de expressão negativa é a possibilidade de ofender, o que jamais se confunde com o discurso de ódio. DWORKIN, após citar a palestra, analisa a questão da liberdade de expressão, colocando que o ideal seria que as formas de expressão sempre fossem heroicas, mas defende a necessidade de proteção das manifestações de mau gosto, aquelas feitas inclusive erroneamente (O Direito da liberdade. A leitura moral da Constituição norteamericana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 345, 351 e ss). Obviamente, a proteção constitucional à liberdade religiosa, assim como a liberdade de expressão, não admite o discurso de ódio, que abrange, inclusive, declarações que defendam ou incitem tratamento desumano, degradante e cruel; ou que incitem violência física ou psicológica contra grupos minoritários .
No mesmo sentido, André de Carvalho Ramos, após conceituar o discurso de ódio, destaca a importância do seu debate no cenário brasileiro:
O discurso de ódio (hate speech) consiste na manifestação de valores discriminatórios, que ferem a igualdade, ou de incitamento à discriminação, à violência ou a outros atos de violação de direitos de outrem. Essa terminologia acadêmica é de extrema atualidade no Brasil e em diversos países no mundo, em face do discurso neonazista, antissemita, islamofóbico, entre outras manifestações de pensamento odiosas. O STF debateu essa situação no chamado “Caso Ellwanger”, no qual, entre outros temas, discutiram-se os limites da liberdade de expressão e seu alcance em relação à publicação de obras antissemitas. De acordo com a maioria dos votos (vencidos os Ministros Marco Aurélio e Carlos Britto, que valorizaram a liberdade de expressão), não há garantia constitucional absoluta, ou seja, as liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites explícitos e implícitos (frutos da proporcionalidade e ponderação com outros direitos), previstos na Constituição e nos tratados de direitos humanos. A liberdade de expressão não pode ser invocada para abrigar “manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal”. Em vários votos, como, por exemplo, o do Ministro Gilmar Mendes, foram feitas referências à colisão entre a liberdade de expressão e o direito à igualdade, bem como à dignidade humana. No julgado, preponderou o direito à igualdade e à dignidade humana, admitindo-se que não era caso de se privilegiar a liberdade de expressão de ideias racistas antissemitas.
Para além da crítica contundente em temas sensíveis, nos quais há uma interdisciplinaridade ética e conceitual, o hate speech possui um componente bem específico e delimitador: a incitação à violência ou outras formas de violação de direitos em face do grupo ofendido. Nesse contexto, a ofensa é utilizada no seu sentido mais amplo, seja de ordem física, moral ou intelectual, de modo a se verificar o prejuízo no regime democrático e nos valores de uma sociedade que se busca ser pluralista.
Característica marcante ainda diz respeito ao prejuízo provocado, que ultrapassa as fronteiras individuais. Verifica-se um dano difuso, em que o grupo em si considerado é atingido, porém as pessoas pertencentes são atacadas de formas e proporções diferentes. É dizer, as várias camadas de indivíduos, são atingidas pelo seu próprio pertencimento ao grupo.
O foco central é o ódio e a desvalorização do outro, em sua vertente individual e enquanto pertencente àquela coletividade e as finalidades são claras: calar, excluir e menosprezar, em sentido diametralmente oposto à essência comunicativa da liberdade de expressão.
Assentadas essas premissas conceituais, é pertinente a abordagem sobre as interpretações adotadas no âmbito internacional, destacando-se as disposições convencionais nas quais o Brasil é signatário. Busca-se uma análise crítica, sobretudo à luz das especificidades em que estruturada a sociedade brasileira.
3.1 Discurso de ódio e Convenções de direitos humanos promulgadas pelo Brasil
De forma inicial, cabível destacar que a proteção de direitos humanos, na sua vertente internacional, ganhou ares de sistema a partir do término da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente com a criação da Organização das Nações Unidas, na Conferência de São Francisco em 1945. O tratado que instituiu o mencionado órgão foi denominado como “Carta de São Francisco”, que, em suma, buscava uma reação às barbáries do nazismo.
Desde então, vários documentos internacionais consagram e determinam aos Estados a proteção dos direitos humanos em sua acepção ampla e no escólio de André de Carvalho Ramos:
Os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerando indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna.
Considerando o elemento constitutivo do hate speech, consistente na incitação à violência ou outras formas de violação de direitos em face do grupo ofendido, destaca-se que o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, promulgada pelo Decreto nº 65.810 de 8 de dezembro de 1969, sendo um dos mais antigos tratados de direitos humanos ratificados pelo país.
Nesta senda, sobreleva-se o disposto no artigo IV, o qual estabelece que os Estados partes condenam todo ideal baseado em superioridade de raça ou que pretende justificar ou encorajar qualquer forma de ódio e discriminações raciais, fixando ainda a obrigação de adotar medidas positivas para eliminar tais manifestações, dentre elas, proceder com a tipificação penal, declarar ilegal e não permitir que autoridades públicas nem as instituições incitem ou encorajem tal fenômeno .
Ainda sobre a citada Convenção, pela eloquência e significado das disposições ratificadas pelos Países signatários, incluindo o Brasil, transcreve-se o trecho inicial, o qual deixa explícito o propósito que busca no supracitado documento:
Os Estados Partes na presente Convenção,
Considerando que a Carta das Nações Unidas baseia-se em princípios de dignidade e igualdade inerentes a todos os seres humanos, e que todos os Estados Membros comprometeram-se a tomar medidas separadas e conjuntas, em cooperação com a Organização, para a consecução de um dos propósitos das Nações Unidas que é promover e encorajar o respeito universal e observância dos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou religião.
Considerando que a Declaração Universal dos Direitos do Homem proclama que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que todo homem tem todos os direitos estabelecidos na mesma, sem distinção de qualquer espécie e principalmente de raça, cor ou origem nacional,
Considerando todos os homens são iguais perante a lei e têm o direito à igual proteção contra qualquer discriminação e contra qualquer incitamento à discriminação,
Considerando que as Nações Unidas têm condenado o colonialismo e todas as práticas de segregação e discriminação a ele associados, em qualquer forma e onde quer que existam, e que a Declaração sobre a Concepção de Independência, a Partes e Povos Coloniais, de 14 de dezembro de 1960 (Resolução 1.514 (XV), da Assembleia Geral afirmou e proclamou solenemente a necessidade de levá-las a um fim rápido e incondicional,
Considerando que a Declaração das Nações Unidas sobre eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, de 20 de novembro de 1963, (Resolução 1.904 ( XVIII) da Assembleia-Geral), afirma solenemente a necessidade de eliminar rapidamente a discriminação racial através do mundo em todas as suas formas e manifestações e de assegurar a compreensão e o respeito à dignidade da pessoa humana,
Convencidos de que qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, em que, não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum,
Reafirmando que a discriminação entre os homens por motivos de raça, cor ou origem étnica é um obstáculo a relações amistosas e pacíficas entre as nações e é capaz de disturbar a paz e a segurança entre povos e a harmonia de pessoas vivendo lado a lado até dentro de um mesmo Estado,
Convencidos que a existência de barreiras raciais repugna os ideais de qualquer sociedade humana,
Alarmados por manifestações de discriminação racial ainda em evidência em algumas áreas do mundo e por políticas governamentais baseadas em superioridade racial ou ódio, como as políticas de apartheid, segregação ou separação,
Resolvidos a adotar todas as medidas necessárias para eliminar rapidamente a discriminação racial em todas as suas formas e manifestações, e a prevenir e combater doutrinas e práticas raciais com o objetivo de promover o entendimento entre as raças e construir uma comunidade internacional livre de todas as formas de separação racial e discriminação racial,
Levando em conta a Convenção sobre Discriminação nos Emprego e Ocupação adotada pela Organização internacional do Trabalho em 1958, e a Convenção contra discriminação no Ensino adotada pela Organização das Nações Unidas para Educação a Ciência em 1960,
Desejosos de completar os princípios estabelecidos na Declaração das Nações unidas sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial e assegurar o mais cedo possível a adoção de medidas práticas para esse fim.
No que concerne à proteção interamericana de direitos humanos, com a aprovação da Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1969 e promulgada no Brasil pelo Decreto nº 678/1992, passou-se a ter um sistema, com normas, mecanismos e órgãos com finalidade protetiva dos direitos humanos. Destaca-se a Convenção Interamericana contra o Racismo , Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância e a Convenção Internacional contra toda forma de Discriminação e Intolerância, tendo sido somente a primeira ratificada pelo Brasil.
Acrescente-se ainda o art. 13 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que possui, conforme decidido pelo STF status supralegal no normativo pátrio, com a seguinte redação:
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.
O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessária para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral pública.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos à censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2º.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
A partir desses normativos internacionais, adotados como verdadeiros standards de direitos humanos, constata-se que as manifestações de ódio, que desaguam em discriminação e tolerância, não devem ser incentivadas ou mesmo inseridas numa liberdade de expressão de viés absoluto, colocando em risco o próprio regime democrático. Em última análise, o que se busca é que esse direito fundamental não seja tratado como um fim em si mesmo.
No regime democrático brasileiro, estruturado especificamente com base em exclusão de grupos minoritários, historicamente afastados dos espaços de decisão, se torna patente o risco à pluralidade pretendida pela Constituição e pela essência do direito à liberdade de expressão, uma vez que, essa coletividade se tornará e se sentirá cada vez mais silenciada, sob constante vigilância e ameaça.
3.2 Discurso de ódio e efeito resfriador dos grupos minoritários
A perspectiva acerca dos grupos minoritários indica que são originários de assimetrias sociais, de modo que são vulneráveis no sentido de destoarem do suposto “padrão da normalidade” das maiorias. Diante dessa ótica, é estabelecida essa relação de vulnerabilidade, seja de ordem econômica, social ou até mesmo física. A partir dessa classificação do “diferente”, do maniqueísmo de “eles” e “nós”, surgem as manifestações de discriminação, intolerância, exclusão e superioridade nos mais variados contextos sociais. Como exemplos atuais, temos os negros, indígenas, mulheres, idosos, pessoas com deficiência etc.
Nessa esteira, o denominado efeito resfriador no âmbito da liberdade de expressão, diz respeito à uma espécie de autocensura promovida pelo próprio emissor da mensagem, que com receio de represálias, políticas sancionatórias e boicotes, deixa de veicular suas opiniões e acaba não exercendo a garantia constitucional que lhe é assegurada.
Citado tema foi debatido pelo STF quando da análise acerca da constitucionalidade do crime de desacato, cuja ementa transcreve-se a seguir:
DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. CRIME DE DESACATO. ART. 331 DO CP. CONFORMIDADE COM A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.
RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 1. Trata-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental em que se questiona a conformidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como a recepção pela Constituição de 1988, do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato. 2. De acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e, em casos de grave abuso, faz-se legítima a utilização do direito penal para a proteção de outros interesses e direitos relevantes. 3. A diversidade de regime jurídico – inclusive penal – existente entre agentes públicos e particulares é uma via de mão dupla: as consequências previstas para as condutas típicas são diversas não somente quando os agentes públicos são autores dos delitos, mas, de igual modo, quando deles são vítimas. 4. A criminalização do desacato não configura tratamento privilegiado ao agente estatal, mas proteção da função pública por ele exercida. 5. Dado que os agentes públicos em geral estão mais expostos ao escrutínio e à crítica dos cidadãos, deles se exige maior tolerância à reprovação e à insatisfação, limitando-se o crime de desacato a casos graves e evidentes de menosprezo à função pública. 6. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente. Fixação da seguinte tese: “Foi recepcionada pela Constituição de 1988 a norma do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato.
O efeito resfriador pressupõe, além do não exercício da liberdade de expressão, a ameaça de censura, sanção ou represália. A partir desses elementos e fazendo um escorço histórico, percebe-se que os grupos estigmatizados e/ou minoritários sofrem de maneira mais brutal as consequências, sobretudo considerando a já exclusão social estruturada, de modo a tornar a assimetria ainda mais aprofundada.
A coletividade minoritária, que não possui representatividade adequada nos espaços decisórios, passa a se ver, ou na verdade, não se ver, exercendo garantias mínimas de liberdade, eis que o discurso dominante é o de exclusão e de manifestações odiosas. O ambiente, que busca ser pluralista e democrático, se torna uma arena de competição, mas não no sentido do debate de ideias, consideradas as boas ou más, e sim na acepção de poder e violência, seja ela física, moral ou psicológica.
Com essa ideia, a vertente que se defende neste estudo é a de que o efeito resfriador se manifesta de forma mais veemente em relação aos grupos historicamente vulneráveis, não somente quando da atuação do Estado, mas também das manifestações odiosas dos particulares, com o Estado omisso ou indiferente, contribuindo para o aumento do fosso da desigualdade.
É dizer, em que pese a tradicional alusão de que o mencionado efeito diz respeito precipuamente à restrição indevida da liberdade de expressão, praticada pelo Estado quando tipifica penalmente certas condutas, a ideia defendida neste estudo, é que o próprio discurso de ódio silencia de maneira especial os grupos historicamente minoritários, estigmatizados. São consequências que atingem os atos praticados tanto pelo Poder Público, quando se omite, como pelos particulares ao praticarem violações de direitos humanos.
Nos termos expostos, os ensinamentos de Daniel Sarmento:
Ademais, embora as ideias de inferioridade dos membros dos grupos vitimizados pelo preconceito não obtenham na sociedade contemporânea muitas adesões explícitas, a sua difusão tende a reforçar certos estereótipos negativos e irracionais, levando muitos indivíduos a desvalorizarem inconscientemente as contribuições ao debate público trazidas por componentes destes grupos, deixando de considera-las devidamente na formação de suas próprias opiniões.
O resultado é a violação dos fundamentos da República Federativa do Brasil , afastando as vítimas do debate de ideias e impedindo ou prejudicando seu exercício da cidadania. Além do mais, também transgressão do propósito do Constitucionalismo, que é o de resguardar direitos e garantias fundamentais e limitação de poder por meio de normas originárias do detentor desse poder, que é o povo em seu sentido amplo e inclusivo.
É fundamental esclarecer que, ao contrário do argumento de que o discurso de ódio favorece o livre desenvolvimento da personalidade, defende-se que na verdade ele o suprime. Isso porque há um prejuízo de monta significativa para o debate e amadurecimento de ideias, pois a própria sociedade como um todo é privada do conhecimento e difusão das vertentes defendidas pelos grupos estigmatizados. Assim, os danos são efetivos não somente nesses grupos ou nos indivíduos que o compõem, mas em toda a sociedade que se pretende ser democrática e madura, que, em última análise, vê suprimido o mercado livre de ideias.
4. Conclusão
O direito à liberdade de expressão é uma das maiores representações da essência do ser humano, de seu desejo natural de pertencimento e relacionamento social. Porém, interpretá-lo como absoluto leva ao problema de que a balança da igualdade estará bem mais tendenciosa para um dos lados, sobretudo considerando que o outro lado já se encontra em situação de minoria, de desvantagem. As minorias retratadas no presente estudo não dizem respeito apenas à números quantitativos, mas sim no que concerne à representatividade em espaços de decisão e de influência.
Em última análise, o que se busca combater não são críticas contundentes ou ideias consideradas más, ou contrapostas, pois isso levaria igualmente ao esvaziamento da essência comunicativa da liberdade de expressão. No âmbito do livre debate de democrático, ideias boas e más podem e devem ser confrontadas, a fim de que se busque a maturidade necessária para a convivência em sociedade. O discurso de ódio possui um elemento que o distingue dessas manifestações, que é a finalidade de discriminar e violar os mais básicos direitos pertencentes a pessoa humana. É pouco provável que essa característica o torne como estimulador do pluralismo e da essência comunicativa da liberdade de expressão, muito pelo contrário, sobressai seu efeito resfriador e violador de direitos humanos, mais uma vez, com especial destaque em relação aos grupos minoritários.
O ordenamento jurídico brasileiro, ao tempo em que resguarda a liberdade de expressão, também resguarda a igualdade, a honra, a intimidade, o direito de professar religião. O que não significa que legitima a utilização de quaisquer desses direitos fundamentais, sob o disfarce de discriminação, incitação à violência e exclusão da sociedade de determinados grupos, mormente os estigmatizados.
Nesse particular, é certo que por ocasião da própria estrutura em que construída a sociedade, esses grupos já se encontram em situação de desigualdade, de desconformidade com a Constituição . A esse ponto, o próprio texto constitucional reconhece, especificando providências tais como, o mandado de criminalização do racismo, o que em verdade, denota que o Estado não se mantém neutro em questões de violações efetivas ou potencias de direitos humanos.
No Brasil, especificamente marcado pela desigualdade nos mais diversos ambientes, fechar os olhos para a intolerância e violação de direitos humanos, tornaria o Estado cúmplice daquilo que se busca evitar. A atuação é importante e explica-se, de forma comedida, sopesando os direitos em tensão, tendo em vista sobretudo a regra da proporcionalidade , a fim de que a balança seja efetivamente equânime e não apenas esse argumento seja difundido de forma meramente retórica.
É certo que um direito fundamental de importância ímpar para a sociedade, como a liberdade de expressão, pode e deve ter posição prioritária no ordenamento jurídico. Porém, é igualmente certo que à luz da grande variedade de temas protegidos pela Carta Magna, os pontos de tensão podem e vão ocorrer, sendo que a construção dogmática e jurisprudencial deve estar atenta principalmente aos propósitos em que são instituídos os direitos e garantias fundamentais. Não se propõe jamais uma censura prévia e sim uma análise casuística, com fundamentação adequada e consistente com proteção, seja individual, seja coletiva, evidenciada pela Constituição Federal.
Por fim, à título de reflexão, se a busca pela equidade e proteção da dignidade da pessoa humana são pedras de toque do Constitucionalismo que busca ser democrático, o que torna uns indivíduos mais iguais que os outros a ponto de, a pretexto de exercício dos seus direitos, utilizarem um discurso de dominação, incitação à violência e de violação de direitos? É o paradoxo daqueles que demonstram que, se oportunidade tivessem, eliminariam a própria tolerância e tornariam o ambiente restrito apenas ao que lhe convém.
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