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Responsabilidade internacional dos Estados por dano ambiental:

o Brasil e a devastação amazônica

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16/09/2006 às 00:00
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3. RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS

Tendo-se exposto os principais pontos do Direito Internacional necessários para a compreensão da matéria, passa-se, agora, a tratar, propriamente, da Responsabilidade Internacional dos Estados.

A responsabilidade dos Estados, segundo BIRNIE e BOYLE [38], "é o princípio pelo qual os Estados podem ser responsabilizados em reclamatórias interestatais sob o Direito Internacional". Essas reclamatórias podem ser realizadas perante a Corte Internacional de Justiça ou perante tribunais arbitrais especialmente constituídos. Vale ressaltar, ainda, que esta responsabilidade também pode ser objeto de negociações diplomáticas ou de negociações por meio de organizações internacionais, sem a constituição de um contencioso judicial. O que se deve frisar é que um Estado pode ser responsabilizado por desobedecer a normas de Direito Internacional: caso não concorde com a alegação, é mais provável que se submeta a um processo judicial; se concordar com a responsabilização, é provável que prefira solucionar o conflito diretamente com o Estado afetado por meio de negociações.

A responsabilidade tanto pode ser subjetiva como objetiva, dependendo da estrutura normativa que cerca determinada circunstância. No sistema da responsabilidade subjetiva, o qual é a regra geral, ocorre a infração de uma norma, e o dever de reparar surge da infração a essa norma. Na responsabilidade objetiva, por sua vez, não ocorre a prática de um ato ilícito; surge ela em virtude da conseqüência de atos lícitos com efeitos prejudiciais e não há a necessidade de comprovação de culpa.

Para o tema da devastação ambiental amazônica, o instituto mais aplicável seria o da Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionais Ilícitos, ou seja, o da responsabilidade subjetiva, tendo em vista que as regras sobre responsabilidade objetiva são específicas para algumas atividades, tais como danos nucleares e queda de objetos espaciais. Para a análise da Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionais Ilícitos, será tomado como base o trabalho da Comissão de Direito Internacional (CDI) da ONU, que consiste na codificação das normas costumeiras sobre a matéria.

3.1. Responsabilidade dos Estados por atos internacionais ilícitos

O texto da Comissão de Direito Internacional (CDI) da ONU sobre o tema [39] foi adotado por ela na sua 53ª Seção e foi anexado à Resolução da Assembléia Geral da ONU de n. 56/83, de Dezembro de 2001. O texto divide-se em quatro partes: a primeira parte versa sobre o ato internacional ilícito, a segunda parte trata do conteúdo da responsabilidade internacional de um Estado, a terceira versa sobre a implementação da responsabilidade internacional de um Estado e a quarta trata das disposições gerais. Tentar-se-á, na medida do possível, seguir a ordem adotada pela CDI, tendo em vista as limitações de tamanho impostas a um artigo.

A responsabilidade internacional por ato ilícito surge, segundo o texto, sempre que um Estado cometer um ato ilícito perante o Direito Internacional, pouco importando se o ato (ou omissão) é tido como lícito pela legislação interna desse Estado. Os elementos que caracterizam o ato ilícito são:

- a possibilidade de ele ser atribuído a um Estado segundo o Direito Internacional;

- a infração a uma obrigação internacional do Estado.

Vê-se, pois, que existe um elemento subjetivo, o qual é a atribuição do ato (ou omissão) a um Estado, e um elemento objetivo, o qual é o desrespeito a uma obrigação internacional. É provável que a comissão tenha evitado utilizar os termos "subjetivo" e "objetivo", ao definir os elementos, para não causar confusão com as responsabilidades objetiva e subjetiva.

Para haver a responsabilização, não importa qual a posição do agente que provocou o ato, ou seja, não importa se foi um único funcionário público, um órgão federal, um órgão estadual, ou mesmo se esse agente possui função legislativa, executiva ou judiciária. Também são abrangidos aqueles agentes que, embora não façam parte da estrutura estatal, desempenham atividades as quais, dentro do Direito interno do Estado, sejam objeto de delegação da autoridade governamental. Ainda, mesmo que o agente aja cometendo abuso de autoridade ou desvio de função, o Estado é responsável por essa conduta.

Para que se caracterize um desrespeito a uma obrigação internacional, é necessário, segundo o texto da CDI, que um ato (ou omissão) de um Estado não esteja em conformidade com o que é requerido por essa obrigação, não importando a origem ou caráter desse ato. Para tanto, essa obrigação já deve ser reconhecida ao tempo em que se realiza o ato. O momento da ocorrência da infração é tido como aquele em que se realizou o ato (se ele não for contínuo) ou todo o período de duração do ato contínuo. Para os atos compostos, ou seja, aqueles que podem ser agrupados dentro de um agregado definido como ilícito, considera-se como momento da ocorrência todo o período que se acha entre o primeiro desses atos e o último.

O texto da CDI [40], no capítulo V da Parte 1, também aponta algumas "excludentes de ilicitude" [41]:

- consentimento;

- autodefesa;

- contramedidas contra um ato internacional ilícito;

- força maior;

- perigo;

- necessidade.

O consentimento ocorre quando um Estado consente a outro Estado a realização de um ato que, normalmente, seria considerado um ilícito internacional. Deste modo, se um Estado A consentir que um Estado B pratique ato (ou omissão) que vá causar efeitos no território de A, o Estado A não pode pedir a responsabilização do Estado B pela prática do ato. Entretanto, é importante ressaltar que o ato deve ater-se aos limites do que foi consentido. Um exemplo de consentimento é a permissão, dada por um Estado, para que aeronaves estrangeiras transitem pelo seu espaço aéreo, ou a permissão de entrada dada a belonaves estrangeiras para a prática de exercícios militares comuns.

A autodefesa ocorre quando um Estado comete um ilícito que esteja de acordo com a medida de autodefesa permitida pela Carta das Nações Unidas. No caso de uma invasão militar, por exemplo, o Estado agredido está autorizado a atacar aeronaves militares do Estado invasor, o que, normalmente, não é permitido pelo Direito Internacional.

As contramedidas contra um ato internacional ilícito ocorrem quando um Estado é vítima de um ato ilícito de um outro Estado e, deste modo, toma medidas para responder a esse ato. Um exemplo comum de contramedida, na atual realidade internacional, é a aplicação de sanções econômicas contra Estados que atuem em desacordo com o Direito Internacional.

Força maior ocorre quando o Estado não age em conformidade com uma obrigação internacional em virtude de força irresistível ou um evento não-previsto, fora do controle do Estado, e que torne impossível o cumprimento dessa obrigação internacional. Entretanto, esta excludente não é válida caso a situação de força maior deva-se, somente ou em conjunção com outros fatores, à conduta do Estado que a invoca, ou quando o Estado assumiu o risco de que a situação ocorresse. Um exemplo é a degradação ambiental em virtude de atividades de um movimento paramilitar o qual o Estado não conseguiu sufocar; entretanto, se tal movimento foi criado, secretamente, pelo próprio Estado, para desestabilizar um Estado vizinho e acabou fugindo-lhe ao controle, não pode a "força maior" ser invocada. Segundo os comentários feitos pela própria CDI sobre o artigo [42], força maior tampouco inclui circunstâncias de dificuldade como crises econômicas e políticas.

Perigo ocorre quando o autor do ato não possui nenhum outro meio razoável, além do desrespeito a uma obrigação internacional, para salvar sua vida ou de pessoas sob o cuidado do autor. Somente não se pode invocar "perigo" quando a situação de perigo foi causada, só ou em combinação com outros fatores, pelo próprio Estado, ou quando o ato puder criar uma situação de perigo comparável ou maior. Um exemplo de situação em que se pode invocar perigo é a entrada e pouso forçado de uma aeronave militar em pane, a qual transporta civis em seu interior, num aeroporto localizado em estado estrangeiro.

Necessidade ocorre quando não há outra maneira do Estado resguardar interesse essencial contra uma situação de perigo iminente, e o não cumprimento de uma obrigação internacional não afeta seriamente um interesse essencial de outro Estado, grupo de Estados ou a comunidade internacional. O artigo 25, o qual trata da necessidade, exclui a possibilidade de invocar essa excludente caso a obrigação internacional em questão exclua essa possibilidade ou o Estado tenha contribuído para a situação de necessidade. Um exemplo foi o bombardeio da força aérea e marinha britânicas ao petroleiro Torrey Canyon, acidentado próximo à costa britânica, com o objetivo de fazer queimar o petróleo derramado antes que este chegasse à costa britânica.

É importante ressaltar que essas excludentes não anulam ou extinguem a obrigação internacional. Elas somente são uma justificativa para o não-exercício dessa obrigação pelo período em que a circunstância subsistir. Elas podem ser aplicadas para justificar quaisquer tipos de ilícitos, exceto aqueles para os quais haja normas claras dispondo em contrário. Com relação ao ônus da prova, ele cabe, em princípio, ao Estado demandante. Entretanto, caso o Estado demandado alegue alguma das excludentes, há uma inversão, e neste caso, caberá ao Estado demandado provar ser verdadeira a sua alegação de que a conduta deu-se amparada por uma excludente de ilicitude.

De acordo com o texto da CDI [43] a responsabilidade internacional de um Estado possui conseqüências legais, as quais não afetam o dever do Estado continuar obedecendo à obrigação desrespeitada. O Estado possui, pois, tanto o dever de cessar o ato que vai contra a norma como o de oferecer garantias de que não virá a repeti-lo (caso as circunstâncias o requeiram). Ainda, deve o Estado oferecer reparação pelos danos causados, o que pode ser feito por meio de:

- restituição;

- compensação;

- satisfação.

A restituição diz respeito à restituição da situação existente antes do ato. Ela deve ser exigida desde que não seja materialmente impossível e não envolva um ônus desproporcional em relação à compensação.

A compensação deve ser utilizada para compensar os danos nos casos em que isto não for possível por restituição. Ela deve cobrir todos os danos financeiros contáveis, incluindo os lucros-cessantes. Podem ser incluídos nela os danos morais, caso eles sejam determináveis financeiramente.

A satisfação deve ocorrer quando não for possível a restituição e a compensação. É uma forma de reparação excepcional e possui, na maioria das vezes, caráter simbólico. Geralmente, a satisfação consiste em reconhecimento da infração, expressão de arrependimento e desculpas formais. A satisfação não pode ser desproporcional ao dano e não pode tomar uma forma humilhante para o Estado responsável.

Essa reparação é devida ao Estado afetado. Com relação à determinação de que Estado, ou Estados, foram afetados pela desobediência do Estado infrator a uma norma internacional, cabe a análise do conteúdo da obrigação violada. Podem existir obrigações que digam respeito a um outro Estado, a vários Estados ou à comunidade internacional como um todo, dependendo do seu caráter e conteúdo. Esta definição do escopo é importante, pois, dependendo do tipo de obrigação, pode tornar vários Estados ou qualquer Estado parte legítima para efetuar uma demanda (reclamatória) contra o Estado infrator.

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No caso dos danos ambientais sobre a Amazônia, pode ser que existam obrigações que digam respeito a toda a comunidade internacional, o que poderia tornar legítimo, ao menos em tese, que um país da Europa, por exemplo, elaborasse uma reclamatória contra o Brasil pela devastação de um território que, em princípio, diz respeito somente ao Brasil. Tendo em vista a tendência de se tratar o meio ambiente como um problema global (e, portanto, as obrigações relativas ao meio ambiente talvez tendam a ser obrigações perante toda a comunidade internacional), não se pode descartar que um Estado alegue que o Brasil desrespeitou uma obrigação perante toda a comunidade internacional e, deste modo, se julgue legitimado para demandar o Brasil por essa infração.

Por fim, deve-se ressaltar que é perfeitamente possível, pelo Direito Internacional, a elaboração de uma reclamatória coletiva, ou seja, de um grupo de Estados contra um Estado infrator. Da mesma forma, é possível demandar um grupo de Estados infratores. Deste modo, pode ser que o Brasil seja apenas um Estado envolvido num grande grupo de Estados demandados por infringirem normas ambientais internacionais.

Deste modo, a responsabilidade subjetiva poderia, em tese, ser aplicada para o problema da devastação da Amazônia. Para tanto, será necessário verificar os tratados e normas costumeiras existentes sobre diversos temas, tais como biodiversidade, bacias hidrográficas e mudanças climáticas, e verificar se existem normas passíveis de responsabilização que o Brasil esteja descumprido.


4. RESPONSABILIDADE POR DANOS À BIODIVERSIDADE

O principal instrumento internacional concernente à biodiversidade é a Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, realizada no Rio de Janeiro (conhecida como "Eco/92"). Os objetivos da Convenção, conforme consta em seu artigo 1º, são a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados dos recursos genéticos. A sua ratificação, no Brasil, foi feita por meio do Decreto n. 2.519/1998.

Uma característica da elaboração desse instrumento foi a negociação igualitária entre países em desenvolvimento e países desenvolvidos, posto que ambos possuíam "poder de barganha": os países desenvolvidos desejavam ter acesso aos recursos genéticos encontrados nos países em desenvolvimento, e os países em desenvolvimento desejavam ter acesso a tecnologias e recursos para desenvolver suas economias.

Outro marco desta convenção foi a adoção de um foco mais amplo. Foi-se além da simples conservação da biodiversidade e incluíram-se dispositivos sobre uso sustentável dos recursos biológicos, acesso aos recursos genéticos, repartição de benefícios derivados do uso de material genéticos e acesso a tecnologias (incluindo, segundo o artigo 2 da Convenção, a biotecnologia).

Com relação ao status da Convenção como norma vinculante [44] ou soft law, parece haver uma tendência para a sua consideração como soft law. Este é o entendimento de SILVA:

A Convenção sobre Diversidade Biológica é do tipo convenção-quadro – umbrella convention – isto é, genérico, redigida de maneira a ser complementada por protocolos específicos mais precisos, a exemplo da Convenção de Viena sobre Proteção da Camada de Ozônio, de 1985. [45]

Do mesmo modo, entendem BIRNIE e BOYLE:

A Convenção não faz nenhuma disposição sobre coerção [enforcement] no sentido de estabelecer uma inspeção internacional ou um sistema de observação; de fato isto seria impossível para uma Convenção do tipo, a qual estabelece um amplo quadro de obrigações "suaves" [´soft´ obligations] [grifos do autor] e requer muita elaboração de legislação nacional para sua eficácia. Como já salientado, entretanto, é incomum [a Convenção], de fato única, no grau em que as suas disposições estabelecem incentivos para a participação e cumprimento. [46]

Entretanto, há quem afirme que a Convenção institui normas vinculantes. RAO [47] expressa que "entre outras importantes disposições da Convenção, está sua imposição da responsabilidade legal dos Estados pelo impacto ambiental de suas atividades (incluindo aquelas de entidades privadas dentro de sua jurisdição) em outros Estados".

Na realidade, a Convenção sobre a Diversidade Biológica encontra-se em algum ponto entre soft law e norma vinculante. Ao mesmo tempo em que a Convenção é redigida utilizando o presente do verbo "dever", é comum o emprego da expressão "na medida do possível e conforme o caso". Abaixo se cita o artigo 5 como exemplo:

Artigo 5

Cooperação

Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso, cooperar com outras Partes Contratantes, diretamente ou, quando apropriado, mediante organizações internacionais competentes, no que respeita a áreas além da jurisdição nacional e em outros assuntos de mútuo interesse, para a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica. [48] [grifo nosso]

Pode-se dizer que a Convenção traz tanto enunciados genéricos como princípios já reconhecidos de Direito Internacional. O artigo 3, por exemplo, reafirma a norma existente sobre danos transfronteiriços, consagrada no julgamento do caso da Fundição Trail. Eis o que afirma o artigo 3:

Artigo 3

Princípio

Os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de Direito Internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional. [49]

Artigos como o Artigo 5, já citado, por outro lado, contêm enunciados genéricos sem poder de coerção, ao menos do ponto de vista legal.

O preâmbulo da Convenção constitui uma parte importante do texto e traz disposições que podem levar ao estabelecimento de normas de Direito Internacional. Serão citadas aqui as passagens mais relevantes para o tema do presente trabalho com alguns comentários:

Preâmbulo

[...]

Afirmando que a conservação da diversidade biológica é uma preocupação comum da humanidade.

[Poderia isto levar ao entendimento de que os danos não precisam ser transfronteiriços para haver responsabilização, tendo em vista que a conservação é uma obrigação perante toda a comunidade internacional?]

Reafirmando que os Estados têm direito soberano sobre seus próprios recursos biológicos.

[Essa soberania poderia ser absoluta a ponto de causar degradação ao meio ambiente e ameaçar o patrimônio genético do planeta?]

Reafirmando, igualmente, que os Estados são responsáveis pela conservação de sua diversidade biológica e pela utilização sustentável de seus recursos biológicos.

[Poderia o Estado ser responsabilizado por não utilizar seus recursos de forma sustentável?]

[...]

Observando também que quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar a ameaça.

[Trata-se de uma afirmação do princípio da precaução, o qual caminha para se tornar uma norma costumeira de Direito Ambiental Internacional] [50]

[grifos nossos]

Merece destaque a afirmação de que a conservação da diversidade biológica é uma preocupação comum da humanidade. A sua inclusão no preâmbulo da Convenção pode levar a assunção, por parte de outros Estados, de que possuem legitimidade para elaborar reclamações contra a devastação de um ecossistema inteiramente localizado dentro de outro Estado. Caso este entendimento passasse a ser tido como válido, o Brasil poderia ser responsabilizado pela devastação de áreas localizadas inteiramente dentro de seu território, por estar agredindo o patrimônio genético da Terra. Embora ainda não haja nenhuma jurisprudência internacional neste sentido, há uma chance de que esse entendimento seja aceito e enseje a responsabilização de vários Estados detentores de ecossistemas únicos sob ameaça de devastação, entre eles o Brasil.

Outra disposição que merece destaque é a que versa sobre a responsabilidade dos Estados pela conservação e uso sustentável de seus recursos biológicos. Caso este trecho do preâmbulo seja tomado como a instituição de uma nova norma vinculante de Direito Internacional, torna-se possível a responsabilização de um Estado por não promover essa conservação e esse uso sustentável. Desse modo, a responsabilidade do Estado poderia, talvez, ser invocada caso se comprovasse que esse Estado, intencionalmente (e sem ser amparado por uma excludente de ilicitude), não cumpriu com esse dever de conservar e usar de forma sustentável os recursos biológicos.

Embora o preâmbulo, ao afirmar que a diversidade biológica é uma preocupação de toda a humanidade e que os Estados têm o dever de conservá-la e usá-la de maneira sustentável, ofereça perspectivas promissoras para a atribuição de responsabilidade por um ato ilícito que, não necessariamente, possua conseqüências transfronteiriças diretas, essa forma de responsabilização ainda não parece ter-se consolidado plenamente como norma de Direito Internacional e está sujeita a contestações. Ocorre que, ao mesmo tempo em que o preâmbulo afirma estes princípios, o texto da Convenção ameniza-os e dá-lhes feição de soft-law. É interessante notar o emprego da expressão "na medida do possível e conforme o caso" em praticamente todos os artigos que impliquem algum dever de conservação do meio ambiente.

Percebe-se, pois, que as normas da Convenção não foram elaboradas tendo em vista a possibilidade real de responsabilização dos países infratores. Talvez isto tenha a ver com a forma igualitária com que países detentores de grande biodiversidade (em geral, subdesenvolvidos) e países desenvolvidos negociaram. É provável que os países subdesenvolvidos tenham bloqueado as tentativas de se instituir um mecanismo de responsabilização no âmbito da biodiversidade, tendo em vista a dinâmica de devastação ambiental neles existente e a incapacidade (ou falta de vontade) de muitos países em conter essa degradação.

Em suma, embora a Convenção sobre a Diversidade Biológica não tenha instituído um mecanismo próprio de responsabilidade, ela reafirmou o princípio de que nenhum Estado deve permitir que uma atividade realizada em seu território cause danos a um outro Estado e estabeleceu as bases para a tipificação de novos ilícitos internacionais baseados na agressão à biodiversidade. Ao estabelecer que a biodiversidade é uma preocupação de toda a humanidade e que os Estados são responsáveis pela conservação da diversidade biológica e seu uso sustentável, a Convenção lançou os fundamentos para que se possa instituir uma responsabilidade baseada na agressão ao patrimônio genético da Terra, e não exclusivamente no dano infligido a outro Estado.

Deste modo, com base nessa Convenção, no que diz respeito ao Brasil e à Amazônia, pode-se afirmar que a responsabilidade do Brasil pela devastação amazônica pode ser alegada no caso de um dano transfronteiriço direto (por exemplo, uma poluição do trecho de um rio no Peru por mercúrio usado em garimpo às margens desse rio, em território brasileiro, que acarrete graves danos à biodiversidade peruana) e pode vir a ser, no futuro, alegada no caso de danos que, embora não afetem diretamente um outro Estado, afetem o patrimônio genético do planeta e, desta forma, a comunidade internacional de maneira geral. Poderia ser, deste modo, uma obrigação que concerne a toda a comunidade internacional, nos moldes daquela descrita nos artigos da CDI sobre responsabilidade dos Estados por atos internacionais ilícitos. Infelizmente, só será possível uma definição sobre este último aspecto da responsabilidade quando houver uma sentença de um tribunal internacional nesse sentido ou uma negociação cujo resultado se paute por esse entendimento.

Com relação a outros instrumentos internacionais que versam sobre a biodiversidade, nenhum a regulamenta de forma tão abrangente quanto a Convenção sobre Diversidade Biológica, e tampouco há algum que enseje, realmente, algum tipo de responsabilização.

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Sobre o autor
Ernesto Roessing Neto

bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas, bacharel em Economia pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas, pós-graduando em Gestão de Comércio Exterior pela Universidade Federal do Amazonas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROESSING NETO, Ernesto. Responsabilidade internacional dos Estados por dano ambiental:: o Brasil e a devastação amazônica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1172, 16 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8915. Acesso em: 24 abr. 2024.

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