“A Mentira pode viajar meio mundo enquanto a Verdade está ainda calçando os sapatos”
Charles Spurgeon
“Ao prescrever o que seria o ideal, uma teoria normativa deve levar em conta as características e limites do real? Se deve, está autorizada a deflacionar sua idealidade para adaptar-se a estas características e limites? Se estiver, qual é o limite em que esta adaptação deixa de ser garantia de viabilidade e se transforma em cega legitimação do real e naturalização de capacidades e circunstancias historicamente determinadas? “.
André Coelho
RESUMO
Em uma democracia constitucional, as decisões judiciais não podem ser fruto da vontade individual, da ideologia, ou da subjetividade do julgador. A imparcialidade, sendo atributo essencial da justiça e dever dos juízes, é garantia dos jurisdicionados e da própria manutenção do estado democrático de direito. A pergunta de partida que impulsionou este trabalho foi em que medida é viável o cumprimento desse dever do magistrado e como e em que medida funcionam os mecanismos de controle da imparcialidade do juiz positivados no atual código de processo Civil do ordenamento jurídico brasileiro, seus limites e hipóteses de incidência. Justifica-se ante o fato de que a imparcialidade judicial se trata de um valor inestimável em uma sociedade livre, plural e democrática e, como tal, imprescindível para a concretização da justiça e pacificação social, não podendo ser mitigada sob nenhuma hipótese, buscando-se comprovar a hipótese de que independentemente da impossibilidade de se afirmar taxativamente que todos os juízes em alguma medida são parciais, visto que não há como mapear todas as decisões de todos os juízes, foi demonstrado no decorrer desse estudo que a imparcialidade judicial não é atributo intrínseco e inafastável do julgador e que os atuais mecanismos de controle da imparcialidade são insuficientes, visto que diante de eventual parcialidade do magistrado, não haverá como controlá-la. A metodologia utilizada para a confecção do referido trabalho é teórica, descritiva, qualitativa e bibliográfica, de natureza interdisciplinar, propondo um diálogo do Direito com outras áreas do saber.
Palavras-chave: Imparcialidade judicial. Justiça. Verdade. Devido Processo Legal.
ABSTRACT
In a constitutional democracy, judicial decisions cannot be the result of individual will, ideology or the judge's subjectivity. Impartiality, being an essential attribute of justice and the duty of judges, is the guarantee of the judiciary and the maintenance of the democratic rule of law. The starting question that drove this work was to what extent is it feasible to fulfill this duty of the magistrate and how and to what extent do the mechanisms for controlling the impartiality of the judge, as established in the current code of Civil procedure of the Brazilian legal system, its hypothetical limits incidence. It is justified in the face of the fact that judicial impartiality is an invaluable value in a free, plural and democratic society and, as such, essential for the realization of justice and social pacification, and cannot be mitigated under any circumstances, seeking to if the hypothesis is proved that regardless of the impossibility of asserting that all judges are partial in some measure, since there is no way to map all the decisions of all judges, it was demonstrated in the course of this study that judicial impartiality is not an intrinsic attribute and unfathomable by the judge and that the current mechanisms for controlling impartiality are insufficient, since when there is partiality on the part of the magistrate there will be no way to control it. The methodology used for the making of this work is theoretical, descriptive, qualitative and bibliographic, of an interdisciplinary nature, proposing a dialogue between the Law and other areas of knowledge.
Keywords: Impartiality of judge. Justice. True. Due process of law.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................9
2 CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DA IMPARCIALIDADE .........................13
2.1 DO CONCEITO E DO PAPEL SOCIAL DA IMPARCIALIDADE ...................... 14
2.1.1 O PRINCIPIO DA IMPARCIALIDADE JUDICIAL ......................................... 16
2.1.1.1 IMPARCIALIDADE X NEUTRALIDADE .................................................... 19
2.1.1.1.1 IGUALDADE PROCESSUAL SOB À ÓTICA DA IMPARCIALIDADE .... 22
3 IMPARCIALIDADE JUDICIAL NO SISTEMA JURIDICO BRASILEIRO ........... 25
3.1. OS INCIDENTES DE IMPEDIMENTO E SUSPEIÇÃO................................... 25
3.1.1. A RACIONALIDADE ILIMITADA DOS JUÍZES............................................ 30
3.1.1.1. QUEBRA DA IMPARCIALIDADE CONSCIENTE..................................... 34
3.1.1.1.1 QUEBRA DA IMPARCIALIDADE PELOS VIESES COGNITIVOS.......... 39
4 RAZÕES PARA UMA DEFESA INTRANSIGENTE DA IMPARCIALIDADE ....... 45
4.1 A IMPARCIALIDADE JUDICIAL COMO DIREITO FUNDAMENTAL............... 45
4.1.1 JUIZ NÃO ESCOLHE, JUIZ DECIDE............................................................ 50
4.1.1.1 LEGITIMIDADE DA ORDEM JURIDICA E A DEMOCRACIA..................... 53
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 57
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 61
1.INTRODUÇÃO
O homem se diferencia dos animais pela sua capacidade de pensar e fazer análises complexas e racionais, ou seja, existe na espécie humana um traço biopsicologico intrínseco a ela que a permite, na medida do possível, ao se deparar com situações que se colocam no seu caminho, fazer ponderações e antecipar resultados, permitindo-a seguir pela via que lhe traga mais benefícios, ou menos prejuízos a depender do caso, ao contrário dos animais não-humanos, os quais tem raciocínio simples e bastante limitado.
Essa é a explicação, ou melhor, a causa que fez com que a espécie humana saísse dos saaras africanos e se organizasse primeiramente em tribos e aldeias, passando por comunidades locais, chegasse até as sociedades globais como a nossa e desenvolvesse complexas tecnologias. Em verdade, o fato desta ter sobrevivido desde os períodos mais remotos da história até os dias hodiernos deveu-se à sua capacidade de armazenar e organizar ideias.
Nesse percurso, ao se abandonar à vida nômade e adotar o modo de vida em agrupamentos, surgiu à necessidade de se criar regras que viabilizassem o convívio pacífico.
Inicialmente essas regras eram baseadas na moral, nos costumes, na fé dos indivíduos, e comumente repassadas de forma oral no seio da comunidade.
Foi nesse período que surgiram os primeiros órgãos especiais para julgar os infratores da ordem social, compostos inicialmente pelos sacerdotes e conselho de anciãos, escolhidos entre as diversas tribos.
Com o passar do tempo e a complexificação dessas sociedades, tais regras passaram a ser escritas e codificadas, ocasião que ensejou além de outros motivos, o surgimento do Estado, um “governo” central que, em sua primeira manifestação se caracterizava por sua forma absolutista, cuja ética refletia à vontade dos valores divinos, que eram transmitidos a um rei e cujo principal papel era resguardar a segurança e a ordem social.
Esse período foi marcado pelo autoritarismo por parte dos reis, que tinham controle de todas as decisões econômicas e políticas, além gozar de uma série de privilégios juntamente com a outra parte da nobreza, enquanto ao povo não era possibilitada à participação nas decisões, sendo que boa parte da população penava com as mazelas da fome e da pobreza.
À vista disso, inconformadas com essa condição subalterna e após uma crise social duríssima, sob o lema “igualdade, liberdade e fraternidade”, as camadas populares juntamente com à burguesia, derrubaram o rei, instaurando, portanto, uma nova ordem jurídico-política, social e econômica, pondo fim a esse estado absolutista, num processo revolucionário que ficou conhecido como Revolução francesa (1789).
A Revolução Francesa foi um marco na história da humanidade, porque inaugurou um processo que levou à universalização dos direitos sociais e das liberdades individuais a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, bem como abriu caminho para a consolidação de um sistema republicano pautado pela representatividade popular, o que se identifica hoje como democracia representativa.
A partir daí a França passa dispor de instrumentos legais hábeis de limitação do poder. Além disso, o produto mais significativo dessa revolução foi a elaboração da Constituição Francesa de 1791, a qual incorporou em seu amago a Declaração dos Direitos do Homem, responsável por institucionalizar o estado de direito e, segundo o qual, todos se tornavam iguais perante a lei, devido os chamados direitos civis e políticos, além de estabelecer o sistema tripartido do poder, etc., inaugurando um novo período da história da humanidade.
Esse pequeno resumo serve para ilustrar um processo que começou na França, mas que se espalhou por outros países, e depois chegou no Brasil, o qual também após um longo período sob o regime da ditadura militar, conseguiu se redemocratizar com a Constituição Federal de 1988 (CFRB/88), a qual conferia aos cidadãos brasileiros amplas liberdades individuais e direitos sociais, fundando assim, o Estado Democrático de Direito.
Mas não só, serve para também se refletir o quanto a humanidade desde à sua fase mais incipiente e em toda a história, às duras penas lutou para preservar sua dignidade contra os abusos perpetrados pela excessiva concentração de poder.
É nesse contexto que se apresenta o objeto de estudo dessa monografia.
Em uma democracia constitucional plural como a brasileira, toda a ameaça ou lesão a direito deve ser apreciada e julgada por um juiz ou tribunal independente e imparcial, por meio de um devido processo legal. É o que diz à nossa Constituição Federal, em seu art. 5º, LVI, e uma série de tratados internacionais de Direitos Humanos do qual o Brasil é signatário.
A imparcialidade, sendo atributo essencial da justiça e dever dos juízes, é garantia dos jurisdicionados e da própria manutenção do estado democrático de direito. Isso significa que as decisões judiciais não podem ser fruto da vontade individual, da moral, da ideologia, ou da subjetividade do julgador.
Assim, a imparcialidade consiste em um julgamento que confere às partes tratamento igualitário, devendo o julgador se manter equidistante destas, sem a possibilidade de favorecê-las indevidamente ou causá-las prejuízos a fim determinar o resultado do processo, bem como observando todos os comandos que emanam da das leis e da Constituição.
Nesse sentido, este trabalho tem a finalidade de verificar, à luz de uma análise crítica e interdisciplinar pautada na realidade, a viabilidade do cumprimento desse dever por parte do magistrado e a eficácia dos mecanismos de controle da imparcialidade do juiz positivados nos arts. 144 e 145 do código de processo Civil.
A escolha do tema surgiu por vários motivos. Primeiro, a partir da experiência intrigante de se observar no cotidiano decisões judiciais distintas para casos idênticos – Ora, se a lei é a mesma, os fatos são os mesmos, o que muda então? Além de ler fundamentações de decisões que nada fundamentavam.
Segundo, por ter experienciado cenas – mais de uma – de magistrados aconselhando ostensivamente uma das partes em audiências, interferindo indevidamente no processo, tendo inclusive um amigo advogado confessado que isso era comum, e que não se podia fazer nada, pois não queria se “sujar” (sic) com o juiz.
A importância do presente tema reside no fato de que a imparcialidade judicial se trata de um valor inestimável em uma sociedade livre, plural e democrática e, como tal, imprescindível para a concretização da justiça e pacificação social, não podendo ser mitigada sob nenhuma hipótese.
Diante disso, a pergunta de partida que impulsionou esta pesquisa foi em que medida o dever de imparcialidade dos juízes é viável no exercício da magistratura, conforme prescreve a Constituição, vários diplomas nacionais, além de inúmeros tratados de direito internacionais.
Tem-se como objetivo geral investigar em que medida a imparcialidade judicial é possível. É possível uma imparcialidade plena? Bem como em que medida funcionam os mecanismos de controle da imparcialidade do juiz positivados no Código de Processo Civil, a saber, as exceções de impedimento e suspeição, quando ocorrer eventual atuação parcial do magistrado.
Destaca-se que não se inclui entre as finalidades deste trabalho a análise acerca do ativismo judicial, embora este fenômeno, em tese, possa significar em determinadas situações uma hipótese de quebra de imparcialidade judicial.
No aspecto metodológico, trata-se de pesquisa exploratória, descritiva e bibliográfica, por meio de um estudo dos assuntos abordados, com o fito de demonstrar e contribuir para uma análise que explique, fundadamente o presente assunto, frisando-se, no entanto, o uso do método indutivo, por meio do qual se deu a adequação do presente trabalho, procurando relacionar conceitos fixados entre si, sua observação para a construção do conhecimento, proporcionando uma fundamentação da conclusão, mas sem a pretensão de esgotar o tema. A abordagem qualitativa se fez presente, utilizando dados coletados para buscar entender a situação-problema, mediante percepções, sendo também interdisciplinar, haja vista dialogar com várias áreas de conhecimento, tais como Direito, Psicologia, História, Sociologia, Antropologia, Ciência Política e Filosofia.
Esta monografia está dividida em três capítulos de desenvolvimento, além desta introdução, considerações finais e referências. No primeiro capítulo, conceitua-se a imparcialidade bem como se analisa a sua função e importância na sociedade; faz-se uma distinção entre imparcialidade e neutralidade; analisa-se a igualdade processual à luz da imparcialidade.
Em seguida, analisa-se criticamente às exceções de impedimento e suspeição previstos respectivamente nos arts. 144 e 145 do Código de Proceso Civil, sobretudo os seus limites e hipóteses de incidência; depois, analisa-se criticamente a imagem desenvolvida socialmente que tem o juiz como homem infalível e dotado de razão ilimitada; conceitua-se e analisa-se situações que configuram quebras conscientes de imparcialidade e quebras inconscientes por meio de vieses cognitivos.
Finalmente, ressaltam-se as razões para uma defesa intransigente da imparcialidade, sustentando, primeiramente, esta como um direito fundamental de primeira dimensão e, portanto, ocupando a zona dos direitos civis e políticos; faz se uma distinção entre decidir e escolher, ressaltando-se a importância daquela em detrimento desta; enfim, faz-se um paralelo entre legitimidade da ordem jurídica e a democracia.
2.CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DA IMPARCIALIDADE
A imparcialidade judicial, “nota essencial à jurisdição”, é tema que ganhou bastante visibilidade no último ano (2019), causando certo imbróglio, sobretudo nos meios jurídico e jornalístico, mas também na sociedade civil de uma maneira geral, tornando-se, assim, parte da agenda dos assuntos mais discutidos “do momento” em vários meios de comunicação, tanto por parte de especialistas quanto de leigos.
Foi como um “boom”. Parecia estar tudo nos conformes e, de esquecida, de repente, e de forma escandalizada, a tal imparcialidade chegou ao centro das atenções – parece que havia algo de errado com ela e ninguém sabia[1]. Isso que está acontecendo é importante, antes tarde do que nunca.
Tal reação, sem dúvida, mostra-se proporcional à dimensão do valor que aqui objetiva-se analisar. Ora, se se trata de insígnia ligada umbilicalmente ao processo e meio necessário para a construção da justiça, é natural e óbvio que reações diante de ameaças que afetem à sua prosperidade se insurjam.
Não obstante sua importância, trata-se de tema pouco abordado criticamente pela dogmática jurídica, sendo seu tratamento restrito tão somente a uma perspectiva deontológica, abstrata e distante da realidade, ensejando, portanto, dúvidas sobre sua finalidade prática, bem como impressões imprecisas sobre o seu conteúdo.
Deste modo, é neste cenário que exsurge a necessidade de uma análise mais detida sobre este instituto, evidentemente, sem a pretensão de esgotá-lo, haja vista sua complexidade, bem como tendo em vista os limites formais e materiais do presente trabalho monográfico.
Assim, introduzindo o tema, o capitulo 2 constituir-se-á de uma análise semântica e geral acerca da imparcialidade e seu papel social.
2.1 DO CONCEITO E DO PAPEL SOCIAL DA IMPARCIALIDADE
Inicialmente, é necessário conceituar o que vem a ser imparcialidade bem como analisar o seu contexto de aplicação. Para isso, recorrer-se-á à definição lexical para, posteriormente, analisá-la à luz do seu papel social.
Conceitualmente, imparcialidade lato sensu pode ser definida como “isenção”, “impessoalidade”, “equidade”, “isonomia”, “neutralidade”, “retidão”, “igualdade”, etc. O sujeito imparcial é, portanto, aquele que carrega em si a imparcialidade como atributo. Logo, ele é alguém “não parcial”, mas “justo”, “equitativo”, “reto”, “neutro”, ou simplesmente “alguém que quando colocado em uma relação de interesses distintos não favorece por qualquer motivo que seja um lado ou outro” (DICIO, online).
É notória a natureza plurivoca que ressona do vocábulo. Exsurge, assim, uma primeira dificuldade: sua indeterminação semântica.
Didaticamente, essa ideia pode ficar mais fácil de ser visualizada e, portanto, mais compreensível, se conceituada também negativamente.
A vista disso, o contrário de imparcialidade é a parcialidade, isto é, a “característica de quem é parcial”, ou melhor explicando, “qualidade de quem toma partido ao julgar a favor ou contra”, independentemente de se ser justo e sem qualquer preocupação com a verdade (DICIO, online).
Em uma relação familiar, por exemplo, quando dois irmãos gêmeos[2] se comportam mal e a mãe pune apenas um deles, ou mesmo castiga os dois, mas de maneira desproporcional, sendo as condutas idênticas. Nesse caso, pode-se dizer que a mãe agiu de forma parcial, pois ela deu preferência, por algum motivo, a um dos irmãos (PEDRO, 2019, online).
Se em um jogo de futebol[3], o árbitro da partida marca um pênalti porque o jogador do time "A" deu um pontapé por trás e derrubou o jogador do time "B" dentro da área, mas quando, nas mesmas condições de pressão e temperatura, aconteceu o inverso, e o mesmo árbitro, visualizando e percebendo idêntica situação, porém em favor do time "A", decide não marcar o pênalti, podemos dizer que este árbitro está atuando também de forma parcial. No linguajar esportivo popular diz-se que o árbitro está roubando.
Vê-se, portanto, que o conceito de imparcialidade guarda íntima relação com a ideia de equilíbrio, igualdade, e em alguns casos com a ideia de verdade e justiça.
Em alguns âmbitos da sociedade, a imparcialidade é imprescindível para que seu objeto seja realizado com plena eficácia. Precipuamente, destaca-se que “a imparcialidade como forma de se alcançar o conhecimento isento se faz necessária nos mais diversos campos da ciência” (PIRAGIBE, 2011 p. 12). Sua ausência certamente impediria o campo cientifico como um todo de avançar, visto que tal façanha se vincularia à vontade enviesada – parcial – do pesquisador.
A vista disso, a busca pela "verdade" dos acontecimentos históricos oriundos da Revolução francesa, por exemplo, na historiografia, só foi possível ser garantida por meio da objetividade e imparcialidade (SILVA, 2015 p. 10). Nesse sentido, Humboldt, na obra "Tarefas do Historiador" (1921), "inscreve a prática historiográfica numa tensão entre a investigação rigorosa, imparcial e crítica, que é um elemento constitutivo do seu ofício – sua "tarefa profissional" – e a necessidade de operar uma síntese que mobilize a intuição do todo" (DELACROIX, DOSSE e GARCIA, 2012, p. 78).
O setor público, cujos atores essencialmente possuem uma função destinada a atender interesses da população, é um âmbito vinculado de forma expressamente legal pelo princípio da imparcialidade, aqui com um enfoque em um de seus aspectos: a impessoalidade. Para Di Pietro, significa dizer que “a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento” (2019, p. 219)
A razão de ser desse atributo, vale lembrar, demonstra-se ainda mais valiosa ante o fato de que nem sempre nossas intuições morais imediatas produzem as melhores consequências.
A polícia por exemplo, que tem a função de proteger à sociedade, é um ramo da justiça que não pode exercer suas atividades influenciada por critérios discriminatórios ou com base na vontade pessoal de seus agentes. Pois se assim fosse, instalar-se-ia o caos. A um policial não é permitido dar voz de prisão apenas às pessoas das quais ele não é afeito, ou se recusar a prender alguém porque sente pena. Quando na verdade sua única bússola é a legalidade, que o vincula a realizar a vontade do interesse público.
Nesse sentido, “os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa da Administração Pública, de sorte que ele é o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal” (SILVA, 2003, p. 647).
Com efeito, percebe-se, aqui, uma clara desvinculação entre a vontade particular do agente e a do interesse da administração.
Excepcionalmente, as condutas parciais não são prejudiciais e, em alguns casos, ao contrário, são até desejáveis, como é o caso da conduta de um advogado, o qual tem total liberdade para defender os interesses do seu cliente ilimitadamente, desde que dentro da legalidade, sem qualquer necessidade de atuação imparcial (CALAMANDREI, 1995, p. 26).
Ressalte-se, porém, que em algumas situações podem ocorrer quebras de imparcialidade, que podem ser conscientes, assim sendo, resultado de uma quebra da “boa-fé”, ou inconscientes e, portanto, fruto de algum viés cognitivo, conceito da psicologia cognitiva que será analisado e explicado mais à frente.
Sem se fazer juízos sobre sua eficácia na prática, observa-se, em tese, que a imparcialidade, salvo raras exceções, é condição de viabilidade do funcionamento de instituições voltadas ao interesse público, bem como possui relação estreita com à justiça e a busca da verdade.
Trabalhadas essas noções introdutórias e gerais, o próximo tópico tratará mais especificamente do tema deste trabalho, passando a abordar à imparcialidade judicial em sentido estrito.
2.1.1 O PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE JUDICIAL
Por princípio, na concepção de Gomes (2010, p.63), entende-se “as diretrizes gerais de um ordenamento jurídico – ou de parte dele – ”. Seu espectro de incidência é muito mais amplo que o das regras. Entre eles pode haver “colisão”, não conflito. Quando colidem, não se excluem.
Assim, a imparcialidade judicial é princípio pois trata-se de um “mandamento nuclear” que embasa o sistema jurídico de modo que ele seja harmônico e “disposição fundamental que se irradia sobre as demais normas compondo-lhes o espirito e servindo de critério para sua exata compreensão’’ (MELLO, p.85, 2013).
Para Barbosa (1998, p.6), “o juiz é imparcial é dizer que ele deve conduzir o processo sem inclinar a balança, ao longo do itinerário, para qualquer das partes”. É assegurar às partes igualdade de tratamento.
Aqui, as palavras de Grinover (1983, p. 11) são cirurgicamente precisas:
A imparcialidade do juiz, mais do que simples atributo da função jurisdicional, é vista hodiernamente como seu caráter essencial; e, em decorrência disso, ‘a imanência do juiz no processo’, pela jurisdicionalização deste, leva à reelaboração do princípio do juiz natural, não mais identificada como um atributo do juiz, mas visto como pressuposto para a sua própria existência. Eis, assim, a naturalidade do juiz erigida em qualificação substancial, em núcleo essencial da função jurisdicional. Mais do que direito subjetivo da parte e para além do conteúdo individualista dos direitos processuais, o princípio do juiz natural é garantia da própria jurisdição, seu elemento essencial, sua qualificação substancial. Sem o juiz natural, não há função jurisdicional possível. Daí a importância das reflexões sobre o tema da naturalidade do juiz, tema que se insere, nesse enfoque, entre os estudos processuais de caráter constitucional.
Em outras palavras, a imparcialidade do juiz consiste na ausência de vínculos subjetivos com o processo, mantendo-se o julgador distante o necessário para conduzi-lo com isenção.
A imparcialidade do órgão jurisdicional é um “princípio supremo do processo”, e, como tal, imprescindível para o seu normal desenvolvimento e obtenção do reparto judicial justo (ALONSO, 1997, p. 27)
Em acepção distinta, mas não necessariamente dissonante e na qual esta monografia está de acordo, Costa (2016) posiciona-se na defesa da imparcialidade como regra "indeclinável", "ponto inflexível" e não princípio, pois segundo o autor tal instituto teria uma aplicação obrigatória total, ou seja, no tudo ou nada, pois assim como “não existe uma lei meio pública” não pode faz sentido um juiz meio imparcial.
Embora a Constituição Federal brasileira não mencione expressamente o instituto, a interpretação de que o julgador deve ser imparcial no julgamento das lides em que for presidente pode ser extraída a partir de uma interpretação lógico sistemática.
Uma dessas interpretações pode ser extraída do conteúdo do caput do artigo 5° da Constituição Federal de 1988(CF/88) quando prescreve que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Outra decorrência do mesmo preceito situa-se no inciso XXXVII do mesmo artigo, cujo teor proíbe o juízo ou tribunal de exceção, garantindo que o processo seja conduzido pela autoridade competente que sempre será determinada por regras estabelecidas anteriormente ao fato sob julgamento.
Além disso, o princípio da imparcialidade está previsto em diversos diplomas nacionais e Tratados internacionais de Direitos Humanos do qual o Brasil é signatário. Quais sejam, o Código de Ética da Magistratura Nacional[4]; Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969[5]; Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais[6] – mais conhecida como Convenção Europeia dos Direitos Humanos –; Declaração Universal dos Direitos do Homem; Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos[7]; Princípios de Bangalore[8] de Conduta Judicial.
Na esfera jurídica processual, portanto, o princípio da imparcialidade é um princípio ou regra constitucional aplicável ao processo que apregoa que o magistrado não deve proceder com interesse na causa que lhe é apresentada para julgar, nem toma partido por qualquer uma das partes.
Consiste em um distanciamento da vontade das partes. É – ou deveria ser – a garantia que tem o cidadão de que a causa submetida ao estado-juiz não vai ser decidida em razão de sua classe social, da cor da sua pele, da sua ideologia política, da sua idade, aparência física, seu credo e gênero ou qualquer outro motivo desconexo dos autos analisados. Teoricamente, o juiz que vai julgar não tem interesse nisso.
2.1.1.1 IMPARCIALIDADE X NEUTRALIDADE
Essa distinção é a chave do problema da relação que se faz não só no senso comum como também no meio jurídico, equivocadamente, entre essas duas categorias, de modo que ao se definir corretamente o instituto da imparcialidade se evitam celeumas não só desnecessárias, mas infrutíferas e prejudiciais.
Assim, da autoridade judiciária tem se exigido a isenção e a neutralidade, se tem confundido a necessária imparcialidade e neutralidade, fazendo com que esta ao assumir a sua função abdique da condição de cidadão e passe a agir tecnicamente (RODRIGUES, 1993, p. 42).
Ainda que as definições dicionaristas, como se viu antes, atribuam uma relação de correspondência entre neutro e imparcial, tal proposição merece crítica no sentido de discordar-se que "neutro e imparcial sejam sinônimos, pelo menos do ponto de vista jurídico-político” (BARBOSA e PAMPLONA).
Assim, para Barroso (2009, p. 293): exigir ou esperar neutralidade do julgador seria o mesmo que exigir dele um estado de ignorância absoluto acerca da realidade, outrossim, tal pretensão e “utópica”, visto que tal estado é “inatingível”. Isso só é possível às máquinas, que são desprovidas de cérebro, sistema nervoso, logo também desprovidas de consciência.
Ou seja, ao ser humano não é dada a capacidade de impedir o sentimento, mas tão somente a possibilidade de escondê-lo, sobretudo porque o ato de não sentir é, em si, um sentimento, de modo que o que se capta do mundo pode trazer alegria, medo, pena, tristeza ou indiferença (BARBOSA e PAMPLONA, online).
O fato de não se incomodar ou de ignorar representa deslocamento em relação ao "marco zero", isto é, o locus vazio de sentimentos e emoções, em que habita uma espécie de lógica que não produz qualquer sentido apto a ser captado pelas razões humanas, complementam os autores.
Ou ainda numa perspectiva moral, na dicção de um juiz em entrevista para um trabalho empírico realizado por Lupetti Baptista (2013, p.329), “ser neutro implica em uma total ausência de valores”.
Na mesma ocasião, um advogado também se pronunciou:
“Uma coisa é ser imparcial, ou seja, distante das partes. Tratar igual, sem benefício. Isso é uma coisa. Ser neutro é outra. Não dá. Sua história de vida e suas experiências estão em você. Neutro é aquele que não toma partido nem a favor nem contra. E o juiz toma. Ele decide a favor de alguém, sempre. É natural que o juiz julgue situações que ele vivencia. É cliente de banco, é locador, é locatário, usa telefone. O fato de ele ser judeu, por exemplo, não o impede que discuta uma ação antissemita, em princípio. Ele não estaria automaticamente excluído. Ele tem uma carga religiosa. Isso tudo ele vai carregar para a decisão. O que ele não pode é julgar com base nisso. Rasgar a lei porque quer decidir de acordo com a sua carga religiosa. Acho bom que ele até diga que é judeu, para dar aparência de que, apesar disso, é imparcial” (2013, p.331).
Interessante notar que na fala do advogado ele endossa o discurso que racionaliza um caminho ideal a ser percorrido pelo magistrado no processo de tomada decisão, segundo o qual o juiz detém absoluto controle sobre suas emoções e as maneja quando necessário para ser imparcial, bem como, não tendo para isso necessariamente que ser neutro.
Deste modo, quando se exige de um magistrado que faça juízos imparciais na tomada de decisão, não se está obrigando-o a abandonar suas crenças pessoais, seus valores morais e preferências, ou seja, a ser neutro, até porque é inerente aos indivíduos tomar partido (BECKER, 1977, p. 122). O que está se exigindo, em verdade, é um compromisso de honestidade para com as partes, de que não irá privilegiar ou prejudicar ninguém com base em sua vontade individual.
Efetivamente, o que se espera do julgador é que ele ao confrontar suas inclinações pessoais com fatos objetivos e os dispositivos legais, decida, sem sombra de dúvidas, sempre “de acordo com os fatos e as normas que disciplinam a relação jurídica”, contrariando, assim, os próprios desejos, “no intuito exclusivo de proteger o interesse de quem tiver razão” (GRECCO, 2005, p. 231).
Numa perspectiva alternativa, Barbosa Moreira (2001, p. 29) defende a parcialidade na busca pelo justo aduzindo:
Há, com efeito, a propensão bastante difundida a identificar dois conceitos: o de imparcialidade e o de neutralidade. Trata-se, a meu ver, de grande equívoco. Dizer que o juiz deve ser imparcial é dizer que ele deve conduzir processo, ao longo do itinerário, sem favorecer qualquer das partes[...] outra coisa é pretender que o juiz seja neutro, no sentido de indiferente ao êxito do pleito. Ao magistrado zeloso não pode deixar de interessar que o processo leve a desfecho justo[...].
Vale lembrar, pois, que aos juízes é lícito ter opinião sobre todo e qualquer caso, o que é diferente de poder externá-la publicamente ou, efetivamente, imprimi-la na tomada de decisão, inserindo-a em seu conteúdo e transformando o seu resultado, isso não só é prejudicial como também é proibido.
Há que se destacar ainda um ponto levantado por Barbosa e Pamplona, na linha desse raciocínio: ao se buscar pelo "neutro" é-se conduzido ao "imparcial", todavia, ao se buscar pelo "imparcial", não se encontraria o "neutro".
O objeto de análise do presente estudo reside no aspecto objetivo da imparcialidade. A imparcialidade objetiva do juiz resta evidentemente comprometida quando o magistrado causa pré-juízos ou alimenta preconceitos sobre o fato objeto do julgamento. Aliás, a imparcialidade é denominada “objetiva” justamente porque deriva de sua prévia relação com o objeto do processo e não da relação do juiz com as partes.
Nestes termos, portanto, há que destacar ainda que há uma diferença crucial entre a parcialidade pessoal do magistrado, isto é, a que está em seu íntimo, logo, em um plano privado, psicológico e abstrato, e a parcialidade judicial, aquela manifestada concretamente no decorrer de todo o processo ou em uma determinada decisão e, portanto, no plano do interesse público.
Assim, invariavelmente, essa confusão que se faz entre imparcialidade e a impossível neutralidade, ocorre a partir do momento em que se confunde as esferas pública e privada, a convicção pessoal do juiz e a decisão a ser proferida.
Destarte, conclui-se que imparcialidade e neutralidade, sendo esta última humanamente inalcançável, tecnicamente não são sinônimas, embora também não possam ser consideradas antagônicas, mas tão somente que habitam searas distintas.
2.1.1.1.1 IGUALDADE PROCESSUAL SOB A ÓTICA DA IMPARCIALIDADE
No processo, como em qualquer âmbito da vida, eventualmente podem existir assimetrias, não só materiais, entre as partes, assim como existem na sociedade de um modo geral, afinal, são os integrantes desta que também o integram.
Nesse sentido, há que se destacar, que o Brasil, embora nação de grande porte e em desenvolvimento, mantém-se notoriamente desigual. Construído, desde as suas raízes coloniais portuguesas, como uma sociedade rigorosamente estamentada, o país ainda apresenta essa característica nos cinco séculos de sua história (ROCHA e GUEDES, 2001, p. 14).
Tartuce, discorrendo sobre desigualdades, cita exemplos que podem ocorrer no processo:
Insuficiência econômica (hipossuficiência); 2) existência de insuperáveis óbices de índole geográfica; 3) ocorrência de debilidades na saúde e/ou no discernimento; 4) configuração de dificuldades técnicas por desinformação pessoal quanto a matérias jurídicas e probatórias relevantes (ignorância acerca do direito material, desconhecimento sobre normas processuais, ausência de advogado, deficiências na atuação probatória); 5) incapacidade de organização (disparidades estruturais entre os litigantes, litigantes desprovidos ou removidos de um lar, vulnerável cibernético)
Diante disso, a preocupação em criar um ambiente mais isonômico nessa esfera, sem dúvida, é um sentimento que além de nobre é legítimo. Tanto é que o poder constituinte originário consagrou expressamente no texto constitucional, em seu art. 5º, caput, o princípio da igualdade.
Um dos exemplos da ressonância desse comando na ordem jurídica ordinária brasileira situa-se no Código de Processo Civil (CPC), quando dispõe que o juiz deve assegurar um tratamento igualitário às partes no processo[9].
Entretanto, há situações em que a mera implementação de uma igualdade formal sem a observância de determinados contextos socioeconômicos e jurídico-políticos pode levar a perpetração de injustiças estruturais e históricas. Nesse sentido a fim de equalizar as relações dentro do processo, a lei permite que o estado-juiz atue para reduzir essas desigualdades.
Um exemplo disso, e um caso relativamente bem-sucedido, está no Código de defesa do Consumidor (CDC), quando o legislador, pressupondo uma hipossuficiência técnica e jurídica do consumidor ante o fornecedor, estabelece previamente ao fato regra possibilitando a inversão do ônus da prova; também no CPC quando possibilita o deferimento da justiça gratuita à parte hipossuficiente[10].
Porém, como bem sintetiza Moraes (2008), para que essa mitigação de desigualdade seja justificada, quando da criação de leis e atos normativos pelo legislador ordinário e sua aplicação pelo intérprete, devem ser observados critérios objetivos e razoáveis com fins igualmente proporcionais aos meios utilizados, sempre em conformidade com os direitos fundamentais.
Na mesma esteira, Alexy (2001) discorre que a assimetria entre a norma equalizadora e a norma discriminatória tem como consequência a possibilidade de compreender o comando geral de igualdade como um princípio da igualdade, que prima facie exige um tratamento igual e que autoriza igualmente um tratamento desigual, mas apenas se isso for justificado por princípios contrapostos.
Assim, o princípio da igualdade implicaria o direito de não-discriminação, e vice-versa, dado que, se igualdade, então não-discriminação; ou, se não-discriminação, então igualdade, em notação da lógica simbólica (JUNIOR, 2005).
Disto, extrai-se que se por um lado o Estado deve atuar criando medidas para desfazer ou minimizar desigualdades no decorrer do procedimento que busca a prestação jurisdicional, por outro deve abster-se, preservando a liberdade individual das partes.
Há que se lembrar, contudo, que a natureza do poder de instrução não é discricionária, pairando sobre ela a limitação dada pelos elementos objetivos da demanda, os quais determinam à congruência entre o pedido e a decisão e obstam à busca de fatos que não integram o continente estabelecido pelas partes, a vinculação do juiz aos autos, o desprezo ao conhecimento privado do juiz e a submissão das provas obtidas de ofício ao contraditório (ROCHA e GUEDES, 2013, p. 18).
Dito de outro modo, o juiz não pode deliberar por conta própria que medidas irá adotar para equalizar a relação processual sem o intermédio da lei, “sob pena do risco de que se exceda e seja autoritário” (COSTA, 2019, online).
É nessa perspectiva que, arraigada na Constituição, a doutrina do Garantismo[11] jurídico constrói sua Filosofia do Direito, defendendo que o processo é uma garantia fundamental do cidadão e não um instrumento à disposição do estado, mas uma proteção contrajurisdicional daquele (FERRAJOLI, 2002).
Assim, Sousa (2020, online) adverte que o juiz, "insuflado pela própria macrocósmica visão do “justo” e da “justiça”, como se a ordem constitucional tivesse dado um “cheque em branco” para que juízes e tribunais vestissem capa e espada para justiçar os males da vida por meio do poder jurisdicional, não pode compensar desigualdade, seja lá qual ela for, com julgamentos procedentes ao desigual hipossuficiente só pelo fato de atravessar tal condição. Porque, "por más que duela en la alma" a desigualdade econômica não pode ser compensada com vantagens no processo (CANTEROS 2012, p. 33).
Deste modo, conclui-se que o poder judiciário pode e deve garantir a igualdade aos mais vulneráveis, mas sem desvirtuar a justiça invadindo e lesionando à esfera individual e material dos ditos hipersuficientes ilegítima e ilegalmente.
3.A IMPARCIALIDADE JUDICIAL NO SISTEMA JURIDICO BRASILEIRO
Por motivos desconhecidos, a imparcialidade judicial nunca recebeu a devida atenção por parte da doutrina brasileira. O tema é normalmente tratado em manuais de processo em uma ou duas laudas, sempre na mesma perspectiva retórica do dever-ser.
Mesmo em artigos acadêmicos internet a dentro o que se encontram são trabalhos repetindo sem questionar ad infinitum o discurso dogmático. Apenas aqui e ali surgem alguns trabalhos oferecendo uma perspectiva crítica, como é o caso da obra “Levando à imparcialidade à sério” do Eduardo José da Fonseca Costa e ”Paradoxos e ambiguidades da imparcialidade judicial”: “entre quereres e poderes” da Bárbara Gomes Lupetti Baptista, ambos utilizados como referência nessa monografia.
Essa negligência generalizada dada à imparcialidade reflete não só numa distorção conceitual acerca do seu teor, como também no tratamento legislativo conferido ao assunto.
Assim sendo, o capítulo 3 terá por objeto uma análise crítica da legislação brasileira que trata do tema, restringindo-se ao CPC, bem como uma análise conceitual de possibilidades de quebra consciente de imparcialidade e, por fim, uma análise sobre a incidência de vieses cognitivos nas decisões judiciais, configurando, como será demonstrado uma quebra de imparcialidade inconsciente.
3.1 OS INCIDENTES DE IMPEDIMENTO E SUSPEIÇÃO
Que os juízes têm o dever de serem imparciais, não há dúvidas. O problema que aparece, inicialmente, é: e se eles não forem, há algum mecanismo capaz expurgar tal vício no decorrer do processo? E se há, funciona efetivamente a fim de garantir segurança processual às partes? A resposta da primeira pergunta é positiva.
A lei processual traz em seu bojo incidentes processuais, de impedimento e suspeição, criados a fim de controlar a imparcialidade do juiz. A função desses mecanismos é justamente impedir que fatores externos ao processo intervenham no resultado da prestação jurisdicional.
Assim, a imparcialidade judicial é definida a partir de distintos critérios legais previstos no Código de Processo Civil Brasileiro[1], que tratam de discriminar em que momentos a imparcialidade judicial estaria fragilizada. Isto é, em que momentos seria pressuposto um comportamento parcial do juiz e, portanto, em que situações ele estaria proibido de exercer a sua jurisdição.
O artigo 144 trata dos casos de impedimento[2] do juiz, reputados como de mais fácil comprovação, uma vez que leva em conta critérios de aferição objetiva, pois podem ser comprovados por meio de simples documentos.
Por este raciocínio, as situações que configuram o impedimento do juiz, notadamente critérios de parentesco, além de relações jurídicas e funcionais subjacentes entre julgador e a parte, não enfrentam nenhuma dificuldade maior de serem demonstradas caso ocorram.
Já no art. 145 localizam-se os casos de suspeição[3], tidos como de mais difícil comprovação, sobretudo por causa do alto nível de abstração e imprecisão dos conceitos, além da ausência de consenso sobre os mesmos. (BAPTISTA LUPETTI, 2013, p. 104-105)
Ora, como estabelecer, por exemplo, o significado de conceitos como amizade “íntima” ou inimizade “capital ”? O que seria um comportamento “interessado”? E o mais difícil, como comprovar a configuração de tais pressupostos? Quando tais circunstâncias na maioria das vezes são latentes.
Na obra denominada “Da necessária releitura do fenômeno da suspeição”, Fornaciari Junior expressa sua insatisfação diante das dificuldades na aplicação de tais institutos:
A diferença do regime jurídico decorre, basicamente, da natureza do vício, sendo certo que aqueles elencados como de impedimento carregam uma dose maior de objetividade, podendo, quase sempre, serem demonstrados documentalmente; na suspeição, o subjetivismo é maior e a prova quase sempre, bem precária. (1999, p. 64)
Nesse sentido, não há como não reputar, ao contrário do que aduz Câmara [4](2017, p. 104), à suspeição como um fenômeno mais grave que os impedimentos para a parte por ela prejudicada. Tanto porque suas consequências processuais geram apenas nulidade relativa dos atos praticados pelo juiz, bem como porque é muito mais difícil prová-la, quando não impossível.
Além disso, a exceção de suspeição só pode ser arguida no prazo[5] de 15 dias contados do fato que a ensejou. Enquanto que a exceção de impedimento, mesmo após o transito em julgado têm a capacidade de gerar nulidade absoluta de todos os atos praticados por meio de ação rescisória, além de ser facilmente comprovada.
Por esse motivo dá-se um destaque maior a essa problemática, visto que com relação aos impedimentos não há muito o que se discutir.
Sobre o julgamento desses incidentes, um dos problemas que surge inicialmente, porém, reside no fato de que são eles, os próprios juízes, que julgam os julgam. Logo, pergunta-se: como alguém pode julgar sua própria suspeição? Parece ingênuo crer nisso. Trata-se de algo redundante e que destoa do princípio da economia processual.
Destarte, apesar de ser lícito a qualquer das partes arguir por meio de exceção a suspeição, quem irá analisar o incidente é o próprio magistrado, sendo que o acolhimento da alegação poderá suspender[6] o processo e o magistrado ser condenado a pagar custas[7], o que de certa forma acaba por desencorajá-lo a declarar sua suspeição e continuar no processo, mesmo sabendo que suas inclinações pessoais podem acabar influenciando em sua sentença, tendo tal medida, portanto, um efeito totalmente diferente do esperado.
Outro problema, é o fato de que tais incidentes não serão capazes de resolver, ainda em relação à suspeição do magistrado, casos em que a parcialidade só é manifestada na decisão que põe fim a fase de conhecimento, ou seja, na sentença.
Nesse caso, só será possível sanar a parcialidade, quando da interposição de recurso específico, ocasião em que a identificação, exposição e comprovação pela parte de alguma conduta em desacordo com a realidade que o juiz tenha deixado passar despercebida poderá ser combatida.
Há o argumento, em sentido contrário, que defende que o julgamento do incidente por um outro juiz ou mesmo um tribunal seja suficiente para coibir e sanar eventuais parcialidades. Na verdade, essa é a lógica por trás de todo o sistema de recursos brasileiro. O duplo grau de jurisdição é suspostamente a garantia de que determinada demanda ao ser apreciada por uma segunda visão corrigirá eventuais erros (ALEXIS, HUMBERTO e LIMA, 2019).
No mesmo sentido, argumenta Alvim:
Há sempre a possibilidade de as decisões judiciais se ressentirem de vícios, resultantes de erro ou má-fé do seu prolator, donde a necessidade de permitir-se a sua reforma pela instância superior. A admissibilidade de reexame das decisões de primeiro grau, por juízes de grau superior, de ordinário mais experientes, exige daqueles maiores cuidados no exame e solução das lides, além de contribuir para o aprimoramento moral e cultura dos juízes (2018, p. 86)
Mas qual a garantia de que essa segunda visão também não será parcial e que também estará sujeita a influencias “externas”, ou mesmo “internas”? Quem garantirá que não estarão sujeitos aos mesmos vieses, preconceitos e crenças, ou a outros? Sabe-se que o fato de ser uma apreciação colegiada não neutraliza tais interferências.
Outra questão que se levanta, ainda, é se os róis de impedimento e suspeição são exemplificativos ou se são taxativos. O que se sabe, porém, é que nem a doutrina se decidiu ainda. Do mesmo modo, tribunais ora decidem em um sentido, ora em outro.
À vista disso, uma definição se faz necessária, dadas as implicações práticas que cada possibilidade impõe. Outrossim, é um truísmo afirmar que há muitas situações que não estão na lei, mas que configuram quebra da imparcialidade. Nesse contexto, uma interpretação extensiva dos presentes institutos e a adoção de um rol meramente exemplificativo, se mostra uma medida mais adequada.
Exemplo disso é o caso em que o magistrado é o padrinho de casamento de uma das partes. Tal previsão não consta em nenhum dos róis. Destaca-se nesse sentido a lição de Lucon:
Compete ao STJ apreciar os casos de parcialidade do magistrado relacionados com hipóteses de suspeição e impedimento decorrentes da não observância dos arts. 134 e 135 do CPC. Toda e qualquer situação de suspeição e impedimento está amparada pela lei federal. Entretanto há situações que não se enquadram nas hipóteses previstas no Código de Processo Civil. Isso significa dizer que existem situações nas quais se verifica a violação ao princípio da imparcialidade do juiz e que não poderão ser apreciadas pelo STJ, diante da própria interpretação restritiva que é dada ao tema. [...] Todavia, o princípio da imparcialidade, não só no Brasil, como em todo mundo, até pela natural força que carrega um princípio, sempre se sobrepôs à letra da lei, até porque as causas de recusa do juiz pelas partes e abstenção do magistrado em atuar revelaram, ao longo dos tempos, uma parcimônia, dada a precariedade de se conseguir elencar todas as posturas humanas que pudessem afastar o julgador daquele homem que [...] deve ser um assente, capaz de refletir uma tábula rasa, alheio a tudo quanto existe à sua volta. [...] Assim é que, embora a imparcialidade seja garantia fundamental implícita na Constituição Federal, não há que falar em violação reflexa quando nos deparamos com situações de verdadeira parcialidade não acobertadas nas modalidades taxativas de impedimento e suspeição. Se não estivermos diante de típico caso de suspeição ou de impedimento, caberá ao STF apreciar e julgar a possível violação à Constituição Federal, que, frise-se, não é uma violação reflexa, pois seu reconhecimento não dependerá de revisão de interpretação dada à norma infraconstitucional. Admitir o contrário seria o mesmo que desamparar determinadas situações de violação a uma garantia fundamental, que não podem ser apreciadas pelo STJ. E mais: seria desconsiderar a elevada categoria constitucional do dever de imparcialidade do julgador por conta da existência de algumas situações previstas na lei ordinária 2013 (p. 647-676).
Na mesma esteira, e em homenagem ao princípio da imparcialidade do julgador, constitucionalmente assegurada, é plenamente plausível que se faça uma interpretação extensiva quando ficar evidente o comprometimento do magistrado para apreciar a causa, mesmo que o fato não esteja abarcado na taxatividade da lei, defende Nucci (2020, p. 604).
Por óbvio, se o magistrado for um ser humano “ético”, naturalmente irá se declarar[8] suspeito e se afastará daquele processo. Caso contrário, o feito prosseguirá, perpetrando o que há de mais injusto no judiciário brasileiro.
Vislumbra-se, nesse sentido, que o que existe de fato é tão somente um controle interno do próprio agente.
Da mesma forma conclui Nepomuceno:
O primeiro e decisivo passo para uma possível reflexão e um possível controle dos sentimentos (aqui incluídos os preconceitos, as ideologias, as crenças, os vieses cognitivos) presentes no processo de interpretação do direito, especialmente em casos que envolvem sopesamentos e restrições a direitos fundamentais, é reconhecer que esses elementos estão inevitavelmente presentes. Apenas mediante essa explicitação é possível colocar em questão a validade ou invalidade dos preconceitos e das premissas fundamentais de determinada “visão de mundo” (2019, p. 136).
Como se vê, é indubitável que a lei busca com mecanismos próprios, mesmo que de maneira tímida, fiscalizar a imparcialidade do juiz. Contudo, tais dispositivos, sobretudo por sua visão simplista da realidade apresentam muitas falhas e mostram-se ineficazes em atingir o fim caro a que se propõem.
Sobre isso e avançando no presente trabalho, no próximo tópico tratar-se-á de aspectos da personalidade do juiz na visão da sociedade e esta concepção de homem infalível que predomina socialmente.
3.1.1 A RACIONALIDADE ILIMITADA DOS JUÍZES
Até aqui foi tratado da maneira como o juiz deve agir. O que importa, no entanto, é tratar da maneira como ele age de fato. Abandonando, portanto, os dogmas e atendo-se a realidade cotidiana prático-fática, para a partir disso possibilitar uma transformação. Pois como bem disse Marx (1986, p. 02), os filósofos até hoje se empenharam em descrever e interpretar o mundo, mas o que importa é modificá-lo.
Pelos mais variados motivos e sem muita noção de como funcionam os ritos processuais e a aplicação do Direito na prática, a grande maioria das pessoas busca o judiciário na esperança de solucionar seus conflitos, submetendo, assim, seus interesses à tutela de desconhecidos legitimados pelo estado, os quais serão os responsáveis por oferecer-lhes uma resposta, sem possibilidade, em regra, de se absterem, devido ao princípio da inafastabilidade do poder judiciário ou proibição do non liquet.
Além disso, o poder judiciário possui uma condição exclusivista de solucionador de conflitos que se explica, sobretudo, em virtude da vedação à autotutela no ordenamento jurídico, o que ao fim e ao cabo, o torna meio único para, em última instancia, dirimir conflitos naturais das relações em sociedade.
Desse modo, proporcionalmente aos poderes, existe uma série de garantias concedidas aos magistrados, as quais têm por finalidade não só o fomento do seu bem-estar material, mas sobretudo, assegurar sua autonomia no exercício da função.
Por isso, a Constituição prevê benefícios como a vitaliciedade, após dois anos de exercício em primeiro grau; a inamovibilidade, salvo por interesse público, e a irredutibilidade de subsídio, sem mencionar que o judiciário possui um dos maiores salários do funcionalismo público.
Desta forma, afirma Alvim:
Na verdade, a garantia política dos juízes resulta de uma garantia implícita na Constituição, para assegurar a sua liberdade de julgar, não podendo ser responsabilizado (civil ou criminalmente) por erros nas decisões e sentenças que profere, exceto se proceder com dolo ou culpa grave. (2018, p. 94)
Lê-se que com essas garantias os juízes não estariam vulneráveis às pressões externas, como as chantagens político-econômicas típicas das disputas de poder, podendo assim julgar com autonomia e sem interferências externas.
Para além disso, segundo Lupetti Baptista, para que as pessoas confiem e entreguem sua demanda nas mãos do poder judiciário, é preciso fazer com que estas acreditem que sua causa será julgada de forma imparcial (2013, p. 265). Afinal, ”aqueles que buscam a justiça devem acreditar que ela será feita” (MARTINS, 2007, p.01).
Para isso, segundo a mesma autora, desenvolve-se um amplo discurso público, doutrinário e legal, que confere inexoravelmente ao julgador tal atributo (2013, p. 265), além de uma fé pública inabalável.
Pamplona Filho e Barbosa aprofundam esse raciocínio, aduzindo que é preciso ressaltar "a necessidade que a sociedade e as instituições têm de manutenção de seus valores fundamentais. Valores dentre os quais se encontra a Justiça, que não pode ser destruída pela mostra de suas fraquezas. Pois sua credibilidade está intimamente relacionada com o exercício de papéis sociais e a crença na figura da desta.
É nesse contexto de poder que se inscreve no imaginário social a potencial crença de que os magistrados são seres dotados de uma racionalidade objetiva, ilimitada e infalível. Assim, esquece-se a sociedade que o juiz tem um lado afetivo (FERNANDES; LIPP, 2017, p. 39).
É nessa linha que Neiva aduz:
Para a opinião púbica em geral, o juiz de direito é uma figura alheia à realidade, protegido por uma bolsa que não lhe permite emitir opiniões e que seus julgamentos são resultado de uma intepretação absolutamente neutra de interferências mundanas. O juiz é quase como um santo na terra. Talvez vindo de marte ou outro planeta para nos dizer, de forma mais imparcial possível, o direito de cada um (2016, online).
Embora incauta, é compreensível essa visão. Afinal, alguém com a incumbência de tomar decisões que podem influenciar inexoravelmente à vida e o patrimônio das pessoas, privá-las de sua liberdade, etc., associado a todo discurso propagado pelo meio jurídico, no mínimo, presume-se, ser dotado de uma sabedoria especial, ilimitada e imparcial.
Isso sem levar em consideração a barreira linguística existente entre o mundo jurídico e maior parte da sociedade, materializada em um vocabulário rebuscado e formalista, que impede à comunicação e interação entre esses dois grupos e, por conseguinte, a incompreensão deste último acerca daquele. De modo que consciente ou inconscientemente tal fenômeno funciona como uma ferramenta de gestão do conhecimento como exercício de poder, como aduz Freire (Apud FIGUEIREDO e PIACENTINI, 1985, online).
“Ocorre que não há qualquer prova” com base científica “de que o juiz, apenas porque juiz, se constitua de racionalidade plena, e que todos os demais sujeitos processuais se constituam de racionalidade limitada” (SOUSA, 2019, online). Do contrário, o que os diferenciaria dos demais mortais?
Ao se distinguir imparcialidade de neutralidade, concluiu-se que esta última é meta inatingível aos seres humanos e que, à vista disso, parece meio óbvio afirmar que o julgador está suscetível a toda uma gama de emoções próprias da natureza humana que vão desde as boas como felicidade, motivação, esperança, compaixão e generosidade até as piores como tristeza, raiva, desprezo angústia, medo, nojo, etc.
Nesse sentido vale recorrer às precisas lições de Calamandrei:
Representa-se escolarmente a sentença como o produto de um puro jogo lógico, friamente realizado com base em conceitos abstratos, ligados por inexorável concatenação de premissas e consequências; mas, na realidade, no tabuleiro do juiz, as peças são homens vivos, que irradiam invisíveis forças magnéticas que encontram ressonâncias ou repulsões, ilógicas, mas humanas, nos sentimentos do judicante. Como se pode considerar fiel uma fundamentação que não reproduza os meandros subterrâneos dessas correntes sentimentais, a cuja influência mágica nenhum juiz, mesmo o mais severo, consegue escapar? (1985, p. 248).
Percebe-se com isso, que o sentido da imparcialidade como distanciamento das partes é distorcido para que tenha um sentido distinto, a saber, o de neutralidade, a qual sabe-se ser inalcançável, a fim que o juiz seja visto como homem infalível.
Assim, o juiz é concebido como sujeito dotado de competências cognitivas inauditas, enquanto os demais sujeitos processuais e o próprio legislador, como sujeitos dotados de competências cognitivas limitadas. Confesse-se ou não, tenha-se consciência disso ou não, é esta a realidade (SOUSA, 2020, online).
Ao ignorar tal problema ao mesmo tempo que o camufla, o Brasil, caminha alimentando fatores de enviesamento cognitivo dos julgadores” (COSTA, 2016, p. 13). De modo que, diariamente, arbitrariedades dos mais variados tipos que afetam a vida de milhares de pessoas são cometidas em decisões judiciais, algumas “gritantes”, ou como se chama no meio jurídico “decisões teratológicas”.
Assim, mostra-se equivocada a visão do senso comum que enxerga no magistrado uma fonte ilimitada de racionalidade e objetividade e uma das razões para que isso aconteça reside na crença bastante difundida pelo discurso jurídico, numa perspectiva de manutenção do status quo.
3.1.1.1 QUEBRA CONSCIENTE DA IMPARCIALIDADE.
A imparcialidade judicial está em xeque quando o magistrado deixa sua isenção de lado e se inclina em direção ao interesse de uma das partes, em uma espécie de “ativismo” velado. O interesse em questão pode ser uma vantagem material ou moral percebível pelo juiz com a decisão da causa, (ARAÚJO[9], 2002, p. 37). Ressalta-se, porém, que o recebimento de benesses do magistrado entregues pela parte em troca de favorecimentos configura crime de corrupção passiva.
Diz-se velado, pois o magistrado que age de forma parcial, não quer que sua parcialidade esteja à vista, que seja perceptível aos olhos dos jurisdicionados ou dos seus pares. Nesse sentido, há “no julgamento premissas ocultas imperceptíveis” (PORTANOVA, 2003, p. 15).
Disto, conclui-se que há a consciência da prática de uma conduta rejeitada pelo ordenamento legal e “a necessidade de se sustentar discursivamente a imparcialidade judicial, que "redunda no esforço de torná-la visível", aparente, pois "assim como ocorre com a mulher de César, não basta ser imparcial, é preciso parecer imparcial” (LUPETTI BAPTISTA, 2013, p. 267).
Cabe aqui abrir um parêntese para destacar a questão brasileira em relação ao autoritarismo judicial. Não é de hoje que o Brasil pena com suas mazelas, sobre isso, alerta, Costa (2016, p. 23,24):
Em tempos em que a América Latina é cobiçada por facções autoritárias, levar a sério a imparcialidade judicial se torna uma das mais ingentes tarefas em prol de nossa (já combalida) Democracia. Afinal de contas, a imparcialidade é a garantia fundamental de que os juízes não deturparão o conteúdo impessoal da lei – aprovada em assembleia por representantes eleitos democraticamente pelo povo – para beneficiarem a si, a uma causa político-social ou à parte no processo que tenha merecido o seu abjeto apadrinhamento (ainda que ajam aqui com propósitos altruísticos). [...]Não por outro motivo, a primeira vítima de todo ativismo judicial é a salutar equidistância, detratada com adjetivos como “anêmica”, “omissa”, “inerte” e “socialmente indiferente”. Daí por que a elaboração de projetos de melhoria dos sistemas de resguardo de imparcialidade do julgador [...]deve ser uma preocupação de qualquer designer jurídico institucional comprometido com valores democráticos.
O referido “ativismo” se confunde com o ativismo judicial surgido a partir da omissão legal de um preceito constitucional, expressão do neoconstitucionalismo que visa suprir o vácuo legislativo e consequentemente solucionar algum problema de ordem social negligenciado pelo legislativo ou executivo, mas não são a mesma coisa, pois este é conscientemente assumido e explicito publicamente, ao passo que o voluntarismo individual a que se refere é implícito, majoritariamente não assumido, e usado casuisticamente. Assim invade-se, normalmente, a esfera individual do indivíduo e não de outro poder constitucionalmente constituído.
Dworkin (1986, p. 5-10) descreve esse fenômeno como sendo um desacordo teórico. Para o referido autor, o Direito é um conceito interpretativo porque entre os juristas há vários desacordos. Tais dissonâncias internas desse campo se subdividem em: proposições jurídicas e fundamentos do direito. A primeira é um discurso afirmativo ou negacionista sobre o Direito vigente[10], ao passo que o fundamento é o argumento que justifica a primeira, podendo este ser uma lei ordinária, a Constituição, a jurisprudência ou a doutrina.
Destarte, três são os tipos de desacordo em direito. Desacordo sobre fatos[11] e sobre Direito[12], e desacordos sobre moral e fidelidade[13]. O primeiro são divergências dos juristas sobre a configuração fática do caso concreto, desacordos sobre direito são divergências sobre a aplicabilidade das normas a determinado caso e, o mais importante, desacordos sobre a interpretação e aplicação das normas, nesse caso, há consenso sobre os fatos e aplicação de uma determinada norma, mas discrepa-se sobre o sentido e alcance desta. Tais desacordos decorrem, eventualmente, de erros cognitivos e má fé dos juristas.
Esse tipo de atitude “ativista” por parte do juiz é mais comum em lides nas quais as partes ostentam um grau mais ou menos elevado de desigualdade ou naquelas onde uma das partes demanda acerca de um assunto que guarda uma forte identificação com alguma experiência vivida pelo magistrado, que de alguma forma relaciona-se com suas paixões ou traumas (CALAMANDREI,1995).
Sobre isto, um juiz disse a Baptista Lupetti (2013, p. 283-284), em entrevista anônima concedida à pesquisa realizada no TJRJ sobre o presente tema:
“Você está estudando imparcialidade. Em tese, isso significaria que nós não temos posições prévias e ideológicas. E você também está estudando o papel social do juiz no processo. Então, eu não sei, mas talvez seja mesmo função do juiz fazer justiça social. Há muitos colegas que estigmatizam a mim e a outros magistrados que têm essa preocupação democrática, social, nos chamando de Robin Hood[14]. Para mim, dizer isso é já ter, que é a posição de manutenção do status quo da desigualdade. Eles dizem que nós temos uma ideologia, de proteção do pobre. Somos como Robin Hood. Mas eles também têm uma posição ideológica, que é a ideologia da conservação. Se é pra ter ideologia, eu tenho outra. Ora, tomar partido é para tomar pela parte mais fraca. Pra mim é assim que funciona. Senão mantem a estrutura perversa e desigual da sociedade e deixa tudo como está.
No caso descrito, o juiz avoca para si a competência de ente político, pois acredita em seu íntimo que é seu dever julgar de acordo com uma justiça “particular” e finalística socialmente, na qual sempre está com a razão a parte hipossuficiente, independentemente da existência de fundamentos jurídicos que justifique tal decisão.
Seguindo essa mesma lógica de decidir com base em sentimentos, mas mudando as motivações, ou em alguns casos até invertendo-a, estão algumas decisões no Direito Penal.
O julgamento de uma ação criminal, por exemplo, acerca de um crime de sequestro por um magistrado que seja amigo ou tenha um parente vítima do referido delito ou até mesmo que tenha sido a própria vítima, certamente, será permeado de parcialidade (NUCCI, 2020, p. 604).
Em regra, seus sentimentos ditarão seu entendimento em relação aos fatos, o que fará com que sua postura seja mais punitivista e carrasca, o que provavelmente não aconteceria se o processo fosse presidido por um magistrado que não tivesse passado por qualquer experiência semelhante.
Por analogia e, obviamente por razões distintas, pode-se afirmar que é perfeitamente viável que isso ocorra em outros âmbitos processuais.
Essa atuação parcial pode se refletir na atribuição de um peso maior às provas da parte eleita como a merecedora do direito ou no deflacionamento do valor atribuído a uma prova ou ao acervo probatório produzido pela parte prejudicada, em uma interpretação legal – ou até extralegal – mais favorável em prol daquela, ou até em aconselhamentos ostensivos. Ou simultaneamente as duas situações.
Por exemplo, em um litígio trabalhista, onde geralmente os polos processuais são ocupados por uma parte hipossuficiente, o trabalhador, e o outro por um empresário. Um juiz parcial de ideologia socialista – de esquerda – tenderá a beneficiar a parte mais vulnerável, no caso o trabalhador. E, dentro do mesmo exemplo, um juiz parcial de postura mais liberal – de direita –, provavelmente tenderá a interpretar a lei e os fatos de uma forma que favoreça o empresário, independente dos fatos postos.
Sobre essa postura supostamente altruísta do juiz em relação à parte hipossuficiente, critica (ARAÚJO, 2002, p.34)
O dever de justiça do juiz não pode ser confundido com a caridade. Ajudar as pessoas é ato de nobreza, sempre, mas é fato que não pode, nem deve ser misturado com a justiça, bem de vida que gravita em outra dimensão social que não a caridade.
Na prática, utiliza-se o inverso do modus operandi de um julgador imparcial. O julgador imparcial, se é que ele existe, decide com base na lei e depois fundamenta sua decisão, ao passo que o juiz parcial, escolhe o que acha mais correto utilizando um filtro moral-pessoal, e depois desenvolve uma argumentação “jurídica” que justifique sua escolha, afinal, “o papel aceita tudo”.
Nesse sentido, Halis (2010, p.152-155), descreve o que chama de teoria da racionalização posterior e mais:
A sentença ou acórdão não expressa as razões ”reais” da decisão, mas apenas aquelas socialmente aceitáveis. Por “reais” deve-se entender uma preocupação em pôr a prova os dogmas legais que “camuflavam” uma defasagem entre as formas prescritivas de atuação, as justificativas declaradas, e os comportamentos que eram, de fato, adotados pelos juízes. Isto é, envolve as razões efetivas da decisão. A “teoria da racionalização posterior” pode ser entendida como o processo de se racionalizar, utilizando fundamentos legais e socialmente aceitáveis, por meio de uma suposta operação lógico-racional consciente, as decisões que, de fato, foram determinadas primordialmente por elementos subjetivos [preferencias pessoais, referências cognitivas particulares, intuição, etc.] do julgador não declarados. Pode-se dizer que se fala da motivação em dissintonia com a fundamentação. Pode-se dizer que a primeira [motivação] determina a segunda [fundamentação], porém esta não explicita aquela, seja porque isso violaria a crença na objetividade, seja porque ela afetou o próprio “olhar” dirigindo-o de forma inconsciente [...] resta, então a pergunta: existe imparcialidade ou se está diante de uma racionalização da parcialidade do juiz?
Exatamente como explicita na, mesma linha, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Marco Aurélio de Mello, em sua fala em uma entrevista concedida à Revista do Instituto dos magistrados do Brasil, na qual o mesmo também demonstra absoluta normalidade ao descrever o processo cognitivo natural da prolação de uma decisão judicial:
O juiz não deve partir da lei para os dados do caso concreto. Há de ter presente o caso concreto e idealizar a solução que entenda mais justa, fazendo-o de acordo com a própria formação humanística. Somente após deve recorrer à dogmática, isso para consagrar a solução idealizada. Tudo ocorre a partir da sensibilidade do julgador (LUPETTI BAPTISTA, online)
Esta relação que se configura à margem da lei e, endossada amplamente por vários juristas, não se trata de um conluio entre o juiz e a parte, pelo menos não em todos os casos, pois a parte geralmente é passiva, não suplica qualquer tratamento diferenciado, até porque normalmente as pessoas no geral “confiam” no judiciário – apesar de esta realidade estar mudando[15] – e não esperam comportamentos antirrepublicanos dos órgãos da justiça.
Aliás, esse é um traço muito interessante e peculiar dos juízos parciais: tais posturas só são endossadas por quem é beneficiado por elas ou quando estão de acordo com seus valores e interesses, e talvez seja isso que falta na percepção de quem os naturaliza. Ou ainda, o “ aplauso de hoje do ativismo jurídico pode ter sua antítese amanhã, quando os que hoje festejam se sentirão prejudicados” (STRECK, TASSINARI e LEPPER 2015, p.59).
Não percebem, pois, o mal que isto faz à confiança e autonomia das instituições, fato que talvez seja um dos principais fatores da crise do judiciário.
Com relação à parte prejudicada, esta também percebe a postura do magistrado, porém, não pode fazer muita coisa, porque sua reação, certamente interferirá no curso do processo (LUPETTI BATISTA, 2013, p. 162)
Nesse sentido, para não parecer óbvio, cabe ressaltar que já existe previsão legal possibilitando correções a decisões equivocadas proferidas por magistrados, bem como eventuais ilegalidades. Porém, por motivos que estão para além do Direito elas não se efetivam.
Isto acontece, sobretudo, porquê a magistratura no Brasil está contaminada por um corporativismo que rechaça qualquer medida que ameace o enfraquecimento do seu poder de classe, tudo isso com a leniência dos outros poderes, que se aproveitam disso quando lhes convém e criticam quando lhes desfavorecem.
Como percebe-se, a personalidade do julgador bem como seus valores pessoais e consequentemente seu ideal de justiça, que não necessariamente estão de acordo com a lei, interferem na condução do processo e, muitas vezes, isso é feito de forma consciente.
Tal fenômeno pode ser percebido desde as instâncias ordinárias até o Supremo Tribunal Federal, em maior ou menor medida.
Observa-se, portanto, que a legislação que trata desses problemas é inapropriada para atingir o fim a que se propõe, pois, sua configuração não consegue abarcar e efetivamente restringir que fatores extra autos intervenham no processo. Há fragilidades no sistema que precisam ser aperfeiçoadas para o melhor controle da imparcialidade. É necessária, assim, reforma urgente diante do caráter essencial do tema.
Faz-se imperiosa ainda, nesse caso, a imposição de algum tipo de medida legislativa que disponha acerca de alguma consequência efetiva ao magistrado que agir com dolo ou culpa, dada a gravidade do problema. Até os médicos que lidam com a vida das pessoas diariamente podem eventualmente vir a serem responsabilizados pelos danos que causarem a seus pacientes, porque um juiz não seria passível de alguma sanção? Além disso, o que se torna o Direito sem a coercitividade? A propósito, ela vale para todos.
3.1.1.1.1 QUEBRA DA IMPARCIALIDADE PELOS VIESES COGNITIVOS.
No capítulo anterior, analisou-se a quebra de imparcialidade judicial consciente, isto é, aquela que se dá no plano da vontade, deliberada, seja para prejudicar ou beneficiar uma das partes no processo.
Neste tópico, será analisada a possibilidade da incidência dos vieses cognitivos na decisão judicial relevante que, conforme será demonstrado, se materializa em um plano inconsciente, ou seja, “num processo que não está diretamente acessível ao monitoramento ou controle da mente consciente’’ (HORTA, 2019, p.10).
Obviamente, não se trata de uma abordagem exaustiva ou completa, mesmo porque não é possível e nem relevante para o desenvolvimento deste trabalho a análise de todos os vieses e de todas as heurísticas.
Segundo Horta, “afortunadamente, nos últimos anos, a literatura jurídica brasileira tem começado a se questionar sobre a existência e os efeitos de vieses cognitivos na tomada de decisão juridicamente relevante” (2019, p. 5)
Nesse contexto, destacam-se os estudos acerca das heurísticas e vieses, que ganharam e vem ganhando cada vez mais destaque a partir das publicações de Daniel Kahneman e Amos Tversky, os quais revolucionaram os estudos acerca da teoria da decisão, gerando impactos em diversas áreas de conhecimento.
Em um desses estudos, sistematizou-se formas que descrevem o pensamento humano, preconizando que temos duas formas de pensar. De modo que a primeira é mais rápida e intuitiva, sendo regida praticamente por impulsos; enquanto a segunda é lenta, porém mais racional. Assim, respectivamente, temos o sistema 1 e sistema 2, ou sistema dual (KAHNEMAN, 2012, p. 19).
Diferentemente de épocas passadas, a modernidade exige que armazenemos uma infinidade de informações. Diariamente, os indivíduos têm que lidar com uma rotina de trabalho – as vezes mais de uma função ou emprego –, estudos, afazeres domésticos, transito, cuidar da alimentação, etc., rotina essa que nem sempre segue uma mesma ordem e por vezes temos que fazer ponderações antes de fazer ou não fazer algo, sempre no afã de otimizar nosso tempo e melhorar nossos ganhos.
Como nosso tempo é limitado, tendemos a evitar o seu desperdício e nesse ínterim, entre analisar, decidir e fazer, há situações em que nosso cérebro faz escolhas no modo automático, isto é, sem refletir muito. Normalmente isso ocorre em situações repetidas onde temos o controle da situação e sabemos que não há riscos maiores (THALER; SUNSTEIN, 2009). Nesse tipo de situação há uma preponderância da atuação do sistema 1.
Já nas decisões mais complexas, onde há grandes riscos envolvidos, e normalmente temos que fazer juízos sobre ganhos e perdas de forma minuciosa, há uma maior atuação do sistema 2 (KAHNEMAN, 2012).
O problema, no entanto, é que não é apenas o sistema 2 que tem em alguma medida controle sobre o sistema 1, “no sentido de deliberadamente formar padrões de raciocínio rápido e intuitivo”, o contrário também é verdade. O sistema 2 também sofre interferências – “às vezes muito sutis, mas determinantes” – do sistema 1, influências sobre as quais não temos controle, simplesmente porque na maioria das vezes sequer são perceptíveis (NEPOMUCENO, 2019).
A essas respostas rápidas que costumamos dar a perguntas extremamente complexas chamamos de heurísticas, isto é, atalhos mentais que simplificam a tomada decisão.
Nestes termos:
A definição técnica de heurística é um procedimento simples que ajuda a encontrar respostas adequadas, ainda que geralmente imperfeitas, para perguntas difíceis. A palavra vem da mesma raiz de heureca” (KAHNEMAN, 2012, p. 127).
Assim sendo, essas decisões impensadas, automáticas, quando tomadas em alguns contextos não trazem maiores problemas e muitas vezes até nos ajudam a manter o fluxo da vida. Imagine que todas as vezes que fossemos tomar decisões simples como pegar um ônibus tivéssemos que fazer uma análise minuciosa dos riscos ao tomar tal atitude. Sem dúvida a vida moderna com todas as suas peculiaridades seria inviabilizada.
No entanto, muitas vezes essas simplificações podem ocorrer em situações complexas, criando “vieses” no processo decisório, os quais podem implicar sérios problemas na tomada decisão (BAZERMAN, 2014). Assim, o sistema 1 “é verdadeira usina de enviesamentos, distorções e erros em cascata. Em outras palavras, “o sistema I manipula as informações, longe do abrigo seguro da prudência, incorrendo em inconsistências e ilusões e controle” (FREITAS, 2012, p.228).
Assim, na esteira de Khaneman e Haselton, Nepomuceno conceitua o que são os vieses:
Vieses são tendências psicológicas que produzem representações distorcidas de dados e eventos, consequência da influência de sentimentos na percepção e no raciocínio. São erros de percepção sistemáticos, normalmente despercebidos, que atuam para rapidamente preencher lacunas decorrentes das contingências da vida e auxiliar na tomada de decisão rápida. Mas vieses não são desajustes neutros no processamento de informações. Ao contrário, possuem vetores emocionalmente constituídos – e na maioria das vezes não percebidos – por trás da tendência psicológica que estabelece, notadamente questões relacionadas à autopreservação emocional, como autoestima e autoafirmação (2019, p. 81)
Nesse sentido, experimento realizado por Plassman et al. demonstra como situações do dia a dia influenciam nossas decisões[16]. No citado estudo pediu-se que os participantes experimentassem tipos de vinho, informando-os apenas o preço de cada: um caro, outro barato. Enquanto saboreavam bebidas que, ao contrário da realidade, acreditavam serem diferentes e vendidos a preços diferentes, seus cérebros eram analisados por meio de ressonância magnética funcional (2008, online).
Os resultados mostraram que o aumento do preço de um vinho aumenta os relatos subjetivos de prazer do sabor, isto é, que o vinho mais caro na percepção dos avaliados era o mais agradável, bem como a atividade dependente do nível de oxigênio no sangue no córtex orbitofrontal medial, uma área que se acredita codificar amplamente o prazer experimentado durante tarefas experimentais.
Os operadores do direito, sobretudo os que administram a justiça, humanos que são, por conseguinte, não estão livres desses erros sistemáticos e inconscientes, “por maior força que se queira destinar para os comandos externos que determinam a imparcialidade” (FREITAS, 2013, p,233). O problema maior disso tudo é que inevitavelmente esses erros atingirão pessoas e interesses que se distinguem da pessoa que os “cometeram".
Dentre tantos outros, o viés de confirmação é considerado o mais comum e também o mais importante[17]. Tal fenômeno, consiste em uma tendência generalizada da mente em buscar no ambiente informações que confirmem nossas expectativas. Assim, “você quer estar certo sobre como vê o mundo, então procura informações que confirmam suas crenças e evita provas e opiniões contraditórias” (MACRANEY, 2012, p. 36).
Para Nepomuceno (2019), representa a tendência que a mente humana apresenta para identificar, interpretar e processar informações seletivamente de modo que elas se amoldem às nossas convicções, também para aceitar mais facilmente a veracidade – ou pelo menos a plausibilidade – dessas mesmas informações, bem como para não perceber ou mesmo ignorar informações que vão contra as nossas expectativas, e também uma propensão a desconfiar mais dessas informações e, consequentemente, filtrando-as de forma mais rigorosa. Resumidamente: “vemos mais facilmente o que queremos ver”.
Nessa perspectiva, destaca Paola Wjciechowki (2018, p. 49):
O viés confirmatório poderá se manifestar durante toda a instrução processual, e, ainda, guiar a forma através da qual o julgador interpretará as evidências colhidas. Nesse ponto, importante ressaltar que todo o processo interpretativo – tanto de provas quanto de correntes jurisprudenciais ou posicionamentos doutrinários – pode ser permeado pelo viés confirmatório.
Destaca-se também outro viés muito comum, o efeito-Halo, que consiste em uma tendência dos indivíduos em julgar, a partir de uma característica especifica situações, coisas e pessoas de uma maneira generalizada e produzindo, em decorrência, uma visão estereotipada do todo.
Sobre esse viés, Kahneman afirma:
O efeito halo ajuda a manter as narrativas explanatórias simples e coerentes exagerando a consistência das avaliações: pessoas boas fazem apenas coisas boas e pessoas ruins são todas ruins. A afirmação “Hitler amava cães e crianças pequenas” é chocante independentemente de quantas vezes você a escute, pois, qualquer traço de bondade em alguém tão cruel viola as expectativas criadas pelo efeito halo. As inconsistências reduzem o conforto de nossos pensamentos e a clareza de nossos sentimentos. Uma narrativa convincente fomenta uma ilusão de inevitabilidade (2012, p. 250).
Visualiza-se facilmente o potencial de influência do efeito-halo na interpretação de depoimentos, de argumentos e de pessoas em casos judiciais. A depender de quem é o réu, de quem é o autor, de quem são seus procuradores, bem como as testemunhas, a depender do que elas representam para quem interpreta e avalia seus depoimentos e argumentos, ou seja, a depender de qual é o estereótipo em que o julgador – ou julgadora – enquadra cada pessoa, considerando uma característica desta, ou uma atitude praticada por ela em juízo ou fora dele, uma frase dita na instrução do processo ou mesmo fora, ou ainda um posicionamento político, tudo isso tem grande potencial para, até de maneira isolada, definir globalmente a pessoa em questão e, por conseguinte, afetar toda a análise da credibilidade e da coerência de seus argumentos e declarações (NEPOMUCENO,2019, p. 90).
Tal situação se agrava ainda mais devido à responsabilidade que este campo detém em promover à justiça e proteger Direitos fundamentais ao mesmo tempo em que tem que lidar com a falibilidade humana, com a escassez de recursos, além de intenções espúrias que solapam sua integridade para atender interesses igualmente espúrios.
A que se atentar ainda para a importância da incidência desses vieses na esfera criminal. Assim, aduz Rosa:
Ao se considerar factível, para dizer o mínimo, a hipótese do Efeito Halo na ausência de provas concretas a fundamentar um juízo positivo de responsabilização criminal de determinada pessoa que se “intui” seja autora do fato criminoso, se recorra a seus antecedentes (tangíveis) para se conformar mentalmente essa hipótese; que na ausência de segurança sobre a credibilidade de declarações prestadas em determinado processo, se suponha a veracidade ou não, a partir da postura comportamental do declarante – nervosismo, calma, etc.–; que na ausência de compreensão sobre o que constitui um comportamento suspeito para fins de uma abordagem policial, utilize-se como critério – absurdo, mas comum em uma sociedade racista – a cor da pele ou vestes; que na ausência de indícios suficientes acerca da participação de determinada pessoa em um caso investigado, leve-se em consideração sua posição social; entre tantos outros exemplos a denunciar a falibilidade do sistema de justiça criminal. Lembre-se: a correlação é o de menos e o fenômeno é involuntário, inerente à condição humana (2020, online).
Desse modo, a imparcialidade judicial, nota essencial à jurisdição, parece estar maculada, só que desta vez por um inimigo inconsciente. Por isso, não se pode continuar a ignorar a hipótese real e ameaçadora dos vieses cognitivos. Torna-se, assim, imperiosa a implementação de medidas enérgicas e urgentes. Afinal, problemas complexos não desaparecerão com soluções fáceis.
Assim sendo, nem tudo está perdido. Adam Benforado, em sua obra Unfair: The New Science Of The Criminal Justice[18] (2016), resumidamente, sugere um modelo de audiências “às cegas” para o procedimento criminal nos EUA (Estados Unidos da América) mas que pode ser adaptado para outras esferas processuais, onde os juízes não visualizam as partes em juízo (LIMA, 2020, online).
Assim, os juízes não sabem se as partes são negras ou brancas, se são homens ou mulheres, ricas ou pobres, se são feias ou bonitas, altas ou baixas, se são gordas ou magras. Aduz o autor que somente dessa forma se produziria um procedimento ideal e livre de vieses e, ainda assim, apenas se minimizaria sua incidência e, para tanto, audiências deveriam ser realizadas sempre em ambientes simulados.
Isso se justifica pelo fato de já ser de conhecimento das Ciências cognitivas que detalhes, como qualquer micro expressão facial, corte de cabelo ou até as vestimentas, podem gerar associações automáticas no julgador e, portanto, influenciar de forma relevante na decisão.
Na mesma linha, o processualista brasileiro Costa sugere, em modelo processual desenvolvido pelo próprio, algumas práticas a serem adotadas no processo brasileiro para preservar a inderrogável imparcialidade do juiz. Quais sejam: recomendação para que os juízes não sentenciem na própria audiência; diminuição da pressão por produtividade judicial; aumento do número de juízes; as regras que concretizam o princípio da identidade física devem ser revogadas, etc., (2016, p.141).
4.RAZÕES PARA UMA DEFESA INTRANSIGENTE DA IMPARCIALIDADE
Durante toda a sua extensão, este trabalho monográfico trouxe várias discussões que sugerem à necessidade de se conferir ampla atenção ao estudo da imparcialidade.
Não obstante, mais uma vez, se enfatiza sua importância, pois nunca será demais, dada a sua essencialidade. Por isso, neste capitulo 4 far-se-á uma sustentação consistente na elevação da imparcialidade ao patamar de direito fundamental.
Depois, se ressaltará a importância de se diferenciar escolha de decisão, vinculando definitivamente esta última ao oficio do julgador
Finalmente, será discorrido acerca da importância da legitimidade para a democracia, ressaltando os riscos da sua falta.
4.1 IMPARCIALIDADE JUDICIAL COMO DIREITO FUNDAMENTAL
O processo judicial, seja contencioso ou não, indubitavelmente é o meio mais razoável para a concretização do Direito na prática. Afinal, de que adianta, pois, um complexo de regras que regulam a vida, se não se dispõe de um aparato efetivo que garanta ou, quando menos, busque a sua correta aplicação?
Sem ele, seria improvável a resolução, tanto quantitativa como qualitativamente, dos conflitos inerentes a uma sociedade global como a nossa, e o mais provável é que essa sociedade já estivesse extinta há muito tempo ou pelo menos não existiria como nos moldes atuais.
Contudo, tal fenômeno não pode se materializar de qualquer maneira. É preciso que sejam observados alguns critérios extrínsecos a ele, ou seja, o processo não é um fenômeno que se realiza por si só. Ao contrário, além de suas regras intrínsecas, deve-se observar no seu transcorrer outros critérios subjacentes e de maior peso.
Desse modo, tal metodologia vincula não só sua aplicação, atua desde à sua criação no âmbito do poder legislativo, o qual é responsável pela “pauta normativa a ser concretizada mediante procedimentos capazes de garantir a ampla fruição de direitos fundamentais processuais componentes da cláusula do devido processo” (HATZ, 2019, online).
No caso do ordenamento jurídico brasileiro esse limitador são os direitos fundamentais e a Constituição. Tal preceito atende o comando expresso no art. 5º, LVI, da CF/88 que consagra não somente um processo, mas um devido processo legal e que está previsto igualmente em uma série de tratados convenções internacionais de direitos humanos[1].
Assim, é a partir desse dispositivo que nasce o princípio do devido processo legal que, resumidamente, é o direito fundamental e subjetivo de estar em juízo e de se defender amplamente e em pé de igualdade, valendo-se de todos os meios concretos e efetivos para a solução justa do conflito, em um procedimento público e contraditório previsto previamente em lei, de modo que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado dê, a cada um, o que é seu tempestivamente (SILVA, 2005, p. 431-432)
Para explicitar o conteúdo e melhorar a compreensão acerca do que vem a ser os direitos fundamentais, recorre-se à explicação de Sarlet, para o qual:
Os direitos fundamentais seriam pautas ético-políticas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana, positivadas no direito interno – geralmente, no plano constitucional – de um determinado país. Assim, quando os direitos do homem se positivam, adquirindo categoria de verdadeiros direitos processualmente protegidos, passam a ser direitos fundamentais em um determinado ordenamento jurídico (1998, p. 47)
Nota-se com isso que, para que um direito tenha status de direito fundamental não basta estar na Constituição. É imprescindível que o seu conteúdo esteja intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, mesmo que funcione apenas como um instrumento para a concretização desse princípio (LIMA, 2013, p. 52)
Assim, o devido processo legal é direito fundamental de primeira dimensão, pois ocupa a zona das liberdades civis e políticas, tanto é que é tratado no Capítulo I do Título II da CF/1988 (Dos direitos e deveres individuais e coletivos), configurando-se verdadeira garantia individual de liberdade dos jurisdicionados, interpondo-se entre o juiz e as partes para frear o exercício abusivo da função jurisdicional pelo Estado ou por quem lhe faça às vezes (COSTA, 2018, online).
Destarte, o devido processo legal é, simultaneamente, um direito fundamental por si só (I); meio necessário pelo qual também se efetivam outros direitos fundamentais (II); e que, igualmente, deve transcorrer observando esses mesmos direitos fundamentais (III).
Ratz (2019, online) aprofunda esse raciocínio afirmando ainda que o processo como direito fundamental é condição para a tutela da liberdade e desenvolve-se em pelo menos três perspectivas: (I) como um direito de resistência, na medida em que é condição necessária para a intervenção estatal na esfera jurídica de qualquer pessoa; (II) como uma garantia do modo como os direitos serão tutelados, interpondo-se entre o direito à tutela jurisdicional e o poder jurisdicional exercido em regra pelo Estado; (III) como uma garantia contrajurisdicional, na medida em que, no seu âmago, é composto por uma série de direitos que restringem e limitam o poder jurisdicional.
Destaca-se que qualificar um dado direito como fundamental não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica e, portanto, inócua, desprovida de qualquer consequência jurídica. Ao contrário, a constitucionalização do direito promoveu um aumento de sua força normativa formal e material, com inúmeras consequências práticas daí advindas, sobretudo no que se refere à sua efetividade, aqui considerada como a “materialização da norma no mundo dos fatos, a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social” (BARROSO, 1996, p. 83)
Assim, é que se reafirma mais uma vez e mais do que nunca. Para que tudo isso seja concretizado, o processo há que necessariamente ser conduzido com imparcialidade. Dito de outro modo: o processo não é um locus político-deliberativo, onde se compensa desigualdades com distribuição de renda. Não quer dizer muito menos que o juiz pode corroborar com interesses espúrios de poder.
“Enfim, o ideal é que o autor e o réu tenham iguais recursos de tempo, dinheiro e habilidade”. Contudo, caso isso não ocorra não pode o juiz recorrer à sua consciência para, à margem da lei, reduzir essas desigualdades.
Nesse sentido, não há que se falar aqui em hierarquia de direitos fundamentais, pois como bem afirma Lima ao delinear sua crítica[2] à teoria geracional dos direitos fundamentais, ao afirmar que tal definição geraria essa distorção, aduz que:
Não há qualquer hierarquia entre essas dimensões. Na verdade, elas fazem parte de uma mesma realidade dinâmica. Essa é a única forma de salvar a teoria das dimensões dos direitos fundamentais. Note-se, por exemplo, como é difícil desvincular o direito à vida (1ª geração) do direito à saúde (2ª geração), a liberdade de expressão (1ª geração) do direito à educação (2ª geração), o direito de voto (1ª geração) do direito à informação (4ª geração), o direito de reunião (1ª geração) do direito de sindicalização (2ª geração), o direito à propriedade (1ª geração) do direito ao meio ambiente sadio (3ª geração) e assim por diante (p. 65-68).
Nessa linha, é possível afirmar que direitos sociais e direitos civis e políticos não se excluem, quando na verdade se complementam. São uma unidade indivisível e indissociável.
Levanta-se essa questão pois há uma parte na doutrina que defende uma postura atuante socialmente, na qual o órgão julgador é incumbido por uma pretensa missão de fazer justiça social custe o que custar. Assim, defende-se amplos poderes discricionários, através dos quais se concretizaria a essa justiça.
É assim que se posiciona Moreira:
A ideia de função social do processo civil aspira, de um lado, a busca por maior igualdade material, eliminando – ou, quando menos, atenuando – diferenças de tratamento baseadas em condições socioeconômicas, culturais, raciais, religiosas, políticas e de classe, e, de outro, a orientação do ordenamento jurídico no sentido da primazia dos interesses coletivos sobre os interesses estritamente individuais (1985, p. 140-150)
É preciso reiterar, no entanto. Não existe qualquer hierarquia entre direitos fundamentais de primeira e segunda dimensão, ou terceira ou quarta. Os juízes não podem manipular o conteúdo do processo para, de acordo com suas vontades individuais decidir o rumo das partes. Equalizar a relação processual não significa dar carta branca à parte mais fraca, bem como não significa apoiá-la incondicionalmente por causa de sua condição.
Como dito anteriormente, Direito e processo possuem uma função social, que, porém, não se restringe à justiça social, a qual também é um objetivo que deve ser buscado, mas não o único. E essa busca não pode ser feita de qualquer maneira, como também dito no início deste tópico, deve-se respeitar às regras do jogo. Pois um jogo com cartas marcadas e com resultado pré-definido, não é um jogo, mas, apenas uma peça teatral.
Não obstante, uma das principais funções do direito é justamente promover a paz e solucionar conflitos. Assim, pergunta-se: a paz é alcançada através da injustiça? Transferindo bens ilegítima e coercitivamente de uns para dar a outros? A resposta é óbvia. Não. Porém, para que isso seja evitado, é preciso questionar além do óbvio.
Conferir crédito à proposta do citado autor acaba por solapar em sua essência a concretização do direito material subjetivo e da ordem jurídica como um todo, pois sua promoção se mostra viciada desde o princípio. Visto que não há como se atingir os fins certos pelos meios errados, e vice-versa.
Extrai-se, portanto, de todo o exposto, que a ausência de imparcialidade judicial lesiona frontalmente o direito fundamental ao devido processo legal e que, sendo este lastreado pela ampla defesa e o contraditório, é redundante dizer, em decorrência disso, também restam estes violados, e com isso a liberdade individual sofre uma rasteira covarde, logo de quem deveria protegê-la
Não há, portanto, como não elevar por “extensão” à imparcialidade judicial à categoria de direito fundamental, situado na dimensão dos direitos civis e políticos, e mais, verdadeiro axioma e corolário do Estado Democrático de Direito.
Pois, como bem aduziram Lima e Scarlet: para que um direito alcance o status de direito fundamental basta que esteja positivado, mesmo que implicitamente na Constituição Federal, e guarde intima relação com a ideia de dignidade da pessoa humana, mesmo que seja somente como uma condição para viabilidade desse princípio.
Assim, não há como negar que para uma justa realização do devido processo legal com todos os seus desdobramentos, é imprescindível que este seja presidido por um juiz imparcial.
4.1.1 JUIZES NÃO ESCOLHEM, JUIZES DECIDEM
Com o fim do período ditatorial, a redemocratização e o advento de uma nova constituição, que trouxe em seu conteúdo um rol de direitos humanos fundamentais de uma sofisticação nunca antes vista na história, o judiciário brasileiro passou a ter papel fundamental na vida dos cidadãos, papel este que em outros momentos tinha pouca expressividade.
Essa nova Constituição absorveu a concepção bastante difundida em todo o mundo no período pós-segunda guerra, principalmente na Europa, que é a ideia de uma constituição forte e preocupada com questões éticas, além da supervalorização dos princípios, contrapondo-se, portanto ao positivismo clássico, na concepção que ficou conhecida como Neoconstitucionalismo (SARMENTO, 2010, p. 233).
Deste modo, essa nova face do constitucionalismo é marcada por um empoderamento do judiciário, que seria o responsável pela concretização desse projeto constitucional (STRECK, 2011, p. 63)
Aos juízes foi atribuída a complexa tarefa de efetivar não só esses direitos fundamentais, mas também a de expurgar, por meio do controle de constitucionalidade, qualquer ato legal que viesse a colidir com o texto constitucional.
Tal incumbência permitiu que o judiciário pudesse ultrapassar a barreira de mero guardião da lei maior e passar a também interpretá-la, ou seja, dizer o que é a constituição, já que os princípios passaram a ter influência inafastável à jurisdição constitucional.
Ademais, esse movimento se caracteriza por outros elementos:
Reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização de sua importância no processo e aplicação do Direito; rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, teorias da argumentação, etc; constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; reaproximação entre Direito e Moral; judicialização da política e das relações sociais, com deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário. (SARMENTO, 2010, p. 233).
Assim, pode-se dizer que hodiernamente o sistema jurídico brasileiro ainda se rege sob o prisma do paradigma neoconstitucionalista.
Com efeito, a partir disso, cresce o fenômeno da judicialização que, para Streck, Tassinari e Lepper (2015, p.56), pode ser concebido como uma questão social. Nesse sentido, sua materialização não depende da vontade do órgão judicante. Ao contrário, é consequência uma série de fatores originalmente alheios à jurisdição, possuindo “seu ponto inicial em um maior e mais amplo reconhecimento de direitos, passando pela ineficiência do Estado em implementá-los e culminando no aumento da litigiosidade”.
Em suma, é o crescimento acentuado da demanda de agentes sociais acionando o judiciário, inclusive para resolver causas de caráter político. Ressalta-se que a judicialização, porém, é um fenômeno contingente, isto é, não necessariamente ocorre.
É dentro desse contexto que se questiona qual o papel e os limites de atuação do poder judiciário, que como elemento necessário em uma democracia constitucional deve se submeter a limites.
Precipuamente, há que se destacar que o exercício da função judicante não se dá de forma aleatória. Ao contrário, deve-se observar o ordenamento jurídico posto a fim de desvelar o direito em abstrato para que o juiz o aplique, com a maior justiça possível, ao caso concreto, devendo “prevenir ou reprimir qualquer ato atentatório à dignidade da justiça” (GRECO FILHO, 1999, p. 225).
Nesse sentido, toda decisão judicial deve – ou ao menos deveria – se pautar, sobretudo, pelos princípios da supremacia da Constituição e sua força normativa, os quais são verdadeiros pontos de apoio e condição e de validade de todas as normas jurídicas, na medida em que é a partir dela que se desencadeia o processo de produção normativa (MENDES, COELHO e BRANCO, 2010, p. 58).
Segundo Streck (2011, p. 586), a partir do surgimento dos neoconstitucionalismos e pós-positivismos, um dos grandes desafios enfrentados pelo Direito tem sido a preservação de sua própria autonomia diante das ameaças do que chama “predadores”, subdividindo-os em endógenos e exógenos.
À vista disso, os predadores endógenos, ou internos, dentre outros, seriam o senso comum doutrinário, o ensino jurídico simplificado, as teses relativistas, e principalmente, a discricionariedade e o ativismo judicial. Enquanto os predadores exógenos, ou externos, seriam a moral, a economia e a política.
Assim, inegável é que a atividade da interpretação jurídica no Brasil alcançou um nível de arbitrariedade alarmante”. Tanto é que tal questão tem sido expressada frequentemente em estudos sobre hermenêutica constitucional país a dentro, como se observa nos trabalhos de Marcelo Neves, Humberto Ávila, Lenio Streck, Eros Grau e Virgílio Afonso da Silva, dentre outros. Expressões como “ativismo judicial”, “decisionismos”, “caos interpretativo”, “solipsismo”, “sincretismo metodológico” se tornaram muito comuns nas discussões acadêmicas, na busca por soluções (NEPOMUCENO, 2019, p. 15)
Tal reação se explica sobretudo devido ao avanço da jurisdição por zonas originalmente de competência dos poderes executivo e legislativo, solapando, notoriamente, à divisão dos poderes, à pretexto de se fazer uma suposta justiça social em áreas negligenciadas por aquelas instancias, num fenômeno denominado ativismo judicial.
Sobre isso afirmam Streck, Tassinari e Lepper:
Trata-se de conduta adotada pelos juízes e tribunais no exercício de suas atribuições. Isto é, a caracterização do ativismo judicial decorre da análise de determinada postura assumida por um órgão/pessoa na tomada de uma decisão que, por forma, é investida de juridicidade. Com isso, dá-se um passo que está para além da percepção da centralidade assumida pelo Judiciário no atual contexto social e político, que consiste em observar/controlar qual o critério utilizado para decidir.
Garapon (1998, p. 20-25) afirma que a atuação jurisdicional sofre uma hipertrofia de tal forma que o poder judiciário passa a ser considerado como derradeiro ocupante de uma função de autoridade – “clerical e até paternal”– preterida por seus antigos titulares”. Assim, para o autor, “à noção de ativismo judicial e de governo de juízes subjaz uma tentativa de redenção, pela qual o juiz torna-se, inclusive, árbitro dos bons costumes”.
De acordo com Neto (2015, online), é inconcebível que em um estado democrático de Direito decisões judiciais e seus resultados dependam, em última instancia, da vontade de juízes. Isso agride não só a democracia, como torna o resultado das demandas imprevisível, confere poder em excesso aos juízes e, finalmente, torna o Poder Judiciário não passível de controle pela sociedade.
Desse modo, de que maneira os maus juízes, ou seja, os juízes parciais, ou mesmo os de má-fé, podem ser confrontados e fiscalizados pela sociedade, uma vez que podem se camuflar nas sombras de uma linguagem empolada ou de uma retórica esvaziada e, enfim, realizar julgamentos enviesados mediante o emprego da sua vontade?
Assim, segundo Dworkin, “a política constitucional tem sido atrapalhada e corrompida pela ideia falsa de que os juízes – se não fossem tão sedentos de poder – poderiam usar estratégias de interpretação constitucional politicamente neutras” (2007, p. 57).
É nesse contexto que Streck (2012) ressalta a importância da atuação doutrinária, do campo jurídico e da sociedade civil de uma maneira geral de com um discurso crítico às práticas ilegítimas, constranger e causar desconforto cognitivo nos juízes, se é que isso é possível.
Embora existam várias ideias a respeito de como deve ser o processo de decisão, fato é que todas devem necessariamente corroborar o fato de que a resposta em direito constitucionalmente adequada em hipótese alguma pode depender da consciência do juiz, afinal, decidir não é, definitivamente, escolher.
Aliás, critica-se, com razão, que apenas “deve ser” e não que seja de fato. É inconcebível, na verdade, que o Direito continue confiando tão cegamente em pessoas, quando na verdade já faz parte do próprio senso comum a ideia de finitude compreensiva, bem como já é lugar comum nas ciências cognitivas a ideia de racionalidade limitada.
4.1.1.1 A LEGITIMIDADE DA ORDEM JURIDICA E A DEMOCRACIA
Ainda nas sociedades primitivas observa-se um movimento natural do corpo social que, temendo o arbítrio, se posicionava incisivamente contra a centralização do poder. Assim, o líder do grupo que tinha como função primordial, dentre outras, a solução de conflitos, era mantido submisso à vontade da comunidade. Caso contrário, o abandono ou mesmo sua morte eram destinos inevitáveis.
Learned Hand, um dos melhores e mais famosos juízes dos EUA, “dizia ter mais medo de um processo judicial do que da morte ou dos impostos” (DWORKIN, 2007, p. 4).
O mesmo Dworkin (2007) afirma, nesse sentido, que os processos judiciais não podem ser analisados apenas sob a perspectiva econômica ou mesmo de liberdade, há valores maiores e latentes. Esses valores consistem em uma expectativa social de que daquela lide resulte em um estado de coisas justo.
Assim, quando um magistrado profere uma sentença não define apenas quem vai ganhar ou perder, mas quem agiu de boa-fé, quem cumpriu com suas obrigações e quem, de propósito, por cobiça ou insensibilidade, violou o espaço do outro, ou exagerou na responsabilidade dos outros para consigo mesmo.
Desse modo, se dali resulta injustiça, a comunidade terá logrado êxito em causar um dano moral a um de seus membros, por ter-lhe imposto à pecha de fora-da-lei. O caso é mais grave quando se condena um inocente, mas já é bastante significante quando um queixoso com alegação justa não é ouvido no tribunal, ou quando um réu dele sai com estigma imerecido.
Essa reflexão é importante pois revela que os resultados da atividade judicante, sobretudo a malconduzida, produzem efeitos diretos nas relações sociais para além das partes e porque afeta a legitimidade da ordem jurídica.
Sem querer entrar no mérito de discussões filosóficas acerca de onde vem a legitimidade do Direito, é inegável que sua influência produz efeitos que o atingem e está ligada na percepção da sociedade, em maior ou menor medida, com a ideia de justiça e legalidade.
Assim, quando a justiça não é alcançada judicialmente o direito não se ajusta com aceitação popular, a mesma que o legitimou. Como afirma Habermas (1997, p. 168), “a fé na legalidade só pode criar legitimidade se se supõe de antemão a legitimidade da ordem jurídica que determina o que é legal”. Acreditar no direito, significa assim, uma condição de manutenção da sua própria sobrevivência.
Na realidade, ao se observar a maioria das rupturas jurídicas ocorridas no decorrer da história, perceberemos que todas se justificaram pela insatisfação dos que obedecem à vista daqueles que mandam. Foi assim na Revolução Francesa, do mesmo modo na Revolução Cubana e provavelmente será nas próximas rupturas que ocorrer.
Assim, o ponto que se busca dar ênfase é o fato de que o direito vigente será mais respeitado se for coerente e íntegro, e se concretizará primeiramente no seio da atividade jurisdicional para, posteriormente, com forte adesão formar o todo.
O preambulo do Código de Ética afirma esta premissa, aduzindo:
A necessidade de cultivar os princípios éticos implica, dentre outras coisas, na própria honorabilidade da Justiça e na obrigação de defender os valores constitucionais. A autoridade moral do magistrado é indispensável para o próprio Estado Democrático de Direito, que conferiu legitimidade ao ingresso do magistrado por concurso público (SEREJO, 2001, p. 17)
Como se vê, entretanto, é delineado um perfil que confere aos juízes grandes poderes, mas que também lhes exigem grandes deveres, e talvez aqui esteja a explicação para não estarmos satisfeitos como nação. Há claramente uma missão que nem o humano mais superdotado conseguiria cumprir. Talvez um ou outro, mas seria uma exceção, isto é, seria para poucos.
Nesse sentido, há déficit no número de juízes proporcionalmente ao número de processos. Desse modo, é necessário não só um sujeito dotado de competências cognitivas e morais sobrehumanas como também físicas. Então vem a morosidade.
Fala-se no brasil em crise no judiciário. Como se esse braço do poder não integrasse o país ou como se a crise não atingisse toda a nação. Como se ambos não partilhassem as mesmas conquistas e derrotas.
A culpa é da sociedade, mas também das instituições, e de quem coordena essas instituições. Afinal, quem ocupa tal posto é porque quis. Sabia previamente do tamanho da responsabilidade. Ora, se “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, já dizia o Tio Ben.
À vista disso, e voltando à questão das sociedades primitivas, infere-se que nesse ponto, a sociedade atual não difere muito da forma como estas enxergavam o poder. O que muda, porém, é o modo de reação e de controle efetivo.
Assim, buscou-se demonstrar que legitimidade importa, pois, só através dela o Direito subsiste de forma sadia. Sem legitimidade o poder das autoridades perde a voz, e quando isso ocorre não há lei que impeça a autotutela.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A imparcialidade judicial consiste em um julgamento que confere às partes tratamento igualitário, devendo o julgador se manter equidistante destas, sem a possibilidade de favorecê-las indevidamente ou causá-las prejuízos a fim determinar o resultado do processo, bem como observando todos os comandos que emanam da das leis e da Constituição.
Sendo esta, atributo essencial da justiça e dever dos juízes, é garantia dos jurisdicionados e da própria manutenção do Estado Democrático de Direito. Isso significa que as decisões judiciais não podem ser fruto da vontade individual, da moral, da ideologia, ou da subjetividade do julgador.
Possui previsão Constitucional, além de estar prevista em uma série de tratados internacionais de Direitos Humanos.
É fato que não há um conceito de justiça universal aplicável a todo e qualquer caso concreto. Porém, nem por isso as decisões judiciais dentro de um mesmo ordenamento jurídico podem ser algo volátil ou até mesmo contraditórias. Há que existir um parâmetro universal prévio.
No estado democrático de Direito o julgador não pode passar por cima das regras pré-estabelecidas, aprovadas mediante um processo formal e solene para, como um déspota, decidir de forma subjetivista, com base naquilo que quer e entende justo no seu íntimo, mas que diverge da vontade da sociedade, da legalidade e da Constituição. Não se pode permitir que sujeitos investidos na magistratura ditem a vida das pessoas se baseando em si mesmo.
O dever de imparcialidade, no entanto, não significa que o magistrado deva ser neutro, dado que é impossível tal condição à natureza humana, que por natureza toma partido em toda e qualquer situação mesmo que isso não seja demonstrado. Assim, é licito ao magistrado cultivar sua intimidade, suas crenças, valores, preferência, opiniões, o que não se deve é decidir com base nisso e contra a lei (sic).
O poder judiciário pode e deve garantir a igualdade prevista constitucionalmente aos mais vulneráveis, porém tal princípio rege-se por duas vias, sendo uma positiva e outra negativa, e, portanto, uma atuante e outra absenteísta, mas sem desvirtuar a justiça invadindo e lesionando à esfera individual material dos ditos hipersuficientes ilegítima e ilegalmente, permitindo aos fatos dizer quem está com a razão no sentido jurídico, sob pena de ser arbitrário.
Por “extensão” a imparcialidade judicial, sem a qual não existe um devido processo legal, é um direito fundamental situado na dimensão dos direitos civis e políticos, e mais, verdadeiro axioma e corolário do Estado Democrático de Direito, a qual não está nem acima nem abaixo de outros princípios constitucionais e outros direitos fundamentais.
Toda atividade jurisdicional deve ser fundamentada e coerente, pautando-se pelas regras gerais do ordenamento e sobretudo na Constituição. Assim, tal oficio deve buscar a resposta em direito constitucionalmente adequada, que em hipótese alguma pode depender da consciência do juiz, afinal, decidir não é, definitivamente, escolher.
A legitimidade do poder judiciário tem reflexos sociais que atingem a percepção dos indivíduos. Assim, quando a justiça não é alcançada judicialmente o direito não se ajusta com a aceitação popular, a mesma que o legitimou.
Neste contexto, o objetivo deste estudo foi verificar, à luz de uma análise crítica e interdisciplinar pautada na realidade prática, a viabilidade do cumprimento do dever de imparcialidade por parte do magistrado.
Grande é a responsabilidade que carrega um juiz quando decide, pois, aquele ato decisório produzirá efeitos definitivos na vida de uma ou várias pessoas. Poderá o juiz mudar drasticamente a destino de alguém para melhor e como também para pior. Se este acerta, justiça feita, nem todos ficarão felizes, mas sua consciência permanecerá tranquila, pois sabe que fez o que tinha que ser feito, independente do que seu íntimo acredita.
À vista disso, concluiu-se, no entanto, que a personalidade do julgador bem como seus valores pessoais e consequentemente seu ideal de justiça, que não necessariamente estão de acordo com a lei, interferem de forma decisiva na condução do processo e, muitas vezes, isso é feito de forma consciente. De modo que este primeiro escolhe o resultado desejado e depois busca argumentos jurídicos para comprovar o seu ponto de vista. Sendo que alguns juízes chegam a assumir isso publicamente.
Constatou-se que ele tenderá a se inclinar mais ou menos para um lado ou para outro dependendo da sua visão de mundo, suas crenças e valores, em suma, sua afetividade. Porém, tende majoritariamente a ajudar a parte mais fraca.
Assim, mostra-se equivocada a visão do senso comum que enxerga no magistrado uma fonte ilimitada de racionalidade e objetividade e uma das razões para que isso aconteça reside na crença bastante difundida pelo discurso jurídico que funciona como um mecanismo estruturante do sistema, numa perspectiva de manutenção do status quo, sem o qual a justiça deixaria de existir, pois as pessoas não confiariam no judiciário e, por conseguinte, não o procurariam.
Por outro lado, verificou-se a hipótese de uma quebra de imparcialidade por meio dos vieses cognitivos e das heurísticas, que são atalhos mentais utilizados inconsciente e automaticamente pelo cérebro a fim de simplificar o raciocínio. Deles se aproveitam a mente humana para elaborar respostas rápidas para situações complexas a fim de otimizar tempo e aumentar ganhos.
Vieses são tendências psicológicas que produzem representações distorcidas de dados e eventos, consequência da influência de sentimentos na percepção e no raciocínio. São erros de percepção sistemáticos, normalmente despercebidos, que atuam para rapidamente preencher lacunas decorrentes das contingências da vida e auxiliar na tomada de decisão rápida.
Destacou-se o viés de confirmação e sua incidência na decisão judicial, no que tange principalmente à interpretação de provas, de jurisprudências ou posicionamentos doutrinários, podendo este, influenciar no sentido de que o julgador tenderá inconscientemente a buscar informações que comprovem suas expectativas, visto que não é neutro.
Igualmente destacou-se a incidência do efeito-Halo, que consiste em uma tendência dos indivíduos em julgar, a partir de uma característica especifica situações, coisas e pessoas de uma maneira generalizada e produzindo, em decorrência, uma visão estereotipada do todo. Dessa forma, a depender de quem é o réu, de quem é o autor, de quem são seus procuradores, bem como as testemunhas, a depender do que elas representam para quem interpreta e avalia seus depoimentos e argumentos, ou seja, a depender de qual é o estereótipo em que o julgador – ou julgadora – enquadra cada pessoa, considerando uma característica desta, ou uma atitude praticada por ela em juízo ou fora dele, uma frase dita na instrução do processo ou mesmo fora, ou ainda um posicionamento político, tudo isso tem grande potencial para, até de maneira isolada, definir globalmente a pessoa em questão e, por conseguinte, afetar toda a análise da credibilidade e da coerência de seus argumentos e declarações.
O segundo objetivo do trabalho consistiu em verificar em qual medida há eficácia nos mecanismos de controle da imparcialidade do juiz positivados nos arts. 144 e 145 do código de processo Civil.
A lei processual traz em seu bojo incidentes processuais, de impedimento e suspeição, criados a fim de controlar a imparcialidade do juiz. A função desses mecanismos é justamente impedir que fatores externos ao processo intervenham no resultado da prestação jurisdicional.
A partir daí, elegem-se critérios que definem em que momentos seria pressuposto um comportamento parcial dos juízes. São eles as exceções de impedimento e suspeição. Sendo aquele justificado por critérios de parentesco e relações jurídicas e funcionais subjacentes entre julgador e a parte, portanto objetivos e fáceis de comprovar simples documentos.
Concluiu-se que o problema maior reside nas exceções de suspeição, sobretudo pela grande indefinição semântica que permeia sua hipótese de incidência. Segundo porque possui prazo ínfimo de 15 dias para ser arguida, terceiro porque dificilmente se conseguirá provar que um juiz possui interesse na causa ou é amigo íntimo da parte. Por fim, porque os atos eivados de parcialidade nas hipóteses de suspeição só gerarão nulidade relativa dos atos praticados.
Outro problema de grande relevância é também a indefinição, isto é, se os róis dessas exceções são abertos ou taxativos.
Como se viu, é indubitável que a lei busca com mecanismos próprios, mesmo que de maneira tímida, fiscalizar a imparcialidade do juiz. Contudo, tais dispositivos, sobretudo por sua visão simplista da realidade baseada numa suposta inaudita racionalidade do juiz, apresentam muitas falhas e mostram-se ineficazes em atingir o fim caro a que se propõem.
Vislumbra-se, nesse sentido, que o que existe de fato na medida do possível é tão somente um controle interno do próprio agente acerca do seu posicionamento. Desse modo a imparcialidade não é intrínseca ao juiz.
Observou-se, assim, que se de um lado a mente conscientemente atua para violar a imparcialidade e concretizar a vontade do agente, por outro os vieses atuam inconscientemente solapando qualquer garantia de imparcialidade ao jurisdicionado.
Nesse contexto, bastante plausível a sugestão de adoção de um sistema de audiências às cegas, como bem sugerira Adam Benforado, e a exclusão da identidade física das partes como bem sugerira Eduardo José da Fonseca Costa. Visto que tais medidas evitariam ou ao menos minimizariam quebras de imparcialidade. Afinal, todos são iguais perante a lei, independentemente de cor, raça, credo, gênero. Por que então importaria para o juiz saber quem está julgando, influenciaria em que?
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