Capa da publicação Acordo de não persecução penal: natureza jurídica
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Natureza jurídica do acordo de não persecução penal com o advento da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime)

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Resumo:


  • A Lei nº 13.964/2019 apresenta uma abordagem mais garantista do que repressiva, levando a doutrina e jurisprudência a reconhecerem o acordo de não persecução penal como um direito subjetivo do autor do fato.

  • O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) foi introduzido no Brasil a partir da Resolução nº 181 de 2017, sendo posteriormente regulamentado pela Lei nº 13.964/2019, inspirado no modelo de justiça negociada norte-americano.

  • O ANPP configura uma condição específica de procedibilidade, com a possibilidade de ser interpretado como um direito subjetivo do autor do fato, conforme disposto no artigo 28-A do CPP.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é um direito subjetivo do autor ou apenas mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal? O Pacote Anticrime favorece a primeira tese, adotando modelo garantista inspirado no "plea bargain" dos EUA.

Resumo: Investigar a natureza jurídica das coisas significa questionar sua significação epistemológica no âmbito do Direito, com o objetivo de determinar suas possíveis consequências jurídicas. Nesse contexto, a presente pesquisa busca investigar se o acordo de não persecução penal configura-se como um direito subjetivo do autor do fato ou se permanece como uma mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, visando determinar sua natureza jurídica e os reflexos na análise de casos concretos. Para alcançar esse objetivo, foi adotada uma metodologia documental no que se refere aos dados obtidos a partir das leis abordadas, aliada à revisão de literatura e ao levantamento bibliográfico, uma vez que a pesquisa busca fundamento na doutrina e na jurisprudência emergente. Ademais, utilizou-se o método qualitativo e exploratório, que permite uma discussão mais aprofundada do tema, iluminada por estudos mais densos. Os resultados desta pesquisa indicam que a Lei nº 13.964/2019 apresenta uma abordagem muito mais garantista do que repressiva, o que tem levado a doutrina e a jurisprudência a reconhecerem o acordo de não persecução penal como um direito subjetivo do autor do fato.

Palavras-chave: Pacote Anticrime; Acordo de Não Persecução Penal; Direito Subjetivo do Autor do Fato; Mitigação ao Princípio da Obrigatoriedade da Ação Penal.

Sumário: Introdução. 1. A adequação social dos delitos e das penas. 2. Acordo de não persecução penal: direito subjetivo do autor do fato ou mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. 3. Consequência jurídico-prática do acordo de não persecução penal como direito subjetivo do autor do fato. 4. Considerações finais. 5. Referências.


Introdução

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) foi introduzido na legislação penal brasileira a partir da Resolução nº 181 de 2017, no âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Essa origem suscitou, por muito tempo, críticas acirradas relacionadas a vícios formais, os quais foram sanados pelo denominado Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019). Esse diploma legal inseriu no ordenamento jurídico brasileiro um modelo de justiça negociada fortemente inspirado no plea bargain norte-americano. Contudo, o debate doutrinário atual centra-se em saber se o instituto constitui uma mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal ou se se trata de um direito subjetivo do autor do fato.

No campo do direito penal, a epistemologia jurídica busca compreender as razões subjacentes à norma, bem como a finalidade da proteção a determinados bens jurídicos. Aplicando essa teoria ao ANPP, emerge o questionamento sobre o motivo de sua existência. O objetivo do instituto seria proteger a norma ou salvaguardar o bem jurídico? Afinal, o ANPP prevê uma pena sem o devido processo legal, além de medidas como o confisco sem o trâmite processual habitual.

Essa questão levanta implicações jurídico-práticas diretamente relacionadas ao utilitarismo penal, especialmente quando o instituto é confrontado com a garantia constitucional da celeridade, os princípios da efetividade e da economia processual, a observância de tratados internacionais, e os variados posicionamentos jurisprudenciais. Assim, surge o questionamento central: quem é o principal beneficiário do ANPP — o indivíduo infrator ou a coletividade?

Por outro lado, destaca-se que a Lei nº 13.964/2019 foi idealizada pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro. Embora não seja usual identificar o idealizador de uma norma ao analisá-la, nesse caso específico tal menção é relevante. O Pacote Anticrime, que trouxe diversas alterações na legislação penal e processual penal, foi amplamente promovido como um "trunfo" da gestão do Presidente Jair Bolsonaro (2019–2022), alimentando a crença popular de que seria uma ferramenta definitiva para o combate à criminalidade.

No entanto, tal percepção se revela falaciosa, uma vez que o Pacote Anticrime apresenta, em muitos aspectos, características mais garantistas do que punitivas. Além disso, é claramente inspirado em modelos norte-americanos de justiça consensual, como o plea bargain. Essa inspiração reflete não apenas uma inclinação ideológica do governo federal em relação aos Estados Unidos, mas também a ausência de políticas públicas efetivas para a prevenção do crime.

A grande questão ao utilizar a expressão “lei anticrime” é que ela gera, no senso comum, a falsa crença de que, apenas com essa legislação, a violência e a impunidade finalmente chegarão ao fim.

Diante do cenário em que a referida lei foi proposta, torna-se inevitável e necessário promover críticas a esse novo conjunto normativo. É por meio dessas críticas que a reflexão se desenvolve e a ciência jurídica se constrói.

Embora essa alteração legislativa tenha abrangido diversos aspectos do Direito Penal, tanto material quanto processual, a presente pesquisa tem como foco refletir sobre o ANPP. Isso porque, em relação a esse ponto específico, surge um dilema quanto à sua natureza jurídica, a qual parece sofrer uma mutação quando analisada antes e depois da promulgação da referida lei.

A metodologia adotada possui caráter exploratório e, quanto aos objetivos, é de natureza qualitativa. Foi guiada por um extenso levantamento bibliográfico e pela análise de documentos de ordem pública relacionados à instituição, com ênfase na investigação de conceitos por meio de autores renomados na área, além de leis, decretos, instruções normativas e informações acessíveis tanto online quanto presencialmente na própria instituição.


1. A adequação social dos delitos e das penas

Uma vez que o presente trabalho se propõe a analisar uma forma de punição adotada nos dias atuais, qual seja, o ANPP, torna-se necessário recorrer a fontes históricas para compreender a progressividade à qual a ciência jurídica, que promete promover a paz social, está vinculada.

A obra “Diálogo entre um filósofo e um jurista”, de Thomas Hobbes (1588–1679), apresenta um panorama do Direito britânico no contexto histórico do século XV, permitindo-nos, hodiernamente, perceber o processo de desenvolvimento da ciência jurídica a partir dos fatos sociais que originam as leis.

Hobbes afirma que o Direito é a ciência que promove a paz, mas ressalta que, no contexto do Poder Soberano centralizado, característica das primeiras formas de Estado — as monarquias —, esse poder era personificado na figura do Rei.

O epicentro da obra é o questionamento sobre a razão, que justificava a tipificação dos delitos e suas respectivas punições. Para Hobbes, a "razão correta" era sempre a do Rei, dada a conjuntura histórica em que a obra foi elaborada, marcada pelo rompimento da monarquia inglesa com a Igreja Católica. Nesse contexto, entre o cometimento do delito e a figura do Rei, estavam os tribunais e suas competências. Contudo, a justiça ainda era embrionária, pois as punições eram permeadas de subjetividades que atendiam aos interesses de poucos.

Já na obra “Dos delitos e das penas”, Cesare Beccaria (1738–1794) aborda um tema central para o direito penal: a relação entre os delitos e as penas potencialmente aplicáveis. Durante a segunda metade do século XVIII, período em que o autor viveu, era comum observar uma agressividade exacerbada por parte do Estado na aplicação das penalidades.

Por esse motivo, penas como tortura, banimento, prisões deploráveis e pena de morte eram frequentemente aplicadas, muitas vezes, a crimes considerados banais. Até os dias de hoje, a questão da dosimetria das penas permanece como uma discussão central no direito penal.

No que tange à dosimetria das penas, Beccaria (2015) questiona qual seria a finalidade de aplicar uma penalidade e conclui que nenhuma pena é capaz de desfazer um delito já praticado, assim como não deve ter por objetivo afligir um ser sensível.

Para o autor, a finalidade da pena deve ser evitar que o infrator seja prejudicial à sociedade no futuro, ao mesmo tempo em que promove uma percepção coletiva de que há consequências para as condutas ilícitas. Dessa forma, a pena teria um caráter pedagógico, incentivando a sociedade a evitar a prática de crimes. Logo, não se trata de uma vingança coletiva — postura que era comum na época em que Beccaria discutia tais questões.

Segundo Beccaria (2015, p. 52):

"Da simples consideração das verdades até aqui expostas resulta a evidência de que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já foi cometido."

Ou seja, as penas devem ser escolhidas de modo a causar o menor impacto social possível e, ao mesmo tempo, minimizar o sofrimento de quem cometeu o delito.

O direito penal, bem como o legislador, enfrenta constantemente essa questão: como estabelecer uma penalidade que cumpra uma finalidade social sem que se transforme em uma vingança coletiva contra o infrator? Esse dilema revela o caráter ainda contemporâneo da discussão, já amplamente debatida à época de Beccaria.

O autor também afirma que qualquer excesso de severidade na aplicação das penas torna-as supérfluas e, portanto, tirânicas. O problema de penas excessivamente severas é que elas ultrapassam a capacidade humana de resistência. Assim, se o legislador impõe penas desproporcionalmente duras a crimes banais, o que seria reservado para crimes verdadeiramente hediondos? Por isso, as penas devem ser graduais e proporcionais à gravidade dos delitos.

Essa visão de penas excessivamente severas também não encontra sustentação em um ordenamento jurídico regido por leis. Tal postura permanece apenas em sistemas tirânicos e, portanto, temporários, já que leis extremamente rigorosas não se mantêm socialmente aceitas ao longo do tempo.

Os castigos têm como finalidade única impedir que o culpado volte a se tornar prejudicial à sociedade e dissuadir os demais cidadãos de trilharem o caminho do crime. Nesse sentido, Beccaria (2015, p. 21) fundamenta sua obra em questionamentos que continuam pertinentes nos dias atuais:

“[...] qual a origem das penas, e qual o fundamento do direito de punir? Quais serão as punições aplicáveis aos diferentes crimes? Será a pena de morte verdadeiramente útil, necessária, indispensável para a segurança e a boa ordem da sociedade? Serão justos os tormentos e as torturas? Conduzirão ao fim a que as leis se propõem? Quais os melhores meios de prevenir os delitos? Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos? Que influência exercem sobre os costumes?”

Outro aspecto que forma a espinha dorsal da obra de Beccaria é a questão da pena de morte. Embora atualmente seja proibida no Brasil, salvo em situações excepcionais previstas na Constituição Federal, o tema permanece uma discussão contemporânea. Essa questão ganhou relevância devido ao discurso em defesa da sua instituição no país, utilizado como uma das bandeiras eleitorais pelo presidente Jair Messias Bolsonaro (2019–2022).

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Debate-se amplamente se a pena de morte teria a capacidade de reduzir a criminalidade e se o Estado possui o direito de tirar a vida de um ser humano. Argumenta-se que, ao abdicar de uma parcela de sua liberdade em prol da proteção coletiva assegurada pelo Estado soberano, o indivíduo não estaria legitimando a pena de morte, pois esta representaria uma violação dos próprios fundamentos do pacto social.

Nesse sentido, inserir a Filosofia no campo do Direito de forma clara e evidente significa reconhecer que o Direito Material atual reflete as necessidades da sociedade a partir de um contexto histórico e filosófico. Esse reconhecimento é essencial para preservar a ciência jurídica de uma falência teórica e prática.

Compreendendo a progressividade das transformações sociais, especialmente no que se refere à adequação das penas aos delitos, concebe-se, no século XXI, o instituto do ANPP. Esse instrumento reflete as novas concepções de justiça alinhadas à estrutura de um Estado Democrático de Direito.


2. Acordo de não persecução penal: direito subjetivo do autor do fato ou mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal

O ex-Ministro da Justiça, Sérgio Moro, idealizou o Pacote Anticrime de forma a contemplar grande parte do instituto do plea bargain. No entanto, o projeto não foi integralmente recepcionado na votação realizada pelo Poder Legislativo.

O objetivo do projeto era a implantação de um modelo de justiça penal consensual ou negociada, inspirado no Direito Comparado. Contudo, essa proposta encontra-se distante da realidade do sistema jurídico brasileiro, o que levanta questionamentos sobre a preparação da sociedade brasileira para lidar com a figura de uma justiça penal negociada (MOURA, 2019).

Esse instituto é amplamente adotado em países como os Estados Unidos, que aplicam o princípio da oportunidade (ou discricionariedade) na ação penal. Nessas jurisdições, o órgão de acusação não é obrigado a exercer a ação penal, podendo optar pela negociação e aplicação de justiça penal negociada, inclusive em infrações de médio ou maior potencial ofensivo. No Brasil, contudo, prevalece o princípio da obrigatoriedade na ação penal pública.

No contexto do Direito Comparado, a justiça penal negociada se conecta ao modelo reparador, que, de certa forma, já integra o ordenamento jurídico brasileiro. Isso é observado na Lei nº 9.099/95, que estabelece a conciliação e busca a reparação dos danos sofridos pela vítima. Esse modelo permite visualizar a presença da justiça penal negociada no Brasil sob a perspectiva reparadora.

Além disso, há o modelo restaurativo ou pacificador, que tem ganhado espaço na ciência jurídica, especialmente em áreas como o Direito de Família e os Direitos Reais. Embora ainda de maneira tímida, o modelo restaurativo também se manifesta no Direito Penal. Exemplos incluem casos de violência doméstica e os crimes contra a honra, em que o artigo 520 do Código Penal prevê a realização de uma audiência de conciliação (MOURA, 2019).

O modelo negocial, ao qual se associa o plea bargaining, prevê a possibilidade de negociar a punição a ser aplicada, evitando que o infrator seja submetido aos constrangimentos de um processo judicial completo. Nesse modelo, encontram-se figuras como o guilty plea e o nolo contendere. No Brasil, a transação penal se aproxima desse conceito, embora, diferentemente do plea bargaining, ela não implique assunção de culpa, conforme os requisitos do artigo 76 da Lei nº 9.099/95.

Por fim, o modelo colaborativo, representado no Brasil pela colaboração premiada, inclui figuras como a delação premiada. Tanto a colaboração premiada quanto a transação penal já configuram mitigação ao princípio da obrigatoriedade, demonstrando que o ordenamento jurídico brasileiro, ainda que de forma limitada, avança na adoção de instrumentos de justiça negociada.

A partir de tais considerações, observa-se que a Lei nº 13.964/19 inseriu no Código de Processo Penal o ANPP, instituto que já existia por meio das Resoluções nº 181 e 183 do CNMP, editadas em 2017, as quais previam:

“Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente: […]”

Antes da edição da Lei nº 13.964/19, a temática do ANPP era alvo de intensas discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Isso porque, sendo um instituto criado no âmbito do CNMP, havia o entendimento de que possuía um vício formal de origem.

No entanto, no que se refere ao Poder Judiciário, a jurisprudência vinha apoiando a aplicação do ANPP implementado pelo CNMP, mesmo diante de resistência significativa. Essa resistência era fundamentada no argumento de que somente o Congresso Nacional tem competência para legislar em matéria penal e processual penal. Assim, defendia-se que o acordo, por ser uma medida despenalizadora, não poderia ser adotado sem o crivo do legislador.

Cabe ressaltar que, à época, a aplicação das resoluções do CNMP foi objeto de questionamento judicial em duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 5790 e ADI 5793). A doutrina argumentava que as resoluções possuíam natureza procedimental, e não processual. Por outro lado, o Ministério Público entendia que os requisitos para a aplicação do ANPP deveriam ser os mesmos da suspensão condicional da pena.

Com a promulgação da nova lei, o texto legal trouxe alterações significativas em relação à regulamentação anterior, como se encontra disposto no artigo 28-A do CPP, transcrito a seguir:

“Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: [...].”

O princípio da obrigatoriedade da ação penal pública tornou-se um tema progressivamente recorrente no Judiciário com o advento do Pacote Anticrime. Antes dessa reforma na legislação penal, a principal discussão girava em torno da constitucionalidade do ANPP, devido ao alegado vício formal de origem, já que havia sido criado por meio de resolução do CNMP.

Atualmente, o instituto está previsto no artigo 28-A do CPP, introduzido pela Lei nº 13.964/2019. Essa disposição legal superou o questionamento sobre a validade do ANPP enquanto instituto penal elaborado por resolução do CNMP, dado que agora é respaldado por uma lei federal. Contudo, a superação desse dilema inicial deu lugar a um novo debate, relacionado à interação entre o ANPP e o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública.

Nos termos do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, cabe ao Ministério Público avaliar se as condições da ação estão presentes. Havendo tais condições, o MP está obrigado a oferecer denúncia. Por outro lado, na ausência das condições da ação, pode requerer a devolução dos autos para a continuidade da investigação ou o arquivamento do procedimento. Nesses casos, não se configuraria ofensa ao princípio da obrigatoriedade, ao contrário do que ocorre na ação penal privada, que é regida pelo princípio da oportunidade.

Desse modo, como regra, o Ministério Público atua sob o princípio da obrigatoriedade. Entretanto, a própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 98, inciso I, determina a criação de juizados especiais com a finalidade de promover conciliação e transações penais para infrações de menor potencial ofensivo. Essa previsão já representa, em si, uma mitigação ao princípio da obrigatoriedade.

Todavia, a CF/88 não definiu o que é transação penal nem estabeleceu o conceito de infração de menor potencial ofensivo. Trata-se, portanto, de uma norma de eficácia contida, que depende de regulamentação em norma infraconstitucional. Nesse contexto, o ANPP pode ser compreendido como uma transação penal para infrações de médio potencial ofensivo, ultrapassando os limites do Juizado Especial Criminal. Essa possibilidade existe justamente porque a Carta Magna não especificou o conceito de transação, deixando sua definição ao legislador infraconstitucional.

Com o advento da Lei Anticrime, surge a questão: qual a natureza jurídica da transação penal? A posição majoritária entende que a transação penal constitui uma mitigação do princípio da obrigatoriedade ou uma discricionariedade regrada do MP. Em outras palavras, o órgão ministerial tem o poder/dever de avaliar se é cabível ou não a proposta de transação penal, considerando os requisitos legais.

Embora seja razoável que, preenchidos os requisitos objetivos para a transação penal, o MP ainda avalie os critérios subjetivos, o juiz sempre figurou como fiscal do princípio da obrigatoriedade.

Antes do Pacote Anticrime, ao considerar a transação penal uma mitigação ao princípio da obrigatoriedade, colocava-se a seguinte situação: se o indivíduo preenchesse todos os requisitos para a proposta e o MP não a oferecesse, o juiz, como fiscal do princípio da obrigatoriedade, remetia os autos ao Procurador-Geral de Justiça, aplicando o artigo 28 do CPP.

No entanto, com a nova sistemática introduzida pela Lei nº 13.964/19, desaparece a figura do juiz nesse cenário específico. Agora, quando o MP requer o arquivamento do inquérito, esse pedido deve ser submetido à homologação do Conselho Superior do Ministério Público.

Essa alteração fundamenta outro ponto de debate: o artigo 28-A do CPP dispõe que, caso o MP não ofereça a proposta de Acordo de Não Persecução Penal, o próprio indiciado poderá requerê-la ao juiz. Essa previsão dá margem a uma interpretação de que o ANPP pode ser compreendido como um direito subjetivo do autor do fato.

Logo, surge o questionamento: o ANPP passa a ser reconhecido como um direito subjetivo do autor do fato ou permanece como uma mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública? Qual seria, afinal, sua natureza jurídica?

O artigo 28-A do CPP, inserido pela Lei nº 13.964/2019, reforça o entendimento de que, ao integrar o corpo normativo do CPP e utilizar termos como “pode” ou “poderá” em seu texto, a interpretação deve ser feita em benefício do réu. Esse posicionamento está em consonância com o princípio do in dubio pro reo, vigente no ordenamento jurídico brasileiro.

Entretanto, o ANPP apresenta um ponto controverso: o indivíduo deve confessar a prática do delito como condição para formalizar o acordo. Caso essa confissão seja feita e, posteriormente, o acordo não seja cumprido, permitindo a oferta de denúncia contra o acusado, a confissão poderá ser utilizada como prova? Tal situação poderia configurar uma violação ao direito ao silêncio e à garantia de não produção de prova contra si mesmo, bem como levantar a hipótese de se tratar de prova ilícita.

Por outro lado, destaca-se de forma contundente que o novo artigo 28-A, §§ 8º e 14, do CPP exclui a participação protagonista do juiz na formulação do acordo. Tal modificação reforça a separação entre as funções de acusação e julgamento, em conformidade com o modelo acusatório previsto na Constituição Federal. Veja-se:

“§ 8º - Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. (Incluído pela Lei nº. 13.964, de 2019).

§ 14 - No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28. deste Código. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).”

Dessa forma, a partir da leitura dos parágrafos supracitados, é possível inferir que a redação do § 8º do artigo 28-A suscita a tese de que o ANPP configura uma condição específica de procedibilidade. Por outro lado, o § 14 reforça o entendimento de que o ANPP pode ser interpretado como um direito subjetivo do autor do fato.

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Sobre os autores
Regnobertho Gomes Costa

Graduado em Direito pela Universidade Leão Sampaio. Pós-graduado em Direito do Consumidor pelo Instituto Pedagógico de Minas Gerais – IPEMIC.

Francisca Vilândia de Alencar

Pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Regional do Cariri – URCA; Pós-graduanda em Direito Privado e a Nova Advocacia pela Faculdade LEGALE; Pós-graduanda em Docência do Ensino Superior pela FAVENI

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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