Com crescente frequência, a mídia repercute acontecimentos de difícil digestão pela sociedade. Indivíduos que acabam de cometer crimes hediondos, ainda com o sangue quente de suas vítimas ensopando suas roupas, se apresentam na Delegacia, confessam o crime, indicam o local do corpo e, mesmo assim, saem pela porta da frente em nome de uma suposta lacuna legislativa. Tecnicamente, trata-se da denominada “apresentação espontânea” que, para alguns, elidiria a possibilidade de prisão em flagrante. Mas será que é isso mesmo?
Como se sabe, a prisão em flagrante é uma espécie de segregação provisória. Sua previsão estrita encontra-se no art. 302 do código de processo penal nos seguintes termos:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
Na linguagem popular, pode ser considerado em flagrante o ladrão que é pego com a mão na botija, fugindo com a botija ou encontrado com ela logo depois. O que a população compreende bem pelo senso comum, a doutrina rotula com nomes técnicos. Logo, os incisos I e II (mão na botija) são denominados flagrante próprio, perfeito ou real. O inciso III (fugir com a botija), flagrante impróprio ou imperfeito; e o inciso IV (encontrado com a botija), flagrante ficto ou presumido.
Numa primeira leitura do art. 302, prima facie, percebe-se que seus incisos não fornecem, em verdade, a definição do que seria a “situação flagrancial”. Esses incisos apenas delimitam hipóteses em que se estaria diante de uma. Essa constatação é essencial para que não se construam raciocínios equivocados, tomando a descrição de uma hipótese de ocorrência de “situação flagrancial” como sendo a definição da própria “situação flagrancial”.
Quem fornece a definição da “situação flagrancial” é a doutrina. Nesse sentido, “situação flagrancial” nas palavras de Mirabete1 pode ser compreendida como:
uma qualidade do delito, é o delito que está sendo cometido, praticado, é o ilícito patente, irrecusável, insofismável, que permite a prisão do seu autor, sem mandado, por ser considerado a ‘certeza visual do crime’. Assim, a possibilidade de se prender alguém em flagrante delito é um sistema de autodefesa da sociedade, derivada da necessidade social de fazer cessar a prática criminosa e a perturbação da ordem jurídica, tendo também o sentido de salutar providência acautelatória da prova da materialidade do fato e da respectiva autoria. Grifo nosso.
Perceba, que a “situação flagrancial” é condição anterior que autoriza a “prisão em flagrante”. Por sua vez, “a prisão em flagrante” consiste em medida administrativa (pois não emana de exercício jurisdicional) que tem por finalidade, em termos gerais, a cessação mediata e imediata da continuidade delitiva, a facilitação da colheita de provas, a recuperação de bens/objetos do crime e o impedimento da fuga do criminoso.
Assim, quando se fala em “prisão em flagrante” refere-se àquela detenção de um indivíduo numa inquestionável circunstância de autoria e materialidade ainda no calor dos fatos, no momento em que o crime ainda está quente, está acontecendo ou acabou de acontecer. A essência da definição da “prisão em flagrante” está, portanto, na ideia de óbvia constatação de autoria e materialidade em curto período temporal durante/após os atos executórios do crime.
Estabelecidas essas premissas, indaga-se: por qual razão a “apresentação espontânea” do criminoso na Delegacia afastaria a prisão em flagrante? Ora, se estão presentes inquestionáveis provas de autoria e materialidade dentro de curto interregno temporal desde a consumação do crime, em que a “apresentação espontânea” desconfiguraria a “situação flagrancial”?
Alguns argumentam que a “apresentação espontânea” não se amoldaria a qualquer dos incisos do art. 302, pois quem se “apresenta” não pode ser considerado “cometendo o crime”, “perseguido logo após” ou “encontrado logo depois”. Realmente, se o próprio criminoso compareceu à Delegacia é porque o crime já se consumou, não houve perseguição, tampouco localização do autor pela Polícia.
Esse raciocínio pode até ser aceito com algumas ressalvas, mas os defensores dessa tese parecem se esquecer do inciso II que também reconhece a “situação flagrancial” àquele que “acaba de cometer o crime”. E quanto a essa hipótese, é essencial frisar que a norma não impõe nenhuma outra condicionante.
Estabelecida essa premissa, pouco importa se o criminoso foi levado à Delegacia por um popular, se foi levado por um advogado, se foi levado pela PM ou deixado por um disco voador, tampouco se o criminoso sponte suatenha se rendido na Unidade Policial. Se o crime “acabou de ser cometido”, está-se diante da hipótese geral prevista no inciso II, cabendo à Autoridade Policial apenas confirmar se existe inquestionável indicativo de autoria e materialidade e se o crime foi consumado em interregno temporal exíguo em relação à “apresentação espontânea”. Simples assim.
Não se desconhece, todavia, a doutrina que concede interpretação extremamente restritiva ao inciso II, considerando o elemento normativo “acaba de cometê-la” praticamente inexequível. Para essa corrente, essa hipótese só seria subsumível ao caso do indivíduo que acaba de cometer o crime e, sem qualquer intervalo temporal, é surpreendido ainda no cenário.
Em que pese a respeitabilidade dessa tese e a própria boa pretensão que subjaz essa restrição interpretativa, não se pode concordar com ela. Primeiro porque, à rigor, não há nada na letra da lei que diga isso, pois o legislador não fez qualquer distinção valorativa entre as hipóteses flagranciais. Logo, não se pode, artificialmente, esvaziar completamente a operabilidade do dispositivo. Qualquer profissional ligado à segurança pública sabe que na vida real ninguém comete um crime e fica no local aguardando a prisão, muito menos é possível uma captura “sem o decurso de qualquer intervalo temporal”. Ademais, essa extremada restrição, pela via indireta, acaba por deformar a própria finalidade da existência da prisão em flagrante.
O legislador, ao criar uma lei, obviamente visa sua implementação no mundo real. Por isso, é na vida real que se deve buscar a adequação interpretativa. Interpretações que tornam a norma aplicável somente em hipóteses teóricas no mundo imaginário devem ser rechaçadas. São justamente essas teorias descoladas da operabilidade prática que acabam por gerar na vida real situações absolutamente absurdas.
Diante da clareza do inciso II do art. 302, é difícil compreender de onde saiu essa “excludente da apresentação espontânea”. Analisando a doutrina produzida sobre o tema, percebe-se que esses supostos efeitos da “apresentação espontânea” sobre a “prisão em flagrante” se construíram a partir de um grande equívoco conceitual.
De maneira geral, percebe-se na doutrina um ambiente de confusão no uso dos termos “situação flagrancial” e “prisão em flagrante”. Por outras vezes, percebe-se também o uso do mesmo termo genérico “flagrante” para se referir a essas duas situações (“situação flagrancial”e “prisão em flagrante”) quando, em verdade, tratam-se de termos jurídicos absolutamente distintos. Sendo assim, a compreensão do tema depende da plena separação conceitual desses dois institutos.
Primeiramente é importante ter-se claro que a “situação flagrancial” é um atributo momentâneo do crime. Esse atributo independe de atuação policial ativa ou sequer de seu conhecimento para sua configuração. Vale dizer, determinado crime encontra-se em “situação flagrancial”, independentemente de qualquer ato/ciência da Polícia. A “situação flagrancial” é representada pela ideia de recenticidade da ocorrência do crime. O termo flagrante provém do latim flagrare, que significa queimar, arder. É o crime que ainda queima/está em brasa. Essa recenticidade se encontra descrita nos incisos do art. 302 do código de processo penal. Logo, o crime é ainda recente quando: está sendo cometido, acaba de ser cometido, houve perseguição logo após ou encontro do criminoso logo depois.
De maneira absolutamente distinta, tem-se a “a prisão em flagrante”. A “prisão em flagrante”, portanto, é o procedimento administrativo descrito nos art. 301 a 310 do código de processo penal. Percebe-se da leitura do seu regramento que a “prisão em flagrante” é um procedimento complexo composto de pelo menos 4 fases: captura, condução coercitiva, lavratura do flagrante e recolhimento à carceragem. Esse procedimento administrativo deve sempre ser adotado quando alguém está à disposição da autoridade em “situação flagrancial”.
Ao ter bem claro em mente a distinção entre os conceitos de “situação flagrancial” e “prisão em flagrante”, percebe-se por consequência que eles possuem uma relação condicionada, ou seja, a “prisão em flagrante” depende primeiro da constatação da “situação flagrancial”.
Estabelecidas essas premissas, fica claro que a “apresentação espontânea” atua somente sobre as fases iniciais da “prisão em flagrante” (captura e condução coercitiva), não possuindo, por si só, o condão de desconfigurar a “situação flagrancial”. Vale dizer, o crime continua “em brasa” com o atributo da recenticidade, pois a “apresentação espontânea” de forma alguma desnatura a situação “acabar de cometer o crime”.
Por sua vez, considerando que é a “situação flagrancial” que autoriza a “prisão em flagrante”, não há como enxergar na “apresentação espontânea” qualquer impeditivo à adoção do procedimento administrativo da “prisão em flagrante” estabelecido nos citados art. 301 a 310 do CPP.
Ocorre que a doutrina fez uma mistura entre estes institutos o que resultou em conclusões enviesadas. Como misturaram a ideia de “prisão em flagrante” com “situação flagrancial” alcançaram a equivocada concepção de que sem uma atuação ativa (captura e condução coercitiva) contra o criminoso ou prévio conhecimento do crime, não existiria o flagrante (somatório da “situação flagrancial” e “prisão em flagrante”).
Entretanto, conforme inequivocamente demonstrado, tratam-se de conceitos bem diferentes, tendo a “apresentação espontânea” como única consequência a facilitação do procedimento da “prisão em flagrante”. Essa consequência, por sua vez, não tem qualquer efeito sobre a “situação flagrancial” que se mantém a mesma. Afinal, repita-se, não há como a “apresentação espontânea” tornar a consumação do crime um fato longínquo.
A título de exemplo, veja a seguinte hipótese: um indivíduo comete um homicídio e cerca de 1 hora depois, de banho tomado e acompanhado de advogado, se apresenta na Delegacia e confessa o crime. A Autoridade Policial toma conhecimento do fato nessa oportunidade e determina que sejam feitas rápidas diligências, sendo encontrado o corpo, a arma do crime e filmagens da dinâmica, comprovando a autoria. Por parte da doutrina, a prisão em flagrante estaria elidida, pois houve a “apresentação espontânea”. Ocorre que esse não é o melhor entendimento. Veja, o que a Autoridade Policial deve indagar são duas perguntas: há razoáveis indícios de autoria e materialidade? O crime “acabou de ser cometido” e, portanto, se amolda ao inciso II do art. 302? Se a resposta for positiva para ambas, está configurada a “situação flagrancial” e, portanto, autorizada a “prisão em flagrante”. A “apresentação espontânea” apenas torna desnecessária a captura e condução coercitiva, mas que, como já explicado, em nada tem relação com a “situação flagrancial”.
Resta inconteste, portanto, que a “apresentação espontânea” não pode obstaculizar o flagrante pela ideia de uma falta de atuação inicial ativa da Polícia. Afinal, o flagrante não se trata de uma competição entre a Polícia e o criminoso para ver quem se antecipa a quem primeiro. Caso fosse assim, chegaríamos a situações surreais. Veja, segundo esse tipo de interpretação, caso policiais encontrassem uma casa logo após um assassinato, sabendo apenas que um dos envolvidos está em seu interior, quando, em verdade, existem cinco indivíduos, todos coautores do mesmo crime e caso os quatro criminosos desconhecidos pela Polícia se antecipassem e se rendessem, solicitando advogados, estaria afastado o flagrante presumido pela “apresentação espontânea” dos 4 desconhecidos. Ainda em outro exemplo, imagine o caso de um indivíduo que estupre uma mulher e, logo depois, se entregue na Delegacia confessando o crime. Nesse caso, ele não poderia ser preso em flagrante, pois houve a apresentação espontânea. Todavia, se no mesmo exemplo, uma vizinha ligasse para a Delegacia dizendo que o criminoso estava indo se entregar e a Polícia o interceptasse no caminho, poderia.
Percebe-se, portanto, que a confusão conceitual entre “situação flagrancial” e “prisão em flagrante” gera situações visivelmente absurdas e, assim, percebidas por toda a sociedade.
Em todo esse debate, deve-se enxergar, portanto, que a questão da interpretação dos efeitos da “apresentação espontânea” vai muito além de mera filigrana acadêmica. Esse arraigado equívoco conceitual possui consequências reais nefastas. Isto porque, intrinsicamente ligado aos aspectos “endoprocessuais”, a “prisão em flagrante” possui uma inegável e necessária irradiação extra processual. A prisão em flagrante é um instrumento de autodefesa social no qual se funda boa parte da legitimidade do sistema de justiça. É o efeito imediato da prisão flagrante que acalma os ânimos das vítimas, mantendo o tecido social coeso e desestimulando a busca pela autotutela.
Por essas razões, o manejo enviesado da “apresentação espontânea” como obstáculo absoluto à prisão em flagrante traz severo desgaste à credibilidade das instituições vinculadas ao sistema persecutório penal, em especial, da Polícia, que recebe os olhares desconfiados de toda a sociedade.
Nessa seara, é importante que os Delegados de Polícia, autoridades responsáveis pela decisão de lavratura ou não dos flagrantes, compreendam que a ideia de “legalidade” foi substituída pela de “juridicidade”. Isto é, o Direito é maior do que a lei, sua complexidade se funda a partir do somatório de diversas fontes, entre elas, as leis, costumes, jurisprudência, doutrina, analogia, princípios gerais e a própria noção de equidade. E equidade é justamente a manifestação da justiça conforme as peculiaridades do caso concreto.
Sabe-se que o tema demanda maior debate, mas a coragem para provocação de evolução jurisprudencial e até mesmo legislativa deve vir de algum lugar. Para isso, as Autoridades Policiais devem ter em mente que não existe “crime de hermenêutica” e a lavratura de flagrantes em hipóteses como ora defendido não se amolda, nem à fórceps, a qualquer tipo de abuso de autoridade.
Como consabido, a lei n. 13.869/19 estabelece o dolo específico, havendo necessidade de conduta finalisticamente direcionada para “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Quem, em sã consciência, pode enxergar animus abutendi na Autoridade Policial que lavra o flagrante de um assassino que adentra uma Delegacia ainda com a arma do crime em mãos? É disso que se trata, razoável margem interpretativa para casos de severo impacto na ordem social.
Sendo impossível, portanto, imputar-se à Autoridade Policial qualquer abuso, resta somente a possibilidade de eventual relaxamento da prisão na audiência de custódia, caso o Magistrado não concorde com a tese. Todavia, mesmo nesses casos, vale a pena o risco, pois o relaxamento da prisão, não impedirá sua substituição pela prisão preventiva. Nesse aspecto, numa análise de tutela do interesse coletivo, a lavratura de um auto de prisão em flagrante em determinados casos de “apresentação espontânea” representa um ato mais apropriado. Isto porque é melhor lavrar o flagrante, mantendo acautelada a credibilidade do sistema de Justiça, do que, sem expressa previsão legal, conceder ao criminoso um benefício incompatível com a mais comezinha noção de justiça e senso de acolhimento que as vítimas e familiares merecem.
À conta de todo o exposto, não enxergar a possibilidade de prisão em flagrante em casos concretos com inegáveis características de autoria e materialidade há poucas horas da consumação do crime somente porque o autor se “apresentou espontaneamente” é fazer piada com a população. A “prisão em flagrante” não pode ser tratada como brincadeira de pique-pega onde a “apresentação espontânea” é um pedido de “altos”. A sociedade não consegue mais tolerar aquilo que, a olhos vistos, é percebido, ainda que instintivamente, como uma clara aberração. Só no Brasil, interpretações travestidas de um suposto garantismo conseguem se manter ainda válidas em pleno século XXI. É nesse pseudogarantismo que as aberrações jurídicas encontram solo fértil e se perpetuam, sistematicamente minando a fé da sociedade nas instituições e boicotando a evolução civilizatória da nação.
Notas
1 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 4. Ed. São Paulo: Atlas. 2014.