A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL E SEUS LIMITES

06/04/2021 às 11:43
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE LIMITES TRAÇADOS PELO STF PARA O AJUIZAMENTO DO WRIT DE RECLAMAÇÃO.

A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL E SEUS LIMITES

Rogério Tadeu Romano

Muitos estudiosos têm criticado as limitações que o Supremo Tribunal Federal tem estipulado para o ajuizamento da ação de reclamação constitucional, um writ constitucional, que não se caracteriza pelo perfil de incidente processual.

A reclamação serve para firmar o respeito aos julgamentos da Corte e ainda evitar que algum juízo usurpa a sua competência.

Em these, caberia o ajuizamento de reclamação contra decisões que contrariem a tomada pelo STF na em que ficou assentado que há competência concorrente das unidades federativas para tratar de tema de saúde.

O Supremo Tribunal Federal esclareceu que a Constituição diz que a Saúde é um direito de todos e uma responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios. Cada um deles tem um papel a cumprir. A corte definiu que as decisões cotidianas, como o funcionamento do comércio, se dão em nível local. Mas isso não exime a União e o presidente de suas obrigações, obviamente.

Pois bem.

O ajuizamento de reclamação contra decisão da qual cabe recurso contraria o sistema jurídico-processual e revela-se disfuncional, caracterizando hipótese de abuso do direito de ação. Há necessidade das instâncias julgadoras superiores de prestigiarem o sistema jurisdicional estabelecido pelo Poder Constituinte, de modo a preservar a atuação dos demais órgãos do Poder Judiciário que, de igual forma, ostentam competências de envergadura constitucional. O exaurimento da jurisdição ordinária antes do manejo da reclamação constitucional de competência do Supremo Tribunal Federal deve ser observado, sob pena de se estimular a propositura per saltum da via eleita. Precedentes: Rcl 25.596-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 1º/08/2017;e Rcl 18.020-AgR, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, DJede 18/04/2016 (Rcl. 31579/SP-AgR, Relator Ministro Luis Fux.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem se firmando no sentido de que o esgotamento da instância ordinária somente se concretiza após o julgamento de agravo interno manejado contra a decisão da Presidência ou Vice-Presidência da Corte que, no exame de admissibilidade do recurso extraordinário, aplica a sistemática da repercussão geral, nos termos do art.1.030 e § 2º, do CPC/2015, porquanto não mais passível de reforma por via de recurso a algum tribunal. (STF, Rcl 24.329, AgR, Relatora Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 23/3/2018).

Ressalte-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal é firme em não inadmitir a reclamação antes de esgotados todos os instrumentos recursais nas instâncias ordinárias (...) E por esgotamento de instância, como bem elucidado pelo Ministro Teori Zavascki quando do julgamento da Rcl nº 24.686/RJ-ED-AgR, DJe de 11/4/2017, tem-se “o percurso de todo o íter recursal possível antes do acesso à Suprema Corte. Ou seja, se a decisão reclamada ainda comportar reforma por via de recurso a algum tribunal, inclusive a tribunal superior, não se permitirá acesso à Suprema Corte por via de reclamação. Esse é o sentido que deve ser conferido ao art.988,§ 5º,II, doCPC. (STF. Rcl 28.749 AgR, Relator Min. Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 4/4/2018) 

Ora, a ampliação do conceito de “vias ordinárias” conferida pela Corte Suprema aumenta demasiadamente o risco de a decisão indigesta transitar em julgado, formando coisa julgada, afastando, assim, o cabimento da Reclamação (art.988,§ 5º,I,CPC/2015). 

Não se pode esvaziar, de tal forma, uma garantia constitucional. A reclamação é, cabalmente, uma garantia constitucional. 

Constituição não dá um prazo expresso para o ajuizamento da reclamação. Isso ocorre porque ela pode ser manejada a qualquer tempo, desde que verificadas as hipóteses legais de cabimento. 

Todavia, é preciso ter atenção ao seguinte: o período de ajuizamento da reclamação, por óbvio, limita-se ao trânsito em julgado da decisão que se pretende combater (art.988,§ 5º, incisoI, do CPC). 

A propositura de uma reclamação pressupõe que a questão impugnada ainda possa ser revisitada. Não se admite o manejo da medida para reabrir pontos já acobertados pela preclusão. (...) 4. Agravo regimental a que se nega provimento"(STF, Rcl 2517 AgR, relator: min. ROBERTO BARROSO, 1ª Turma, julgado em 5/8/14). 

A reclamação é impossível de ser manejada como sucedâneo de recurso ou ação rescisória, bem como é inadmissível a sua utilização em substituição a outras ações cabíveis. Incidência do “princípio da não reclamação contra o recorrível” ou da “irreclamabilidade contra a decisão de que ainda cabe recurso”. Assim ensinou Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo V, Arts. 444-475. Rio de Janeiro: Forense, 2ª Edição, p. 390 e 394) . 

A reclamação é ação constitucional que não substitui recurso não está, data vênia, condicionada a recurso ordinário. 

É certo que não cabe reclamação contra decisão judicial transitada em julgado, pois ela não é uma ação rescisória, nem a substitui (Súmula 734 do STF). 

A súmula citada, como entendimento jurisprudencial na matéria, foi objeto de publicação em 9 de dezembro de 2003. 

Ajuizada antes do trânsito em julgado, a sua superveniência não torna a reclamação incabível. 

Mas, houve casos de concessão de liminar em reclamação ainda duração a instrução na instância ordinária. 

O ministro Alexandre de Moraes suspendeu o trâmite do processo em curso na 8ª Vara Federal do Rio de Janeiro no qual o médico Ricardo Agnese Fayad, general reformado do Exército, foi denunciado pelo crime de lesão corporal qualificada cometido durante a ditadura militar contra Espedito de Freitas, membro da organização política denominada Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Com isso, foi suspensa a audiência que estava designada para ocorrer no dia 27 de novembro de 201u, às 13h, por videoconferência. 

O relator estendeu a Fayad os efeitos da liminar concedida na Reclamação (RCL) 18686, por meio da qual o ministro Teori Zavascki (falecido) suspendeu a ação penal contra os cinco militares acusados de envolvimento no desaparecimento e na morte do deputado federal Rubens Paiva, em janeiro de 1971. Ao receber a denúncia contra o médico, o juízo da 8ª Vara Federal do Rio de Janeiro afastou a aplicação daLei da Anistia(Lei6.683/1979) ao fundamento de que os atos de tortura constituem crime contra a humanidade, sendo, portanto, imprescritíveis segundo o Direito Penal Internacional. 

Recentemente, no julgamento da Reclamação 43.479, o ministro Gilmar Mendes deferiu liminar, no dia 3 de outubro do corrente ano, para suspender ação penal contra advogados que foram contratados pela Fecomércio do Rio de Janeiro, que é uma instituição privada. 

A ação estava nas mãos do juiz Federal Marcelo Bretas, da 7ª vara do Rio de Janeiro. No começo de setembro, Bretas recebeu a denúncia e concomitantemente, de modo absolutamente esdrúxulo, autorizou mais de 50 mandados de busca e apreensão em residências e escritórios de advocacia do Rio, de São Paulo e de Brasília. 

Analisando o caso a partir de Reclamação apresentada pela OAB, o ministro, além de suspender o trâmite da ação penal, houve por bem ordenar que o magistrado não tome qualquer nova decisão no caso. 

Tal observação talvez se justifique porque o mesmo juiz, em caso anterior - que teve decisão também do ministro Gilmar Mendes -, decretou nova prisão após a concessão de um habeas corpus. Na época, o ministro Gilmar Mendes, ao ser perguntado acerca da atipicidade da atuação do magistrado carioca, disse proverbialmente que era o "rabo abanando o cachorro".  

Naquele caso trazido à discussão a ação penal estava em curso, em primeiro grau. 

Na medida cautelar, na Reclamação 43.130/RJ, em que se requereu a suspensão do andamento da Ação Penal5051100-36.2020.4.02.5101, das Medidas Cautelares 5037070-93.2020.4.02.5101 (prisão temporária e busca e apreensão) e 5042826-83.2020.4.02.5101 (sequestro e indisponibilidade de bens), e de todo e qualquer expediente investigativo em sede policial ou ministerial relacionado aos fatos, o ministro Gilmar Mendes deferiu liminar reconhecendo a competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes eleitorais e conexos.  

Então por que esperar o limite com o trânsito em julgado para ajuizamento de uma reclamação, quando clama o direito a favor do reclamante? 

Já salientou o Supremo Tribunal Federal que somente se admite a reclamação nos casos de processos sem trânsito em julgado, ou seja, com recurso ainda pendente (Rcl 909-AgR, Relator para o acórdão o Ministro Nelson Jobin, Plenário, DJ de 27 de maio de 2005. 

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A decisão está em conformidade com o entendimento abaixo externado: 

“A existência de coisa julgada impede a utilização da via reclamatória. Não cabe reclamação, quando a decisão por ela impugnada já transitou em julgado, eis que esse meio de preservação da competência do STF e de reafirmação da autoridade decisória de seus pronunciamentos – embora revestido de natureza constitucional (CF, art. 102, I,e) – não se qualifica como sucedâneo processual da ação rescisória. A inocorrência do trânsito em julgado da decisão impugnada em sede reclamatória constitui pressuposto negativo de admissibilidade da própria reclamação, que não pode ser utilizada contra ato judicial que se tornou irrecorrível.” (Rcl 1.438-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 28-8-2002, Plenário,DJde 22-11-2002.) 

"Trânsito em julgado no curso do processo da reclamação. Inaplicabilidade da Súmula 734. (...) Admite-se reclamação contra decisão que só transitou em julgado após seu ajuizamento."(Rcl 5.821-ED, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 14-10-2009, Plenário,DJEde 26-3-2010.) No mesmo sentido:Rcl 8.934-ED, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 1º-12-2011, Plenário,DJEde 1º-2-2012. 

Esse entendimento jurisprudencial tem em vista a reclamação como incidente processual. Mas ele não é, pois é writ, ação. 

Mas tenha-se em conta que o desrespeito à decisão do STF ou do STJ, como guardiões, respectivamente, da Constituição e da lei federal, também implica ofensa à sua própria coisa julgada. 

Cumpre a reclamação, que, em hipótese alguma, como writ constitucional, implica ofensa à coisa julgada, o papel de defender, zelar pela eficácia da coisa julgada da decisão da corte desrespeitada. Em especial, porque não se trata de qualquer decisão que foi desacatada, mas daquela proveniente dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário, repita-se, do guardião da Constituição e do guardião da lei federal, responsável que é pela uniformização da legislação federal infraconstitucional. 

Fala-se que na reclamação o tribunal condena o ato à ineficácia, sem reformá-lo e mesmo sem anulá-lo. Vou mais longe, como writ constitucional, a reclamação acaba por declarar a ineficácia da decisão, daí seu caráter declaratório, strictu sensu. 

A decisão, melhor se diria, na linha de Pontes de Miranda (Tratado das ações), teria caráter mandamental, que seria suficiente para rechaçar a afronta praticada, seja porque desacatou, seja porque usurpou, determinando-se a supressão do desacato ou usurpação. 

No que concerne à sentença mandamental, disse Pontes de Miranda: Em relação à ação e sentença mandamentais, diz que se "...a sentença preponderantemente manda, provavelmente a declaratividade é 4 e a constitutividade, 3. Ás vezes, porém, a eficácia mediata passa a ser de condenatoriedade (caução em ação cominatória: ação de manutenção de posse; extinção de usufruto ou fideicomisso, sem ser por culpa do usufrutuário ou do fideicomissário); ou de executividade (ação de manutenção provisória da posse, se duas ou mais pessoas se dizem possuidoras)". 

A reclamação não implica tecnicamente a rescisão da sentença transitada em julgado, mas apenas incita o respeito à autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Se as Cortes de superposição decidem alguma questão, a eficácia dessa decisão deve ser assegurada imediatamente, ainda que tenha havido trânsito em julgado do ato jurisdicional que a desacatou. Trata-se de preservar, em última análise, a credibilidade da instituição do Poder Judiciário no exercício de suas mais graduadas funções. Essa a bem traçada lição de Artur Henrique Callegari, ilustre Procurador Federal, in Análise crítica da súmula 734 do STF. 

Isso porque uma decisão, ainda que transitada em julgado, não pode desrespeitar o domínio da coisa julgada dos tribunais superiores. 

Entenda-se que o trânsito em julgado não deve constituir óbice à reclamação constitucional, porque a finalidade da ação, do writ, não é a desconstituição da decisão emanada de outro órgão jurisdicional, mas a preservação da autoridade da mais alta corte do país ou do tribunal que detém a competência para uniformizar a intepretação da lei federal. 

Não se objetiva, repita-se, desconstituir (algo próprio de ação rescisória), mas impor respeito a decisão emanada de tribunal superior, solicitando-se que seja ordenado que assim se faça. 

Estar-se-ia em situação distante de outra quando há reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, suas súmulas ou orientações decorrentes do julgamento de recursos especiais processados na forma do art. 543-C do Código de Processo Civil.

Estas serão oferecidas no prazo de quinze dias, contados da ciência, pela parte, da decisão impugnada , independentemente de preparo, consoante AgRg na RECLAMAÇÃO Nº 22.054 - AC (2014/0297662-7), em que foi relator o Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, atendendo norma disciplinada no Regimento Interno da Corte. 

De toda sorte, com todas as limitações trazidas pelo direito positivo, como é exemplo o CPC de 2015, aqui lembrado, e recentes decisões do STF, tem-se que a reclamação é um remédio útil que pode ser ajuizado sempre que os entes federativos desviarem-se dos comandos jurisprudenciais trazidos pela Suprema Corte no entendimento em matéria de saúde diante da cruel pandemia de covid-19 por que passamos.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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