O artigo 5º da Constituição Federal do Brasil é belo ao definir que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Perto disso, o mesmo documento nos informa que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III).
Não podemos nos esquecer também do artigo 6º o qual define um rol de direitos sociais: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Mais à frente pode-se citar também o artigo 194 do mesmo livro o qual conceitua o que vem a ser seguridade social, compreendida como um conjunto integrado de ações, por meio do Poder Público e da sociedade em geral, destinadas a assegurar direitos direcionados à saúde, à previdência e à assistência social.
Todos esses direitos e garantias correlacionam-se, hora ou outra, ao direito de moradia. Esse direito diz respeito basicamente a ter um lar. Parece banal essa definição, mas questões relacionadas à moradia, habitação ou propriedade comportam grandes questões e problemas estruturais que foram historicamente debatidos no decorrer da história do Brasil (MERELES, 2017).
Antes mesmo do nascimento da Constituição Federal de 1988 e da Emenda Constitucional nº 26, o Brasil, como membro da Organização das Nações Unidas, ao assinar a Declaração dos Direitos Humanos definiu como norma legalizadora o seguinte preceito: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis”
Nota-se que o direito à moradia no Brasil esteve presente desde 1948 por meio de um dos principais documentos relacionados aos Direitos Humanos no mundo inteiro. Foi por meio desse documento que o ordenamento constitucional brasileiro tomou a forma atual, reconhecendo como principal premissa, a dignidade inerente a todos os membros da família humana, cujos direitos eram, entre si, iguais e inalienáveis além de serem fundados na liberdade, justiça e na paz mundial (ONU, 1948).
Diante disso, notou-se claramente a ligação entre o direito à moradia com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que o direito a um lar era um dos requisitos necessários para a plenitude da dignidade da família em uma determinada nação.
Carla Mereles (2017) afirma que:
“Um dos motivos para a inclusão do direito à moradia na Constituição é a associação direta dele com o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse princípio é um dos mais importantes dentro das nossas leis – assim como no mundo inteiro – e serve como reflexão para várias questões, como: o quão necessário é ter direito a uma casa, um lar com requisitos básicos à sobrevivência, para que se viva com dignidade? Ao relacionar a necessidade de uma moradia com a aquisição de uma vida digna, entende-se o direito à moradia como um direito social – que vai além do individual e, por isso, é relevante para toda a sociedade.”
Unindo a premissa básica do direito à moradia com uma condição para a existência de dignidade humana, a doutrina tratou de tecer um melhor conceito para esse direito. Nas palavras do jurista André de Carvalho Ramos (2020, p. 607) verifica-se que:
“O direito à moradia consiste no direito de viver com segurança, paz e dignidade em determinado lugar, no qual o indivíduo e sua família possam se instalar, de modo adequado e com custo razoável, com (i) privacidade, (ii) espaço, (iii) segurança, (iv) iluminação, (v) ventilação, (vi) acesso à infraestrutura básica (água, saneamento etc.) e localização. Em síntese, é o direito a ter um local adequado, com privacidade e dotado do conforto mínimo para o indivíduo e seu grupo familiar.”
Dessa forma, não seria apenas a posse de um lar qualquer a ser capaz de preencher essa necessidade humana. Seria necessário que esse lar fosse abrangido com condições mínimas de conforto e sobrevivência.
Essas características necessitam, no entanto, que o Poder Público proceda com a concretização do direito à moradia adequada, seguindo a normatização do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos (PIDDESC), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, na Convenção sobre os Direitos da Criança e, nos artigos já citados da Constituição Federal.
Levando todo esse contexto em consideração, é dever do Estado a criação de políticas públicas visando a promoção e a implementação de programas para construções de moradias e a melhoria de condições habitacionais e de saneamento básico à população brasileira.
A criação de políticas públicas é obrigação da Administração Pública, por meio do poder executivo, a ser dividido por todos os entes federados. Tais políticas vão desde a criação de programas nacionais até mesmo microprogramas restritos à municípios determinados ou aquelas regiões vítimas de catástrofes naturais.
Legalmente, esse seria o cenário ideal do Brasil frente aos brasileiros. Todavia, de acordo com Carla Mereles (2017), essa realidade social apresenta-se longe de existir, conforme explica:
"Na última pesquisa internacional feita sobre pessoas em situação de rua, pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2005, estimou-se que mais de 100 milhões de pessoas no mundo não tem um lar. Das quase 7 bilhões de pessoas no mundo, 1,6 bilhão não tem uma moradia adequada. No Brasil, não há tantos números computados sobre. O último foi apurado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em 2008, em 71 cidades brasileiras, no qual o número de pessoas sem moradia chegava a 30 mil – mas é um número bastante relativo, considerando que há mais de 5 mil municípios no Brasil. Em 2013, eram mais de 5 mil pessoas em situação de rua no Rio de Janeiro e por volta de 15 mil em São Paulo. Na cidade do Rio de Janeiro, em 3 anos, o aumento foi de 150%: 14,2 mil pessoas não têm moradia. Há, portanto, um grande desafio dos governos em todo o país de conseguir garantir o direito à moradia a milhares de pessoas no território brasileiro."
Se o Brasil está longe de cumprir o que promete através da Constituição e dos demais tratados e acordos, o que sobra para milhares de pessoas é a rua. Pessoas em situação de rua, são aqueles indivíduos que passam as noites dormindo em ruas, marquises de prédios, em praças, embaixo de viadutos ou pontes sob total falta de estrutura capaz de dar dignidade e condições mínimas de vida.
Ainda de acordo com Mereles (2017),
“‘Os moradores de rua’ são um grupo heterogêneo, isto é, pessoas que vêm de diferentes vivências e que estão nessa situação pelas mais variadas razões. Há fatores, porém, que os unem: a falta de uma moradia fixa, de um lugar para dormir temporária ou permanentemente e vínculos familiares que foram interrompidos ou fragilizados.”
Ou seja, são pessoas cujos direitos garantias fundamentais já vêm sendo negligenciadas pelo Poder Público, pela sociedade e pela família, no qual resulta justamente na situação de vulnerabilidade social.
No entanto, um questionamento se faz pertinente: o que esperar do Estado quando este, ao invés de acolher a pessoa em situação de rua faz justamente o contrário, refutando-as da rua, o único local em que elas podem se alojar, na maioria das vezes?
É o que ocorre com a chamada arquitetura antimendigo, ou ainda, arquitetura hostil.
De modo simples, arquitetura hostil visa segregar indivíduos em situação de rua, utilizando-se de elementos urbanos modificados para dificultar a permanências dessas pessoas em locais públicos capazes de fornecer abrigo ou acolhimento.
Podemos sugerir como exemplos a instalação de divisórias entre os bancos de paradas de ônibus, a inserção de pedras pontiagudas sob locais capazes de abrigar moradores de rua e até mesmo a instalação de estacas de ferros visando funcionar como verdadeiras lanças em fachadas e calçadas em frente à estabelecimentos.
Também conhecida como arquitetura antimendigo, ganhou força nos anos 90, em várias cidades grandes ao redor do mundo. Embora essa prática seja muito antiga, o termo foi popularizado após uma publicação no famoso jornal britânico The Guardian.
No Brasil, a arquitetura hostil voltou ao Debate no início de fevereiro de 2021, quando as redes sociais foram tomadas por imagens do padre Júlio Lancellotti destruindo blocos colocados embaixo de viadutos da cidade de São Paulo pela Prefeitura da cidade.
A repercussão desse fato foi tão grande que levou o governo a voltar atrás em sua decisão e retirar os blocos pontiagudos, exonerando também um funcionário, apontado como responsável pela implementação dos blocos (Jornal UOL, 2021).
Naquele mesmo mês, outro noticiário denunciou mais uma vez a conduta da arquitetura hostil no Brasil, dessa vez em Brasília, na qual foram identificadas grandes pedras abaixo de passarelas as quais impossibilitavam que moradores de rua ou pessoas em situação de risco fossem capazes de se abrigarem no local (Jornal METRÓPOLES, 2021).
Dessa forma, o brasileiro começou a prestar mais atenção nos elementos urbanos dentro das cidades, notando vários outros casos de incidência dessa forma de discriminação.
Gilberto Dimenstein, em sua brilhante obra intitulada com o nome “Cidadão de Papel” (1994) nos expõe a uma grave constatação em relação a falta dessa proteção para com as pessoas em situação de rua. Ele percebe que o reflexo disso vai além do que um mero indivíduo dentro de uma vasta sociedade. Ele perpassa pela saúde nacional.
“Nota-se a ausência de cidadania quando uma sociedade gera um menino de rua. Ele é o sintoma mais agudo da crise social. Os pais são pobres e não conseguem garantir a educação dos filhos. Eles vão continuar pobres, já que não arrumam bons empregos. E aí, seus filhos também não terão condições de progredir. É a famosa pergunta: Quem nasceu antes: o ovo ou a galinha? O garoto é pobre porque não conseguiu estudar em uma boa escola ou é porque não estudou que continua pobre? Esse círculo vicioso não atinge só os pobres.”
É certo que o país mantém uma a Política Nacional para a População em Situação de Rua vigente na qual definem metas e orientações para dar a população em situação de rua, meios de cidadania eficientes dentro da sua realidade social. No entanto, ao buscar a realidade como exemplo, verifica-se que tais ações ainda estão longe de serem respeitadas pelos governantes. De modo contrário até, tais governantes buscam demonizar esse grupo ao dificultar o acesso ao mínimo de dignidade possível na sociedade.
O que se percebe é que, no lugar de se criar centros de acolhimento, conforme determina o decreto nº 7.053/2009, A Administração Pública prefere cercar calçadas com pedras e até mesmo instalar espinhos em bancos para afugentar um desesperado que procura se proteger do frio, da chuva, dos olhares de preconceito e de tantos fatores negativos atrelados às situações de extrema miséria e desigualdade social.
Com isso, visualiza-se uma conclusão inevitável ao assunto, de modo a não verificar um limite de ações, mas a um conjunto extremamente amplo de políticas públicas e mudanças culturais.
Uma das soluções para cessar tais problemas seria seguir claramente o que a Constituição determina. Tão somente fazer valer o que nossa legislação já impõe ao Poder Público e a sociedade.
Mais do que isso, no entanto, seria a mudança de olhar dos governantes para a população em situação de rua, os quais ainda os veem como um problema, no lugar de tê-los como um grupo possuidor de direitos e titulares do dever de serem cuidados como cidadãos brasileiros por parte do Poder Público.
Essa segunda atitude, infelizmente é o que entrava a política de acolhimento no Brasil, uma vez que tais governantes não cumpre o prometido em relação à busca da estabilidade social das famílias mais vulneráveis.
Novamente, Dimenstein descreve muito bem a atitude de governantes em relação a esse grupo mais vulnerável em sua obra já citada. Tais políticos prometem dar dignidade à todas as pessoas e, ao final, simplesmente provocam o inverso com suas atitudes:
“É rotineiro usar-se a expressão vontade política, muito comum nos discursos dos políticos. Indica quando um governante tem uma prioridade de verdade e não apenas de palanque. Vontade de palanque algo muito comum são as promessas feitas por candidatos para ganhar votos e que depois, uma vez eleitos, as esquecem. É o que se chama de demagogia”
Sendo direto, a solução se encontra explícita em nossa Nação. A promoção dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos; a responsabilidade do poder público pela elaboração de políticas públicas no tratamento desses grupos; a articulação dos entes federais no acesso à moradia de todos os grupos sociais, independentemente de sua condição financeira; a participação da sociedade, das entidades, das organizações sociais na elaboração e execução de políticas públicas, dentre tantas outras ações que já se fixam expostas em consolidadas na Política Nacional para a População em Situação de Rua são apenas exemplos do que se pode ser feito em relação ao tema.
Dar um lar, seja temporário ou permanente para tais famílias é talvez a principal solução para o problema relativo ao direito de moradia. Mas apenas os serviços de acolhimento, seja fixo ou temporário, não são o bastante e devem vir precedidos de uma ruptura do pensamento atual, um pensamento cercado por segregação e repúdio a essas pessoas em situação de rua.
Em contrapartida a isso, é dever dos governantes encará-los como pessoas que necessitam, mais do que a maioria, de cuidado e auxílio e não de mais entraves como se é apresentado pela arquitetura hostil.
Aliás, a devolução da dignidade a esses moradores começa ainda mesmo nas ruas, principalmente não tirando deles o mínimo de estrutura.
Não que seja o correto tratar desses grupos a fim de mantê-los na rua, mas é preciso iniciar os tratamentos ali mesmo, dando-lhes alimentação, vestuários, agasalhos, higiene, atendimento médico, psicológico de forma a tentar reintegrar cada indivíduo à sociedade.
Por fim, é necessário que se tenha em mente, que o conforto a dar para esses indivíduos começa a partir de uma arquitetura acolhedora, que venha a mantê-los à salvo enquanto não se verifique destinos mais dignos a estas pessoas.
É necessário que a dignidade para eles se inicie na construção de centros de acolhimentos habitáveis, mesmo que provisórios ou mesmo que ainda nas ruas. É necessário que haja a construção de tendas com profissionais capacitados para cuidar dessas pessoas, mais uma vez, mesmo que seja nas ruas. É imprescindível que haja locais arejados para curtas estadias, lixeiras, banheiros públicos e postos de apoio para qualquer cidadão, em qualquer situação.
Dessa forma, não é difícil encarar a rua com outros olhos: com olhos acolhedores. Por mais que seja uma situação excepcional e temporária.
Se é pela rua que o Poder Público pode conceder à essas pessoas o acesso à sua dignidade, então, que seja por ela.
Não através de uma estruturação discriminatória que force o indivíduo a buscar outra forma de sobreviver, mas com uma arquitetura acolhedora, com o Estado presente e a segurança social apta a promover a mudança que já se ponta nos textos legais do nosso Brasil.
Por fim, verifica-se que para mudar esse contexto é necessário seguir uma série de passos estratégicos e respaldados com humanidade e respeito aos administrados em situação vulnerável.
Começando pelas ruas, dando condições mínimas de dignidade e, posteriormente, preparando cada família ou cada indivíduo para a obtenção definitiva de sua dignidade e acesso ao lar.
Nunca se tratará de dar uma mera casa para a pessoa em situação de rua, mas sim, dar-lhe condições de se reerguer e voltar ao convívio social com dignidade.
Tratando dos desamparados na medida de suas necessidades ao dar alimentos, roupas, agasalhos, tratamento psicológico, tratamentos relacionados ao combate do vício e do uso de drogas.
Dando-lhes acolhimento e moradia temporária com vistas à inseri-los no mercado de trabalho.
Dando-lhes, por fim, meios para subsistência e evolução social, de modo que antes da posse de uma moradia, o mesmo tenha uma vida digna e capaz de permanecer em sociedade com qualidade de vida. Na qual moradia em si, seja apenas um meio para o exercício de sua dignidade, e não um fim praticamente impossível de se reconquistar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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