Resumo: O presente artigo aborda acerca de um dos maiores problemas do Sistema Penal no Brasil, a Seletividade Penal, intrínseca no nosso ordenamento jurídico, bem como trabalha com uma de suas derivações coercitivas, a Teoria do Etiquetamento. Nessa senda, baseando-se no atual cenário social e político brasileiro e levando em consideração o preconceito e a desigualdade, dois fatores que atingem pessoas socialmente desfavorecidas, a seletividade penal e o etiquetamento são agentes mútuos na criminalização injusta desse determinado grupo de pessoas, deixando-os à mercê de sua própria sorte e fazendo com que qualquer um deles seja um dos tantos “selecionados”. A falta de proporcionalidade e imparcialidade quando da aplicabilidade de sanções faz com que seja ignorado o verdadeiro significado de justiça, evidenciando, cada vez mais, a crueldade imposta por um sistema penal defasado e uma sociedade preconceituosa, ferindo os direitos humanos e os princípios regentes do Direito Penal no Brasil.
Palavras-chave: Seletividade. Etiquetamento. Criminalização. Preconceito. Desigualdade.
1. INTRODUÇÃO
Em todas as esferas jurídicas do Brasil a preconização da igualdade de tratamento por parte dos órgãos Judiciários, Policiais, Legislativos e pelo Ministério Público, é algo que, infelizmente, nunca foi realmente desenvolvido e não acontece durante a prática jurídica, tanto em fases processuais quanto em fases pré-processuais.
A justiça criminal no nosso país, por mais que não existam indícios de autoria, justa causa, materialidade de delitos, vê mais facilidade em associar a prática criminosa às pessoas que detém um caráter prejudicado perante a sociedade, indivíduos mais expostos aos julgamentos e ao sistema impositivo penal brasileiro.
Sendo assim, é de fácil denotação que o estigma de criminalidade é criado e desenvolvido no nosso dia a dia, alimentado pela própria sociedade brasileira, pelos meios de comunicação, pelos órgãos de controle social, dando a entender que o fenômeno jurídico capaz de definir o crime não mais se baseia na “ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social”3, mas sim em quem pratica o crime. Segundo Michel Focault “o conceito de que o crime é de toda uma classe de pessoas e os criminosos pertencem à última à última fileira da ordem social, constituído a delinquência (...)”4.
Alicerçado nesse pensamento, crime e o criminoso então seriam definidos por aquele que, aparentemente, são classificados como negros, pobres ou “favelados”.
A falaciosa “democracia social”, que há muito tempo já não se encaixa mais na sapiência alcançada pela sociedade e pelo Direito, não consegue ser abolida de muitos indivíduos e das máquinas jurídicas estatais, os quais continuam a promover a inferioridade de raças no país e deslegitimar pessoas em razões de suas peculiaridades e seus infundados estereótipos sociais.
Baseado nisso, através deste artigo será feita uma análise crítica ao sistema penal brasileiro, fazendo alusão a princípios constitucionais, dispositivos legais e teorias que comprovem a ultrapassagem dos limites jurídicos praticada por ele, deixando claro que a aplicabilidade da Lei Penal tem relação com a construção do estereótipo e que a exclusão social é incisiva contra aqueles que estão à margem da sociedade, que se encaixam nos fatores de vulnerabilidade social, promovendo a opressão e punição dos “indesejáveis”.
2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” é o que está positivado no art. 5º, inciso I, da Constituição Federal Brasileira. Também chamado de princípio da isonomia, o princípio da igualdade é um dos mais importantes princípios regentes de todas as esferas jurídicas brasileiras, inclusive no Direito Penal.
Em relação a isso, veja-se Pimenta Bueno (1978), que com sabedoria escreveu:
A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania.5
Em tese seria assim que aconteceria, conquanto, na prática, não existe respeito algum à isonomia e o famoso discurso de “A lei é igual para todos” deixa de fazer sentido.
Celso Antônio Bandeira de Mello explica que as desigualdades não podem ser consideradas quando há infração desse princípio igualitário:
tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada. Exemplificando para aclarar: suponha-se hipotética lei que permitisse aos funcionários gordos afastamento remunerado para assistir a congresso religioso e o vedasse aos magros. No caricatural exemplo aventado, a gordura ou esbeltez é o elemento tomado como critério distintivo. Em exame perfunctório parecerá que o vício de tal lei, perante a igualdade constitucional, reside no elemento fático (compleição corporal) adotado como critério. Contudo, este não é, em si mesmo, fator insuscetível de ser tomado como fato deflagrador de efeitos jurídicos específicos. O que tornaria inadmissível a hipotética lei seria a ausência de correlação entre o elemento de discrímen e os efeitos jurídicos atribuídos a ela. Não faz sentido algum facultar aos obesos faltarem ao serviço para congresso religioso porque entre uma coisa e outra não há qualquer nexo plausível.6
Partindo desse pensamento, entende-se que o tratamento equânime das pessoas que possuem capacidade plena de direitos e deveres, deveria, então, ser um mecanismo social para nortear os cidadãos.
Mas, baseado no exemplo dado por Bandeira de Mello e os fatores de disparidade de análise jurídica, é cabível a indagação: Quais critérios racionais são levados em consideração quando do tratamento jurídico diferenciado (piorado) de determinadas pessoas socialmente desfavorecidas?
A resposta encontra-se nos fatos em que nos deparamos, rotineiramente, de preconceito estampado em capas de jornais, nos noticiários televisivos, nos processos judiciais.
É cediço e de conhecimento coletivo de que há desigualdade quando do tratamento a pessoas que cometem crimes iguais e recebem processamentos e desfechos diferentes, em razão das suas peculiaridades, as quais, infelizmente, geram o estigma social. Sobre isso, de novo Bandeira de Mello leciona que não se podem interpretar legalmente como desigualdades certas situações, quando, em casos que a lei não haja “assumido” o fator entendido como desequiparador. Isto é, circunstâncias ocasionais que proponham fortuitas, acidentais, cerebrinas ou sutis distinções entre categorias de pessoas não são de considerar. 7
Ademais, Seabra Fagundes já referiu a respeito da igualdade e apontou o que seria suscetível de acontecer caso ela não fosse respeitada pelo legislador:
o cânone da igualdade perderia por inteiro a sua significação ( ... ) se o Poder Legislativo o pudesse desconhecer. As desigualdades não nasceriam eventualmente de atos administrativos ou sentenças, mas se multiplicariam a critério do órgão legiferante, exatamente aquele que, pelo largo alcance dos seus atos quanto às pessoas, maior número de situações pode afetar com tratamento discriminatório.8
De fato, uma vez que a isonomia não foi respeitada isso deixou de ser apenas suposição. A norma foi singularizada e hoje abrange apenas determinados indivíduos, deixando de lado o fato de ter sido positivada para alcançar todos os que devem ser tratados de forma condizente.
A maneira com que a justiça é “feita” se tornou algo simplório, na medida em que a equidade de tratamento, que está, em tese, positivada pela ordem jurídica não pode ser alcançada pelo fato da desigualdade ser imperativa no tratamento penal brasileiro.
Aliás, considerar o referido fator igualitário talvez seja a principal forma de nortear os indivíduos para que tenhamos uma concreta evolução da humanidade, como espécie e sociedade. Nesse sentido, Norberto Bobbio diz que a “igualdade entendida como equalização dos diferentes é um ideal permanente e perene dos homens vivendo em sociedade. Toda superação dessa ou daquela discriminação é interpretada como uma etapa do progresso da civilização” e, de forma clara, aponta os três principais empecilhos para chegarmos ao tão sonhado igualitarismo jurídico: “jamais como em nossa época foram postas em discussão as três fontes principais de desigualdade entre os homens: a raça (ou de modo mais geral, a participação num grupo étnico ou nacional), o sexo e a classe social.”9
Isso posto, “o requisito de igualdade encerra unicamente a exigência de que ninguém, de forma arbitrária e sem razão suficiente para isso, seja submetido a um tratamento que difere daquele que se dá a qualquer outra pessoa”.10
Evidentemente, o desrespeito em relação a esse princípio constitucional acarreta consequências à sociedade, atribuindo valoração desfavorável ao “todo” brasileiro.
O que pode ser julgado por nós como imoral não é poder haver diferenciações de tratamento, mas sim haver tratamento desigual quando não existir razão para isso.
3. O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO
O verbo criminalizar é conceituado pelo julgamento de um ato, a partir do Código Penal Brasileiro, como um crime. A partir dessa ideia, uma atitude deverá ser criminalizada quando houver a insubordinação de um indivíduo em detrimento aos dispositivos penais que regem a vida em sociedade.
Ocorre que, no Brasil, a criminalização, basicamente depende do ponto geográfico em que uma pessoa reside, o seu tom de pele e outros fatores sociais preconceituosos que fazem com que seja clara a forma como quase sempre a vida de um indivíduo vale mais do que a de outro.
Teresa Caldeira explica o motivo:
se a desigualdade [social] é um fator explicativo importante, não é pelo fato de a pobreza estar correlacionada diretamente com a criminalidade, mas sim porque ela reproduz a vitimização e a criminalização dos pobres, o desrespeito aos seus direitos e a sua falta de acesso à justiça11.
Portanto, a conjuntura criminosa estará direcionada àqueles que forem encaixados nos requisitos passíveis de serem criminalizados, atribuindo a eles. Ratificando isso:
um status atribuído a determinados indivíduos por parte daqueles que detêm o poder de criar e aplicar a lei penal, mediante mecanismos seletivos, sobre cuja estrutura e funcionamento a estratificação e o antagonismo dos grupos sociais têm uma influência fundamental.12
Assim sendo, o processo de criminalização, infelizmente, é norteado pela desigualdade e pelo preconceito e é formado a partir da fusão da Criminalização Primária e da Criminalização Secundária.
3.1. Criminalização Primária
Tem-se como Criminalização Primária “o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”13.
A partir daí começa o caminho para que uma pessoa seja etiquetada e vista pela sociedade como um criminoso. É o processo seletivo penal fazendo jus ao nome e escolhendo seu mártir.
Edmundo Campos Coelho aborda sobre a criminalização primária e certa feita disse que
Ainda assim, por qual razão estes crimes white collar são tratados como casos civis, fugindo ao enquadramento nos códigos penais? São vários os fatores aduzidos por Sutherland: são crimes cometidos por pessoas da mais alta respeitabilidade e status social (empresários, médicos, diretores de banco etc.) no exercício de suas ocupações. Os responsáveis pela elaboração e aplicação das leis receiam antagonizar os homens de negócio; existe homogeneidade cultural entre legisladores, juízes e empresários em geral (pertencem ou participam de um mesmo universo moral); existe entre os legisladores a crença de que estes respeitáveis cidadãos não reincidirão se lhes for aplicada uma legislação apenas amena e, finalmente, homens de negócios, médicos e outras categorias de prestígio simplesmente não se enquadram no estereótipo do criminoso.
(...) Este atributo particular dos crimes white collar chama a atenção para o fato de que todo comportamento que tem uma forma desaprovada, tem também formas objetivamente idênticas que produzem ou aprovação, ou reações apenas neutras. Mas estas formas não estão distribuídas igualmente entre os estratos sociais; isto é, a escolha de uma delas está estruturalmente condicionada. Os que cometem o furto ou o roubo convencional certamente escapariam da justiça criminal se tivessem acesso a meios simbólicos (letras de câmbio, promissórias, papéis negociáveis) e aos processos de sua manipulação a fim de transferir para si os bens ou direitos de outras pessoas sem o pleno conhecimento ou consentimento delas. Os meios legais ou legítimos para a prática de atos ilegais ou ilegítimos são, entretanto, distribuídos seguindo a linha das divisões socioeconômicas: o acesso a eles e o conhecimento de sua operação requer um capital humano considerável (nível de instrução elevado, ocupações de prestígio e altamente especializadas, período relativamente longo de aprendizagem etc.). Em síntese, embora cometam atos objetivamente idênticos, ao marginal caberá às formas desaprovadas do comportamento; aos indivíduos de status elevado, as formas aprovadas ou neutras”. 14
De modo claro, observa-se de que o tratamento, desde a confecção da Lei Penal lida com disparidade aqueles que, aos olhos da sociedade são degradados e criminalizados como transgressores convencionais e que “empresários, médicos, advogados, juízes, políticos e outras categorias de status semelhante acham-se protegidas do estigma que acompanha o rótulo de criminoso”15.
Nessa senda, entende-se que as condutas são “consideradas criminosas pelo legislador, não pelo critério do dano social que provocam, mas pela habitualidade com que tais condutas são praticadas, assim como pelo estereótipo atribuído pela sociedade ao suposto delinquente”16.
Com isso, a razoabilidade e a proporcionalidade, princípios regentes do Direito no Brasil, são esquecidos e punições atingem apenas uma camada social propícia a ser ferida, enquanto, quando devem alcançar indivíduos socialmente favorecidos há falha sistemática.
Para Eugenio Zaffaroni:
(a) o vínculo entre o injusto e o autor se estabelece levando em conta a forma em que ocorre a perigosidade do sistema penal, que pode ser definida como a maior ou menor probabilidade de criminalização secundária que recai sobre uma pessoa. (b) O grau de perigosidade do sistema penal para cada pessoa está dado, em princípio, pelos componentes do estado de vulnerabilidade desta para o sistema. (c) O estado de vulnerabilidade se integra com os dados que formam seu status social, classe, colocação laboral ou profissional, renda, estereótipo, que se aplica, ou seja, por sua posição dentro da escala social. (d) Não obstante, no geral a relação entre poder e vulnerabilidade ao poder punitivo é inversa, pois que o poder opera como garantia de cobertura frente ao sistema penal.
(...) é possível afirmar em geral que entre as pessoas de maiores rendas e mais próximas ao poder, o risco de criminalização é escasso (baixo estado de vulnerabilidade ou alta cobertura) e inversamente, entre os de menores rendas e mais longe do poder, o risco é considerável (alto estado de vulnerabilidade, baixa ou nula cobertura). Não obstante, alguns dos primeiros são selecionados; e entre os últimos, se seleciona com muita maior frequência, sempre se tratando de uma ínfima minoria.17
Vera Regina de Andrade, em sua obra A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal corrobora para essa linha de entendimento, patenteando que
o processo de criação de leis penais que define os bens jurídicos protegidos (criminalização primária), as condutas tipificadas como crime e a qualidade e quantidade de pena (que frequentemente está em relação inversa com a danosidade social dos comportamentos), obedece a uma primeira lógica da desigualdade que, mistificada pelo chamado caráter fragmentário do Direito Penal pré-seleciona, até certo ponto, os indivíduos criminalizáveis. E tal diz respeito, simultaneamente, aos conteúdos e não conteúdos da lei penal.18
De tal modo, estando o ordenamento jurídico penal suscetível ao retrocesso pregado pelos Legisladores nos âmbitos políticos, sociais e principalmente, constitucionais e criminais, consequentemente, “houve uma grande expansão de criminalização primária, tanto no âmbito do Código Penal, quanto no âmbito das leis extravagantes.”19
Fazendo uma ligação com os dias que correm, tendo em vista o crescimento de condutas criminalizadas e tipificadas como delitos, em praticamente todas as esferas de atuação humana existe uma regra que, quando descumprida, causará uma consequência na alçada criminal.
Todavia,
vemos que as classes mais poderosas, que justamente por possuírem maiores e melhores condições de mobilização, articulação, de formação de opinião, e por melhor “conhecerem as regras do jogo”, tornam-se as grandes beneficiadas perante a legislação penal, quer seja em razão de pouco serem submetidas a ela, quer seja em virtude de serem incriminados, condenados e aprisionados, aqueles que lesam seus interesses. São fomentadas assim, desde o processo de elaboração das leis penais, as desigualdades sociais, a manutenção de privilégios, visto que a legislação penal passa a servir de instrumento de manutenção do status social em que se encontram aqueles que pertencem nas classes sociais mais altas20
Sendo assim, quanto aos “high crimes and misdemeanors” ou os “crimes graves e má governança”, cometidos integralmente por pessoas detentoras de funções elencadas na alta cúpula da sociedade, tendo em vista a conjuntura governamental e penal brasileira, é possível dizer que estas violações serão sempre que possível, negligenciadas, uma vez que é mais conveniente a aplicação das sanções penais para os indigentes, a maior parte da população - maior em número de pessoas, mas não em influência e poder -, do que fazer valer a medida punitiva aqueles que detém os atributos de beneficência social.
Na verdade, o tratamento igualitário sempre foi uma ilusão galgada à promover a arbitrariedade. A própria Lei Penal age de forma segregadora e parcial, depreciando as camadas sociais fragilizadas.
Por tal motivo, Sérgio Salomão Shecaira diz que:
Quando os outros decidem que determinada pessoa é non grata, perigosa, não confiável, moralmente repugnante, eles tomarão contra tal pessoa atitudes normalmente desagradáveis, que não seriam adotadas com qualquer um. São atitudes a demonstrar a rejeição e a humilhação nos contatos interpessoais e que trazem a pessoa estigmatizada para um controle que restringirá sua liberdade. É ainda estigmatizador, porque acaba por desencadear a chamada desviação secundária e as carreiras criminais.21
Desta forma, o etiquetado é estigmatizado pelos desvios de conduta estipulados pela Lei, levando em consideração o seu grau de influência na esfera social, fazendo-se valer assim, o estereótipo de criminoso que ficará estampado nele.
Por conseguinte, essa repulsa desferida contra as pessoas não agradáveis tem cunho altamente lesivo, impulsionando o processo de criminalização e formando um perfil maligno perante a sociedade, sedimentando a ideia de que o repertório penal apenas é voltado para a subsistência das diferenciações sociais.
É a preconização do Modus Operandi seletivo do Estado, exercendo o manejo social voltado à exclusão.
3.2. Criminalização Secundária
Na criminalização secundária é quando entram em cena os Órgãos de Controle Social, ou seja, mecanismos que tem o poder de estabelecer a “ordem social”, como a Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário, órgãos detentores do poder de divergir entre si, mas que, em grande parte das vezes, não divergem em deixar de lado o principal objeto da ação penal, o fato, com todas as suas circunstâncias, voltando-se apenas em punir a quem for selecionado. Nas palavras de Eugênio Zaffaroni:
a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências do Estado detectam pessoas que se supõe tenham praticado certo ato criminalizável primariamente e as submetem ao processo de criminalização.22
Antonio Molina também diz que:
Os agentes de controle social informal tratam de condicionar o indivíduo, de discipliná-lo através de um largo e sutil processo (...) Quando as instâncias informais do controle social fracassam, entram em funcionamento as instâncias formais, que atuam de modo coercitivo e impõem sanções qualitativamente distintas das sanções sociais: são sanções estigmatizantes que atribuem ao infrator um singular status (de desviados, perigoso ou delinquente). 23
Logo, o eventual distanciamento social em que encontram-se os indivíduos desfavorecidos os tornam passíveis, aos olhos do órgãos de controle social, de serem auferidos. É cabível dizer ainda, que
esse processo seletivo efetuado pela agência policial, aliado a tão decantada violência policial e a outro desvio funcional, qual seja, ao da corrupção, distanciam ainda mais pobres e ricos, quando da aplicação da lei penal, provocando verdadeiro sentimento de impunidade por parte dos mais poderosos e de desigualdade entre os mais fracos, para quem a lei penal realmente atua.24
Isso, seguindo trâmites criminalizadores, a investigação, a prisão, a judicialização do delito, com consequente condenação e cárcere, “pois é mais barato excluir e encarcerar do que restabelecer o status de consumidor, através de políticas públicas de inserção social”25.
Nesse sentido, as sanções penais deveriam ter caráter exemplar à todos os indivíduos da sociedade, mas na verdade
a intervenção do sistema penal, especialmente as penas detentivas, antes de terem um efeito reeducativo sobre o delinquente determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira criminosa. 26
Assim, apenas fomentando o crescimento da ação de criminalização de um indivíduo. Nesse passo, é onde a seletividade penal encontra seu desfecho, satisfazendo o sistema penal:
a criminalização que produz o funcionamento do sistema penal nunca coincide com a orientação e medida que determina abstratamente a lei penal, a ponto de nem sequer sabermos se é desejável que assim seja, porque se houvesse uma perfeita harmonia, quase ninguém deixaria de ser criminalizado, embora fosse por fatos secundários ou de escassa importância.27
Portanto, invariavelmente, “a justiça que o suposto infrator recebe torna-se resultado, não de uma culpa individual e uma punição proporcional, mas de um processo negociado, resultante de pressões políticas ou burocráticas, e não de obediência a padrões absolutos”.28
Com o pleno agrupamento desses fatores estigmatizantes, as agências de controle social atuam de forma ainda mais taxativa desferindo a toda a hedionda afeição pela punição contra os mais vulneráveis, restando completa a estampa criminalizadora que preencherá o peito de qualquer indivíduo que seja “selecionável”.