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Seletividade penal no Brasil e a teoria do etiquetamento

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Resumo:


  • O artigo aborda a Seletividade Penal e a Teoria do Etiquetamento no Brasil, ressaltando a desigualdade e o preconceito como agentes na criminalização injusta de grupos sociais desfavorecidos.

  • A criminalização se dá de forma seletiva, priorizando indivíduos socialmente vulneráveis, enquanto indivíduos influentes muitas vezes escapam das punições, evidenciando a falta de proporcionalidade e imparcialidade no sistema penal brasileiro.

  • A presunção de inocência, garantida pela Constituição, é desrespeitada em um ambiente onde a desigualdade, o preconceito e a seletividade penal contribuem para a estigmatização e exclusão de determinados grupos sociais, formando um verdadeiro espetáculo de injustiça.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. A SELETIVIDADE PENAL NO BRASIL

Segundo a ordem constitucional democrática brasileira, a tutela do acervo jurídico deve ser algo essencial e por esta razão qualquer atentado à isso deverá ser inibido pelo sistema penal, tanto para a sanção dessas condutas, quanto para servir de exemplo para a sociedade.

À respeito do Sistema Penal Brasileiro

(...) detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-Ios como infrações penais, cominando-Ihes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação.

(...) tem por escopo explicar a razão, a essência e o alcance das normas jurídicas, de forma sistemática, estabelecendo critérios objetivos para sua imposição e evitando, com isso, o arbítrio e o casuísmo que decorreriam da ausência de padrões e da subjetividade ilimitada na sua aplicação. Mais ainda, busca a justiça igualitária como meta maior, adequando os dispositivos legais aos princípios constitucionais sensíveis que os regem, não permitindo a descrição como infrações penais de condutas inofensivas ou de manifestações livres a que todos têm direito, mediante rígido controle de compatibilidade vertical entre a norma incriminadora e princípios como o da dignidade humana29

Destarte, a eventual punição de quem agir de forma oposta ao preconizado pelas normas de controle social, deverá ser de forma igualitária aplicada.

Acontece que, no Brasil, as diferentes camadas sociais são notórias perante a sociedade e assim o é em relação ao sistema penal. Negros, “favelados”, pobres e os que detêm ficha criminal “carimbada” são taxados de criminosos e estigmatizados quando, por algo que fizeram, em decorrência da realidade social em que vivem ou da diferença de cor em relação a da sociedade elitista, sendo assim associados a certa conduta criminosa. Zygmund Bauman já preconizou a respeito dessa questão:

Os mecanismos de segregação e exclusão pode ou não ser complementado e reforçado por fatores adicionais de raça/pele, mas no limite todas as suas variedades são essencialmente a mesma: ser pobre em uma sociedade rica implica em ter o status de uma anomalia social e ser privado de controle sobre sua representação e identidade coletiva. 30

Ainda nesse sentido:

a clientela do sistema penal está originalmente conformada pelo racismo, que aparece como a grande âncora a seletividade. Dizer que o sistema age preferencialmente sobre os negros, que os prefere, portanto, significa dizer – como acompanhamos no decurso do processo histórico- que esse é um aparelho formatado, num primeiro plano, para as pessoas negras e que, consequentemente, para além das questões de classe subjacentes terá seu alvo principal centrado em sua corporalidade. É essa a condicionante responsável pela quebra de lógica imunizadora dos indivíduos negros das classes média e alta, que, com frequência são atingidos por um sistema penal que está vocacionado para o controle da negritude, atingindo, ainda que em proporções diferentes, todos os negros, ontem escravos e libertos, hoje favelados e novos ricos. A suspeição generalizada que, como vimos, acompanhou toda a trajetória da população negra no país, sinaliza, assim, para as disposições inequívocas do sistema penal em priorizar as intervenções sobre o segmento, desde uma perspectiva que sobrepõe a negritude com elemento negativo, a todas as outras dimensões caracterizadoras dos indivíduos. 31

E corroborando com isso, Zaffaroni:

Por tratar-se de pessoas desvalorizadas, é possível associar-lhes todas as cargas negativas existentes na sociedade sob forma de preconceitos, o que resulta em fixar uma imagem pública do delinquente com componentes de classe social, étnicos, etários, de gênero e estéticos. 32

À vista disso, “estes estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada, deixando de fora outros tipos de delinquentes”33.

Nessa senda, aos que preenchem tais requisitos e são, de forma seletiva, escolhidos e incorporados no sistema punitivista brasileiro, que, tão cegamente é movido por fazer “justiça”, levando em consideração apenas o racismo estrutural intrínseco no “Estado democrático de direito”, como, em tese, é positivado no Art. 1º da Constituição Federal Brasileira, mas que na prática não respeita a dignidade da pessoa humana, a cidadania e não leva em consideração dois dos mais importantes princípios do Direito Penal e do Processo Penal no Brasil, a presunção de inocência e a ampla defesa.

O Professor Alessandro Baratta trabalha acerca da desigualdade do Direito Penal dizendo que

(...) a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade.34

Agindo de forma incisiva e rápida, patentemente vemos o discrímen atuando, caracterizando a violência operacional da engrenagem punitiva estatal. Infelizmente:

o crime não é uma virtualidade que o interesse ou as paixões introduziram no coração de todos os homens, mas que é coisa quase exclusiva de uma certa classe social: que os criminosos que antigamente eram encontrados em todas as classes sociais, saem agora “quase todos da última fileira da ordem social” […] nessas condições seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma forma; que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem.35

Na verdade, a forma de funcionamento do nosso sistema penal é clara, e perfeitamente descrita por Nilo Batista

Seletividade, repressividade e estigmatização são algumas características centrais de sistemas penais como o brasileiro. Não pode o jurista encerrar-se no estudo - necessário, importante e específico, sem dúvida - de urn mundo normativo, ignorando a contradição entre as linhas programáticas legais e o real funcionamento das instituições que as executam. 36

E mais fácil ainda perceber isso quando réus são condenados em razão da fragilidade social em que encontram-se, como por exemplo, decisões movidas pelos fatores fenotípicos do réu: no estado do Paraná uma juíza citou a raça ao condenar um réu negro por organização criminosa. Na sentença prolatada pela magistrada da 1ª Vara Criminal de Curitiba contém a afirmativa de que o réu era “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta”37

A clareza de percepção da seletividade no âmbito criminal no nosso país faz com que tenhamos inúmeras decisões análogas a essa, onde, aos olhos do Estado, aquele indivíduo que encontra-se em um status de inferioridade social é um possível marginal exclusivamente pelo fato de ser pobre, negro ou morar na periferia.

4.1. A Presunção de Inocência

Diferentemente de outros princípios bases da civilização, a presunção de inocência é algo que podemos chamar de “contra natura”, uma vez que o natural é nós não presumirmos a inocência de um indivíduo quando ele está relacionado a algum crime. Pois bem, incabível e imoral dizermos que isso é “justo”.

A presunção de inocência está positivada no art. 5º, LVII, da Constituição de 1988, e diz que “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, portanto, dá a garantia ao indivíduo de ele não ser considerado delinquente pelo fato que está sendo processado até que não haja mais trâmites processuais a serem superados, ou seja, até o término da ação penal. Garante ainda ao indivíduo que ele poderá dispor de todo e qualquer meio de prova que lhe for cabível, visando provar a sua não culpabilidade.

Conforme afirma René Ariel Dotti, o princípio da presunção de inocência tem a função de

garantir ao acusado o exercício dos direitos humanos civis e políticos enquanto não forem direta e expressamente afetados pela sentença condenatória transitada em julgado ou pelas decisões cautelares.38

Em relação a isso afirma Maurício Zanoide Moraes:

Ao não se demonstrar a culpa do imputado ao final da persecução deve ser declarado que ele ‘continua’ inocente. Já era inocente antes da persecução, permaneceu assim durante todo o seu curso e, ao final, se não condenado, é declarado que ele continua inocente (como sempre foi). É nesse ponto que se compreende por que se deve dizer que há um ‘estado de inocência’ que acompanha o cidadão desde o seu nascimento até que se declare sua culpa, após um devido processo legal, por meio de provas lícitas, incriminadoras e suficientes39

Nesse sentido, Alexandra Vilela diz que “sentença condenatória irrecorrível é o fator formal discriminador eleito pela Constituição para a ruptura da igual liberdade dos homens”40.

Já para Júlio Fabrinni Mirabete, é dizer que existe um “estado de inocência”41, já que o indivíduo réu ou indiciado não é o culpado até que haja uma sentença condenatória dizendo que ele, de fato, é culpado por cometer o crime.

Vejamos, é positivo na Carta Magna Brasileira a presunção de inocência ou não culpabilidade, mas por que é difícil tornar-se uma maneira natural de pensamento?

No caso em concreto, não deverá haver a hierarquização por parte do poder de punir do Estado, devendo sempre prevalecer a presunção de inocências quando houver indícios para tanto. Não deverá ser categorizado como culpado aquele indivíduo que não tem sentença condenatória transitada em julgada contra si.

Mas, apesar do estado de inocência ter sido, corretamente, positivado e assegurado pelo Legislador, é ele próprio que regride ao regime ditatorial quando opera de forma impositiva no tratamento processual.

A presunção de inocência nada mais é do que um dever do Estado, o dever de tutelar o indivíduo contra uma persecução criminal, manter inerte a não culpabilidade de alguém sem que haja condenação para agir de forma contrária a isso.

De forma inabitual essa prerrogativa é respeitada pelos órgãos públicos, quem dirá pelos particulares, que, por sua vez, também tem sua parcela de culpa na proliferação da criminalização e da desigualdade.

Olhando as grandes massas sociais, temos como um dos culpados por esse tipo de preconceito as mídias, que através de “show de realidade” produzem vilões para o seu público, estando assim, se concretizando o Processo Penal do Espetáculo.

4.2. O Processo Penal do Espetáculo

A tecnologia é potencializada diariamente, cada vez mais atingindo um número maior de pessoas. Maneiras de comunicação, trabalho, entretenimento são fomentadas por esse enriquecimento de dados.

Evidentemente, a criminalização de um indivíduo também pode ser lépida através dessas plataformas de divulgação.

As grandes plataformas midiáticas têm o poder de divulgar informações e produzir imagens e conteúdos em escalas incalculáveis, isso vem com a grande sede por audiência. Não importa como, não importam motivos, o único objetivo é a satisfação de seu público e como consequência, independentemente de culpado ou não, a mídia transgride a dignidade da pessoa humana e a democracia.

Nesse sentido, o mestre Rubens Casara afirma:

o espetáculo é uma construção social, uma relação intersubjetiva mediada por sensações, em especial produzidas por imagens e, por vezes, vinculadas a um enredo. O espetáculo tornou-se também um regulador das expectativas sociais, na medida em que as imagens produzidas e o enredo desenvolvido passam a condicionar as relações humanas: as pessoas (que são os consumidores do espetáculo e exercem a dupla função de atuar e assistir), influenciam no desenvolvimento e são influenciadas pelo espetáculo.

Em meio aos vários espetáculos que se acumulam na atual quadra histórica, estão em cartaz os “julgamentos penais”, em que entram em cena, principalmente, dois valores: a verdade e a liberdade. O fascínio pelo crime, em um jogo de repulsa e identificação, a fé nas penas, apresentadas como remédio para os mais variados problemas sociais (por mais que todas as pesquisas sérias sobre o tema apontem para a ineficácia da “pena“ na prevenção de delitos e na ressocialização de criminosos), somados a um certo sadismo (na medida em aplicar uma “pena” é, em apertada síntese, impor um sofrimento) fazem do julgamento penal um objeto privilegiado de entretenimento.42

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Outrossim, a espetacularização dos trâmites não passa da mitigação da justiça. A ampla defesa é ferida com o apontamento do inimigo público, que nem sequer foi condenado por um delito, que, em tese, foi por ele praticado. A presunção de inocência não existe mais e a sua essência foi dissolvida. Para o agrado social, a deturpação de fatos, imagens, frases são frequentes e ao invés de uma situação em que a sociedade estaria sendo a beneficiada de tal ato, está na verdade sendo a mais prejudicada, uma vez que a situação de desigualdade e estigma estará mais forte a cada ato como esse, ofensor aos direitos humanos básicos.

O clamor social não se atenta ao ser humano exposto a isso. Nesse sentido:

Os julgamentos são influenciados pela formação e, também pelo que os meios de comunicação nos apresentam como verdade. Somos cruéis em nossos julgamentos. Na maioria das vezes, esquecemos que eles são mediados. Se não forem pela imprensa, podem ser pelos nossos próprios preconceitos, pelo inconsciente ou pela linguagem. [...] os maniqueísmos se apresentam e o veredicto se resume à velha luta entre o bem e o mal. Só que os indivíduos são muito mais complexos do que isso.43

Ainda nessa senda, acerca do monopólio televisivo e midiático, onde o conteúdo é produzido, é utilizada da seletividade social das classes dominantes, violando o direito fundamental à imagem de um determinado contingente da sociedade44. A criminalização de negros, pobres e “favelados” é foco da mídia brasileira, a chamada “criminologia midiática”45.

Ainda acerta Zaffaroni quando diz que:

A criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pessoas decentes frente a uma massa de criminosos, identificada através de estereótipos que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. O eles da criminologia midiática incomodam, impedem de dormir com as portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e por isso devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos os nossos problemas. Para tanto, é necessário que a polícia nos proteja de suas ciladas perversas, sem qualquer obstáculo nem limite, porque nós somos limpos, puros e imaculados.46

Em tempos onde a impunidade e a dissimulação, política e social, extrapolaram o mínimo aceitável, a balbúrdia por justiça fez com que a sociedade fosse uma catapulta para que os órgãos de produção de conteúdo submetessem indivíduos à um tratamento saturado de punição, escancarando que o Processo Penal do Espetáculo (a punição de quem mais convém) está feito e que o público (a sociedade) ficará satisfeita.

Ainda, acerca da influência da mídia perante a sociedade, Nilo Batista diz que

Na televisão, os âncoras são narradores participantes dos assuntos criminais, verdadeiros atores – e atrizes – que se valem teatralmente da própria máscara para um jogo sutil de esgares e trejeitos indutores de aprovação ou reproche aos fatos e personagens noticiados. Este primeiro momento no qual uma acusação a alguém se torna pública não é absolutamente neutro nem puramente descritivo. A acusação vem servida com seus ingredientes já demarcados por um olhar moralizante e maniqueísta; o campo do mal destacado do campo do bem, anjos e demônios em sua primeira aparição inconfundíveis.47

Indubitavelmente é possível chegar a conclusão de que a mídia está totalmente interligada com o Direito Penal e com o Processo Penal, capaz de influenciar em decisões, prisões preventivas e, principalmente, na criminalização racial e da pobreza, sendo cabível neste momento mencionar e suplicar pelo apelo feito por Saramago em uma de suas obras: “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais”48.

Sobre os autores
Rafael de Bortolli Reichel

Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, campus São Jerônimo/RS. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Disciplina de TCC II, como requisito parcial para a obtenção de grau de bacharel em Direito.

Helena Lahude Costa Franco

Professora do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, campus São Jerônimo/RS, advogada criminalista e Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito de Coimbra, Portugal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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