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Seletividade penal no Brasil e a teoria do etiquetamento

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Resumo:


  • O artigo aborda a Seletividade Penal e a Teoria do Etiquetamento no Brasil, ressaltando a desigualdade e o preconceito como agentes na criminalização injusta de grupos sociais desfavorecidos.

  • A criminalização se dá de forma seletiva, priorizando indivíduos socialmente vulneráveis, enquanto indivíduos influentes muitas vezes escapam das punições, evidenciando a falta de proporcionalidade e imparcialidade no sistema penal brasileiro.

  • A presunção de inocência, garantida pela Constituição, é desrespeitada em um ambiente onde a desigualdade, o preconceito e a seletividade penal contribuem para a estigmatização e exclusão de determinados grupos sociais, formando um verdadeiro espetáculo de injustiça.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. A TEORIA DO ETIQUETAMENTO

Surgida em meados de 1960, nos Estados Unidos, há época a maior potência mundial e economicamente soberana perante as demais, a Teoria do Etiquetamento foi desenvolvida em consequência do contexto social vivido pelo país. As classes dominantes detinham todo o poder aquisitivo da sociedade, fazendo com que a desigualdade fosse irradiada no solo americano.

A partir dessa mudança de conjuntura socioeconômica do país, evidenciando as desigualdades, surgiu o pensamento acerca dos delitos e dos delinquentes e que eles seriam determinados a partir de alguns aspectos psicológicos, bem como a partir da sua cor, renda, ficha criminal e conduta social. Foi um marco determinante para que o padrão criminológico de estudos transcendesse para a criminologia crítica. O questionamento mudou de “quais eram os criminosos e como eles tinham aderido a esse rótulo?” para uma indagação sobre o porquê de certas pessoas serem definidas como criminosos, o porquê e por quem eles foram definidas dessa forma e quais as consequências disso.

Um dos principais pensadores acerca da Teoria do Etiquetamento, Howard Becker diz sobre esse princípio:

Os grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um ‘infrator’. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal. 49

Ao lado de Howard Becker, outros pensadores foram importantes para o desenvolvimento da Teoria do Etiquetamento, sendo os mais relevantes Erving Goffman, Edwin Lemert e Winfried Hassemer.

Para Winfried Hassemer “a criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela polícia, pelo ministério público e pelo tribunal penal, pelas instâncias formais de controle social"50 e ainda acerta quando ensina que:

A reprovação por ter aplicado a lei em prejuízo ao acusado, é rigorosa e deve ser mais rigorosa ainda em nossa cultura jurídica. Fora do debate público e jurídico acerca da exatidão da interpretação das leis não há nenhum critério correio de interpretação. Na luta pela interpretação correta, a proibição da analogia reforça os motivos daqueles que defendem uma relação estrita do pronunciamento judicial com o teor da lei e dos cépticos em face da atribuição teleológica-objetiva do sentido. Nem mais, mas também nem menos.51

À vista disso, é possível chegar a conclusão de que os delitos são cometidos pela pluralidade social, mas que somente tem caráter crimininalizatório para um ínfima fração de indivíduos e que o delito seria uma fábula entre a teoria e a veracidade, resultando ao final na etiquetagem deliberada a certos indivíduos e certos comportamentos sociais.

Sendo assim, fazendo uma convergência para o atual e histórico brasileiro, denota-se que alguns indivíduos são mais fáceis de serem punidos do que outros, nesse caso, sempre a classe menos favorecida, os pobres, os negros ou os “favelados” estarão expostos ao poder punitivo, enquanto a sociedade mais afortunada seguirá impune. Erving Goffman esclarece que “o indivíduo estigmatizado se define como não-diferente de qualquer outro ser humano, embora ao mesmo tempo ele e as pessoas próximas o definam como alguém marginalizado”52.

De fato, o normal seria tratarmos uniformemente as pessoas, apesar de suas individualidades, mas não existe racionalidade para tanto. Consequentemente, o que ocorre é que:

Enquanto o estranho está a nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torne diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo até, de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real.

(...) Uma discrepância entre a identidade virtual e a identidade real de um indivíduo. Quando conhecida ou manifesta, essa discrepância estraga a sua identidade social; ela tem como efeito afastar o indivíduo da sociedade e de si mesmo de tal modo que acaba por ser uma pessoa desacreditada frente a um mundo não receptivo.” 53

A partir daí a etiquetagem social começa a ser entabulada.

No entanto, é sabido que o agir varia de acordo com o seu conhecimento e, em que pese a particularidade do seu intelecto, bem como a interação social que ele tem. Em um compilado da vida de uma pessoa e do que ela representa perante a sociedade, isso irá ditar as atitudes a serem, por elas, tomadas, bem como as formas de punição à serem escolhidas pelos órgãos detentores do poder de punir.

Para Peter-Alexis Albrecht, “a criação de normas do Direito Penal ocorre no quadro das relações sociais de poder. Os interesses estruturais dominantes precipitam-se na criação seletiva do Direito”54.

Conclui-se assim, que o comportamento tem sim, relação com o desvio de conduta de cada pessoa, mas a “parcela maior de culpa” deve ser cobrada dos problemas sociais inerentes no país enquanto comunidade e enquanto legislador, refletindo diretamente no sistema penal.

Destarte, esses rótulos discriminatórios impostos à determinados sujeitos nos levam a criminalização em elevados níveis, por exemplo:

Imaginemos uma mulher que tenta sair de uma joalheria com um caro e não pago bracelete quando é barrada pelos seguranças. Se essa aparente tentativa de subtração à coisa alheia móvel (art. 155. do Código Penal) será tomada como crime, sintoma compreensível de cleptomania ou mera distração, vai depender menos dos detalhes da conduta tentada do que do perfil da apontada infratora. A tese da distração cai bem, por exemplo, se a suposta tentativa fosse realizada por uma cliente habitual da joalheria; assim como a tese da cleptomania se adequaria perfeitamente se a acusada fosse uma famosa atriz de novela. Já para uma empregada da loja, a única tese “compatível com a realidade das coisas” é a de tentativa de furto puro e simples. A conduta é a mesma, a ausência de provas também, só o que variará, neste caso, são as suposições socialmente consideradas adequadas ao caso.55

Dito isso:

Então, o que é um criminoso? Criminoso é aquele a quem, por sua conduta e algo mais, a sociedade conseguiu atribuir com sucesso o rótulo de criminoso. Pode ter havido a conduta contrária ao Direito penal, mas é apenas com esse “algo mais” que seu praticante se tornará efetivamente criminoso. Em geral, esse algo mais é composto por uma espécie de índice de marginalização do sujeito: quanto maior o índice de marginalização, maior a probabilidade de ele ser dito criminoso. Tal índice cresce proporcionalmente ao número de posições estigmatizadas que o sujeito acumula. Assim, se ele é negro, pobre, desempregado, homossexual, de aspecto lombrosiano e imigrante paraguaio, seu índice de marginalização será altíssimo e, qualquer deslize, fará com que seja rotulado de marginal. Em compensação, se o indivíduo é rico, turista norte-americano em férias, casado e branco, seu índice de marginalização será tendente a zero. O rótulo de vítima lhe cairá fácil, mas o de marginal só com um espetáculo investigativo sem precedentes.56

A sociedade indica e o poder estatal ordena quem tem que ser investigado e punido.

Edwin Lemert diz que esses órgãos detentores do poder de controlar a sociedade deveriam, na verdade, ser interpretados de forma etiológica para com o crime e com as condutas delituosas. Não deveriam apenas ter o objeto de penalizar, displicentemente, o lapso, em tese, criminoso.57

Corroborando com isso, o dispositivo Monitor da Violência, uma parceria feita entre o site G1, o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta alguns números da violência policial no Brasil e a quem ela está focada a atingir:

Quando falamos das vítimas da violência no Brasil, no entanto, não faltam dados que demonstrem uma certa homogeneização deste perfil, majoritariamente homens, jovens e pretos e pardos. A sobrerrepresentação de negros é tanta entre as vítimas de homicídio que a recente divulgação do Atlas da Violência indicou que 75% das vítimas em 2018 eram negras, demonstrando a intensidade do racismo no país.

Diante destes números, o Monitor da Violência solicitou às secretarias estaduais da Segurança Pública que informassem a raça/cor indicada no boletim de ocorrência das vítimas de intervenções policiais, dado fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas de prevenção e controle do uso da força. Apesar deste esforço, no entanto, o que chama a atenção é a invisibilidade da variável raça nas respostas enviadas pelas autoridades.

Das 27 unidades da federação, somente 15 (Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins) disponibilizaram dados de raça/cor dos mortos por suas polícias. Dentre as que disponibilizam, três (Bahia, Amazonas e Pará) possuem preenchimento do campo raça/cor abaixo da média nacional. Do total de mortes decorrentes de intervenção policial no primeiro semestre, apenas metade tem informação de raça/cor da vítima.

No Brasil, a violência sempre foi linguagem privilegiada de resolução de conflitos e manutenção do ordenamento social, ordem esta que demanda controle de territórios e corpos negros historicamente estigmatizados como perigosos. A transição da escravidão à República é marcada pela substituição do controle de corpos negros por seus senhores em regime privado, ao seu exercício por instituições públicas. Na esteira desta continuidade, a noção de “fundada suspeita”, que informa tanto a escolha de quem abordar como da maneira com que se aborda e faz o uso da força por parte das polícias, é, historicamente, construída sobre raça/cor, vestimenta, linguagem e idade, criminalizando elementos do universo popular da cultura jovem negra e periférica, negando-lhes o direito à cidade por abordagens constantes e frequentemente, letais.

Permanece como desafio civilizatório o investimento em políticas públicas que sejam capazes de romper com a sobreposição de vulnerabilidades econômicas, sociais e raciais enfrentadas pela população negra no Brasil; de deixar de ignorar o racismo no desenvolvimento dessas estratégias, pois, do contrário, continuaremos a contar corpos negros. 58

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Portanto, a delinquência se resume no autoritarismo, intrínseco na cultura brasileira e a arbitrariedade e seletividade refletem isso. Não existe igualdade, não há presunção de inocência. A criminalização é o foco.

Immanuel Kant, certa feita, disse:

um ser humano considerado como uma pessoa, isto é, como o sujeito de uma razão moralmente prática, é guindado acima de qualquer preço, pois como pessoa (homo noumenon) não é para ser valorado meramente como um meio para o fim de outros ou mesmo para seus próprios fins, mas como um fim em si mesmo, isto é, ele possui uma dignidade (um valor interno absoluto) através do qual cobra respeito por si mesmo de todos os outros seres racionais do mundo.59

O etiquetamento por parte da sociedade e dos órgãos faz com que a punição à violência pedida pelo “povo canarinho” seja resumida em presídios lotados, impunidade e vilões. Isso, na verdade, só faz com que o nível de criminalidade aumente e a violência, igualmente.

A respeito dessas Faculdades do Crime, Alessandro Baratta alude

O que se tem observado é que, em muitas unidades prisionais brasileiras, a minoria da população carcerária, que possui um grau de periculosidade mais acentuado ou maior envolvimento com a criminalidade, consegue dominar e manipular o restante dos presos da unidade. E além desses presos subjugarem os outros apenados, acabam muitas vezes por influenciá-los de maneira negativa, transformando as unidades prisionais desta forma, em verdadeiras “faculdades do crime”. 60

Evidentemente o aumento da criminalização não será inibido de uma hora para outra ou talvez nunca seja, mas, de fato, o Sistema Penal Brasileiro de forma conjunta com a sociedade e a mídia agem de forma contrário ao que é preconizado pelo Código de Processo Penal, pelo Código Penal e pela própria Constituição Federal.

Historicamente, desde a abolição da escravatura, praticamente não existiram políticas públicas para a inserção do negro na sociedade. Sobre a transição do negro como escravo para homem livre, Roger Bastide e Fernandes Florestan dizem que

precisava se operar como um processo histórico-social: o negro deveria antes ser assimilado à sociedade de classes, para depois ajustar-se às novas condições de trabalho e ao novo status econômico-político que adquirira na sociedade brasileira (...) a aceitação do negro em seus novos papéis econômicos se subordinou, e continua a depender estreitamente, da concepção que os brancos e os próprios negros elaboraram a respeito do status do elemento ae côr na nova ordem social 61

Já Emília Viotti da Costa traz a elucidação do motivo por ter sido dessa maneira quando diz que

a escravidão foi abolida por um ato do Parlamento sob os aplausos das galerias. Promovida principalmente por brancos, ou por negros cooptados pela elite branca, a abolição libertou os brancos do fardo da escravidão e abandonou os negros à sua própria sorte.62

Nesse passo, a desigualdade de tratamento para com as pessoas negras fez com que parte da população branca, que não era escravizada mas que era pobre e que também era inferiorizada, se aproximasse, formando um nicho social entre essas duas camadas sociais menosprezadas: brancos pobres, negros livres e mulatos (a maioria da população) funcionavam como a clientela da elite branca. A mobilidade social não era obtida por meio da competição direta no mercado mas por meio de um sistema de patronagem no qual a palavra decisiva pertencia à elite branca.

Desde então, os indivíduos com a renda familiar mais baixa, que moram em áreas periféricas e os negros, principalmente, não foram alcançados com nenhum tipo de comprometimento estatal para que fossem desenvolvidas políticas públicas para a inserção proporcional dessa determinada classe na sociedade brasileira, tornando-se assim, os maiores alvos do etiquetamento social.

Sobre os autores
Rafael de Bortolli Reichel

Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, campus São Jerônimo/RS. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Disciplina de TCC II, como requisito parcial para a obtenção de grau de bacharel em Direito.

Helena Lahude Costa Franco

Professora do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, campus São Jerônimo/RS, advogada criminalista e Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito de Coimbra, Portugal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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