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A tutela processual mandamental como fator de promoção do equilíbrio ambiental trabalhista.

Ou: Pequeno discurso sobre a lei, a ideologia, o direito e a justiça

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15/10/2006 às 00:00
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7 – Alguns Exemplos Práticos de Uso da Tutela Processual Mandamental Como Fator de Promoção do Equilíbrio Ambiental Trabalhista

Sem me mover pela tola pretensão de ser exaustivo, tentarei doravante trazer alguns exemplos práticos de como a tutela processual mandamental pode ser utilizada para fins de promoção do equilíbrio ambiental trabalhista.

Para tanto, primeiramente vou discorrer brevemente sobre a legislação que estabelece as obrigações ambientais dos empregadores, não sem antes traçar uma pequena digressão, para destacar que embora a aludida legislação exista, ela vem sendo sistematicamente ignorada pelos atores do mundo do trabalho – dentre eles os juristas -, fato que encontra explicação nos paradigmas ideológicos alhures desmistificados, que impondo a ditadura do pensamento econômico liberal, conduz-nos a imaginar, ainda que não queiramos, que a força-labor faz parte do fetiche capitalista do consumo, a ponto de ser tratada como simples mercadoria, passível de ser comprada sem maiores pudores.

Pois bem.

Estabelece a CLT, em seus artigos 154 a 201, toda uma série de regras de medicina e segurança do trabalho, que partem da inspeção prévia, do embargo e da interdição do estabelecimento; passando pelo processo de implantação da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA); pelo fornecimento gratuito de equipamentos de proteção individual (EPIs); pela obrigatoriedade da realização de exames médicos periódicos e nos momentos específicos da admissão e da dispensa; pela observância de regras de iluminação, ventilação e conforto térmico; pelos requisitos de segurança para o uso e a manutenção de máquinas em geral, e especificamente de caldeiras, fornos e recipientes sobre pressão; pelos procedimentos de neutralização da insalubridade e pela forma de manuseio e transporte de material tóxico, até chegar às regras de prevenção da fadiga. [16]

Assim é que os sindicatos e o Ministério Público do Trabalho, sujeitos responsáveis pela defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos trabalhadores, poderão se valer do remédio jurídico da ação civil pública [17], para solicitar ao Juiz do Trabalho todos aqueles provimentos mandamentais que sejam hábeis à promoção do respeito à legislação ambiental trabalhista, sempre que o empregador se recusar a fazê-lo espontaneamente ou pela via administrativa.

À guisa de exemplificação, são passíveis de veiculação em juízo, dentre outras, as seguintes pretensões de natureza mandamental, visando a criação de um meio ambiente de trabalho hígido:

- para impedir o estabelecimento de iniciar suas atividades sem a prévia inspeção e aprovação das instalações;

- para interditar estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, ou ainda embargar obra, em caso de grave e iminente risco para a saúde e segurança do trabalhador;

- para que as máquinas sejam dotadas de dispositivo de partida e parada e outros que se fizerem necessários para a prevenção de acidentes do trabalho;

- para obrigar o empregador a tomar todas as medidas necessárias à neutralização da insalubridade acaso existente no ambiente de trabalho, seja ela decorrente de ruído, vibrações, contaminação do ar ou outros;

- para obrigar o empregador, baldados todos os esforços de eliminação completa da insalubridade, a fornecer EPIs adequados ao risco e em perfeito estado de conservação e funcionamento aos empregados;

- para que o empregador realize exames médicos periódicos, onde possam ser detectados indícios de contaminação por agentes tóxicos ou de desenvolvimento de doenças ocupacionais, a fim de que sejam tomadas, a tempo e modo, as medidas úteis à restauração da saúde do empregado;

- para proibir a realização de jornadas exaustivas, que iniludivelmente aumentam a possibilidade de ocorrência de acidentes de trabalho;

- para que o mobiliário do estabelecimento seja ergonomicamente adaptado às necessidades físicas do trabalhador.

Como visto, as possibilidades de uso da tutela mandamental na promoção da higidez do ambiente de trabalho são inesgotáveis, podendo ser utilizadas, sempre que necessário, com responsabilidade e criatividade pelos sujeitos a tanto legitimados.


8 – Conclusão

Neste breve ensaio, como visto, busquei desnudar o aparato ideológico que inspirou a criação do direito do trabalho, o que fiz almejando desmistificar aquilo que enxergo como o "engodo juslaboral originário".

Ao fim, trago para o leitor o sustentáculo intelectual que gerou esta reflexão, representado pela desconcertante análise filosófica de MARILENA CHAUI:

"A divisão social do trabalho, ao separar os homens em proprietários e não proprietários, dá aos primeiros o poder sobre os segundos. Estes são explorados economicamente e dominados politicamente. Estamos diante de classes sociais e da dominação de uma classe por outra. Ora, a classe que explora economicamente só poderá manter seus privilégios se dominar politicamente e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a ideologia.

Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como "Estado de Direito". O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e que por ser legal e não violenta deve ser aceita. A lei é direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado – ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito – ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos." [18]

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Partindo deste diagnóstico, mas sem confundir lei e direito, acredito que a construção de um novo campo hegemônico no pensamento jurídico somente se viabilizará caso os seus protagonistas se dispuserem a trabalhar nas fissuras do ordenamento, extraindo, a partir das ambigüidades do texto legal, o conteúdo da norma enquanto ideal de justiça, de modo a cumprirem os seus afazeres democráticos pendentes.

A edificação de uma ordem jurídica libertária é possível. A sua matéria está perdida nas trincas do sistema. O uso da tutela processual mandamental como fator de promoção do equilíbrio ambiental trabalhista pode ser o início da ruptura proposta.

Como conclama o dramaturgo alemão BERTOLT BRECHT, no seu poema NADA É IMPOSSÍVEL DE MUDAR:

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,

pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,

de humanidade desumanizada,

nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar. [19]


Notas

01 Ideologia, Estado e Direito, 4ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 16.

02 A antigüidade e a escravidão clássica; a idade média, o feudalismo e a servidão; o renascimento e as corporações de ofício; o iluminismo, a revolução francesa e o postulado da liberdade de trabalho.

03 Conferir, v.g., o Moral and Health Act, de Robert Peel, tido por muitos como o primeiro diploma normativo genuinamente trabalhista, onde o trabalho dos menores aprendizes foi limitado a doze horas e proibido para o período noturno.

04 Vide, por exemplo, a Constituição Mexicana de 1917, a Constituição de Weimar de 1919, e a Carta del Lavoro de 1927.

05 Faz-se necessário registrar que o capitalismo tardio brasileiro conduz à existência de um quadro no mínimo exótico no interior do país, onde curiosamente coexistem bolsões de escravidão, regimes industriais e sistemas pós-industriais.

06 Isso mesmo: entre aspas!

07 Sobre a teoria do "Exército Industrial de Reserva", ver KARL MARX, in, O Capital – Edição Resumida por JULIAN BORCHARDT, 7ª ed., Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982, p.p. 152 e segs.

08 Aqui, mais uma vez ressalto as aspas!

09 Valho-me da expressão "jurista orgânico", na forma em que concebida por AMILTON BUENO DE CARVALHO, a partir da concepção gramsciana de "intelectual orgânico", in, Magistratura e Direito Alternativo, 5ª ed., Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 55: "Tenho que o profissional orgânico do direito é aquele que está permanentemente inquieto ante a estrutura posta. Sempre e sempre está disposto a criticar (...) buscando o que se encontra por trás da realidade aparente. Mas não é só isso: critica em busca de um direito (e por conseqüência de uma sociedade) mais justo, mais igualitário, comprometido com a maioria trabalhadora (...)."

10 Verdadeiro truísmo que o termo "campo hegemônico" é empregado em observância ao conceito de "hegemonia" na obra de Antonio Gramsci.

11 Recuso render-me à lógica de que os termos "utopia" e "possível" seriam antitéticos.

12 Manual do Processo de Conhecimento, 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 461.

13 Técnica Processual e Tutela dos Direitos, 1ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.p 82 e 83.

14Ibidem, p.p 295 e 296.

15 A solução apontada não ofende o artigo 634 do CPC, a dizer que "se o fato puder ser prestado por terceiros, é lícito ao juiz, a requerimento do credor, decidir que aquele o realize à custa do devedor". No caso, obviamente, tal artigo merece ser interpretado em perspectiva lógico-sistemática com as demais disposições do CPC, mormente em cotejo com aquela que permite ao juiz, de ofício, conceder à parte a tutela específica colimada ou o seu resultado prático equivalente (artigo 461, § 5º, do CPC).

16 Associado a essas regras da CLT existe ainda todo um manancial de modelos administrativos de promoção do equilíbrio ambiental trabalhista, a maioria deles criados a partir de Normas Regulamentares editadas pelo Ministério do Trabalho, como aquelas que determinam a implantação do Programas de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), bem como uma série de Convenções da Organização Internacional do Trabalho (como, v.g., as de n° 148, 155 e 170), que não serão tratados neste trabalho, em virtude dos seus estreitos limites de abordagem.

17 Nunca é demais lembrar, que nos termos do artigo 3° da Lei 7.347-85, "a ação civil pública poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer".

18 O que é Ideologia - Coleção Primeiros Passos, 31ª ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p.p. 90/91.

19 Extraído do sítio http://www.culturabrasil.pro.br/brechtantologia.

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Sobre o autor
João Humberto Cesário

Juiz titular da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT), doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino, mestrando em Direito Ambiental, professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CESÁRIO, João Humberto. A tutela processual mandamental como fator de promoção do equilíbrio ambiental trabalhista.: Ou: Pequeno discurso sobre a lei, a ideologia, o direito e a justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1201, 15 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9042. Acesso em: 28 mar. 2024.

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