Competências Administrativas no Direito Urbanístico Português:

Atuações em prol de um ambiente urbano equilibrado

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Neste artigo tratamos das competências administrativas comuns entre Estado Central, Autarquias Locais e Regiões Autônomas na defesa de um ambiente urbano equilibrado em Portugal.

1. ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO ESTADO PORTUGUÊS

Em primeiro momento, convém destacar que a Administração direta do Estado português é regulada pela Lei nº 4/2004, que em seu artigo 3º, nº 1, dispõe que a organização, a estrutura e o funcionamento da Administração Pública devem orientar-se pelos princípios da unidade e eficácia da ação da Administração Pública, da aproximação dos serviços às populações, da desburocratização, da racionalização de meios, da eficiência na afetação de recursos públicos, na melhoria quantitativa e qualitativa do serviço prestado e da garantia de participação dos cidadãos, bem como pelos demais princípios constitucionais da atividade administrativa acolhidos pelo Código do Procedimento Administrativo[1].

Neste sentido, o  nº 2 deste mesmo artigo 3º da Lei nº 4/2004 é claro ao dispor que o princípio da unidade e eficácia da ação da Administração Pública consubstancia-se no exercício de poderes hierárquicos, nomeadamente os poderes de direção, substituição e revogação e nas inerentes garantias dos destinatários dos atos praticados no âmbito destes poderes[2].

Ao tratar dos órgãos consultivos do governo, no âmbito da mesma Lei nº 4/2004, consta, em seu artigo 7º, que os órgãos consultivos apoiam a formulação e acompanhamento de políticas públicas da responsabilidade do Governo, através da cooperação entre a Administração Pública, individualidades de reconhecido mérito e representantes dos interesses económicos e sociais[3]. Nota-se, diante destas considerações que a cooperação entre a Administração Pública (com toda sua estrutura interna) e outras entidades (públicas ou privadas) constitui uma necessidade para o desenvolvimento nacional, regional e local.

Neste sentido, percebe-se que da mesma forma que ocorre no Estado brasileiro, em Portugal também há uma convocação para que todas as instâncias administrativas estejam unidas em prol do projeto de realização dos fins estatais, conforme estampado no texto constitucional pátrio.

Nas lições de Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, o Estado Português é um Estado Unitário Regional periférico (não se trata de um Estado unitário simples) [arts. 6º, 288º, o) CRP]; não existe, portanto, uma pluralidade de entes dotados de soberania na ordem interna, mas sim regiões periféricas com autonomia administrativa, política e legislativa. Esta forma de Estado justifica a existência e a estrutura de administrações públicas regionais dos Açores e da Madeira[4].

Em síntese, em termos de estrutura de Estado, em Portugal tem-se as figuras das: 1) Administrações Estaduais, que se subdividem em Administração direta do Estado e Administração indireta do Estado (esta, por sua vez se subdivide em Administração Estadual indireta pública e Administração Estadual indireta privada) e 2) Administrações Autônomas, que se subdividem em administração autônoma territorial e administração autônoma não territorial. Por sua vez, a administração autônoma territorial é aquela em que o território faz parte da definição do substrato das respectivas instâncias (autarquias locais e regiões autônomas). Por sua vez, a Administração não territorial (também designada por funcional) é aquela em que o território não tem relevo específico na definição do substrato das pessoas coletivas que o integram. Isto não significa que o território seja indiferente ou irrelevante, na medida em que é possível que determinadas entidades pertencentes à administração autônoma não territorial tenham um âmbito territorialmente limitado (v.g. a Casa do Douro). Outra forma possível de classificação da Administração autônoma é a que a distingue entre administração autônoma territorial e administração autônoma corporativa, reconduzindo a esta as associações públicas, as corporações territoriais – que são associações de entidades territoriais, como é o caso das associações de municípios, incluindo as áreas metropolitanas, as associações de freguesias e as regiões de turismo -, e os consórcios públicos[5].

Vale, por ocasião da presente explanação, recordar que o artigo 5º da Constituição da República de 1976 dispõe que Portugal abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos Açores e da Madeira (nº 1). Em seu artigo 6º, a Constituição portuguesa é clara ao definir que Portugal é um Estado unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática das instituições públicas (nº 1). Destaca ainda que os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autônomas dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprios. (nº 2)[6].

2. TAREFAS FUNDAMENTAIS DO ESTADO PORTUGUÊS

No entanto, ao estabelecer, o Texto Constitucional, as tarefas fundamentais do Estado, em seu artigo 9º, entende-se como seus destinatários todas as instâncias administrativas ligadas ao Estado português, incluindo Estado Central, Autarquias Locais, Regiões Autônomas, Institutos, etc. Neste sentido, há competências administrativas comuns entre estas esferas de governo, com vistas a promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante transformação e modernização das estruturas económicas e sociais (art. 9º, alínea d), a promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira (art. 9º, alínea g), entre outros[7].

Convém  ainda destacar que o artigo 65º da Constituição portuguesa impõe como obrigação do Estado português (nº 2): a) programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e equipamento social; b) promover, em colaboração com as regiões autônomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução[8].

Diante da disposição elencada no art. 65º, nº 2, alínea b da Constituição portuguesa, percebe-se a manifestação do unitarismo cooperativo (em analogia ao federalismo cooperativo) entre Estado central, regiões autônomas e autarquias locais, mesmo que com objetivo limitado a construção de habitações económicas e sociais.

Note-se também o disposto o nº 4 deste mesmo artigo 65º, que dispõe que os Estados, as regiões autônomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planejamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística[9].

3. COORDENAÇÃO, COOPERAÇÃO E CONCERTAÇÃO ENTRE ENTIDADES E ÓRGÃOS ADMINISTRATIVOS

Segundo o Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente (CEDOUA), a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC) e a Inspeção-Geral da Administração do Território (IGAT), a legislação sobre ordenamento do território e os instrumentos de gestão territorial – LBPOT e RJIGT – atribui especial relevo às relações de coordenação, de cooperação e de concertação entre as entidades e os órgãos administrativos com atribuições e competências neste domínio e entre estes e os cidadãos[10].

Paulo V. D. Correia, também sobre esta cooperação entre as instâncias administrativas portuguesas, explica que é necessária a concertação das iniciativas urgentes entre os vários níveis do Governo e da administração pública (tendo o nível central um carácter de coordenação e de estratégia geral, sendo o nível local predominantemente operacional e executante) em conjunto com uma nova prática activa e de procura dialogada de compromissos com os diversos agentes do desenvolvimento urbano[11].

Sobre a coordenação de intervenções administrativas no domínio do planejamento e execução de políticas de ordenamento territorial e do urbanismo, João Miranda ressalta que a Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e do Urbanismo (LBPOTU) ergueu o princípio da coordenação como princípio geral da política de ordenamento do território e do urbanismo (art. 5º, alínea c)[12], vindo por sua vez o Regime Jurídico dos  Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) a dar-lhe tradução ao estabelecer que a organização do sistema de gestão territorial se opera num quadro de “interação coordenada” das diversas intervenções públicas com impacto territorial[13].

Neste sentido, em síntese, ao Estado cabe a articulação das várias políticas consagradas no programa nacional da política de ordenamento do território, nos planos setoriais[14] e nos planos especiais[15]; às comissões de coordenação e desenvolvimento regional compete a coordenação das políticas regionais consagradas nos planos regionais[16] de ordenamento do território; às câmaras municipais e às associações de municípios pertence, por fim, a coordenação das políticas municipais expressas, respectivamente, nos planos municipais e nos planos intermunicipais de ordenamento do território[17].

De clareza solar, acerca das competências compartilhadas entre Estado Central, Regiões Autônomas e Autarquias Locais é o esclarecimento feito pelo Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente – CEDOUA, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – FDUC e pela Inspeção-Geral da Administração do Território – IGAT, quando destaca que decorre de preceitos constitucionais, que o urbanismo, como função pública, pertence ou é da responsabilidade simultânea do Estado, das Regiões Autônomas e das Autarquias Locais. A razão de ser desta repartição de atribuições decorre do fato de o urbanismo convocar simultaneamente interesses gerais, estaduais ou nacionais – cuja tutela é cometida pela Constituição ao Estado -, interesses das Regiões Autônomas [artigo 6º, nº 2, 225º, nº 2, e 228º da Constituição] e interesses locais, cuja responsabilidade cabe aos municípios, de harmonia com o princípio da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa (art. 6º, 235º e 237º da Constituição). Trata-se, pois, de um domínio onde se verifica uma concorrência de atribuições e competências entre a Administração estadual, regional (das regiões autônomas) e municipal[18].

Neste mesmo sentido, afirmam Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias que cada vez mais, em setores contados da Administração Pública (por exemplo, no domínio do ordenamento do território e do urbanismo), as relações entre as distintas entidades públicas são apontadas como relações de coordenação e cooperação, apresentando-se como relações essenciais para garantir a unidade na diversidade. Destacam ainda que a coordenação corresponde ao tipo de relação que visa ao estabelecimento de uma sintonia e articulação entre as tarefas próprias das unidades administrativas diferentes, continuando cada uma delas a realizar as suas, mas fazendo-o de olhos postos no trabalho das unidades concorrentes, de modo a evitar atritos e potencializar resultados[19].

Ainda acerca da necessidade de uma maior participação das diversas instâncias administrativas no planejamento urbano e territorial (através da descentralização administrativa), convém lembrar lição de Jorge Miranda, quando destaca que o princípio descentralizador é um princípio constitucional; e são a Constituição e (ou) a lei que conferem poderes ou atribuições de diversa natureza e extensão a entidades infra-estatais. Destaca ainda que a democracia instituída pela Constituição de 1976, se pretende uma democracia descentralizada; porque, à luz dessa Lei Fundamental, não há democracia sem descentralização, nem descentralização sem democracia (no duplo sentido de inserção no Estado de Direito democrático e de exigência de participação democrática)[20].

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Por fim, como assevera Fernanda Paula Oliveira, o urbanismo e o ordenamento do território apresentam-se como tarefas ou funções públicas, na medida em que as decisões fundamentais a eles atinentes (referimo-nos ao planejamento, à gestão urbanística e ao controlo de atividades de ocupação do território) deixaram de ser privadas e passaram a ser cometidas à administração. Apresentam-se, no entanto, como funções de titularidade partilhada. De fato, como destaca esta autora, embora as questões atinentes ao urbanismo e ao ordenamento do território tenham vindo a ser sucessivamente integradas ao largo movimento de descentralização administrativa – reconhecendo-se o nível local como um dos mais adequados para a gestão de muitos dos interesses neles envolvidos -, continua (e deve continuar) a reserva-se ao Estado um importante papel de regulador, com o dever de intervir de acordo com modalidades adequadas que garantam uma visão e uma reflexão global do ordenamento do espaço, que necessariamente se perde a partir da visão estritamente local de que partem os municípios. Fala-se, a este propósito, num condomínio de interesses, que se reflete, por sua vez em um condomínio de atribuições[21].

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa. Lei do tribunal constitucional. 8 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente - CEDOUA; Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC; Inspecção-Geral da Administração do Território - IGAT. Direito do urbanismo e autarquias locais: realidade atual e perspectivas de evolução. Coimbra: Almedina, 2006.

CORREIA, Paulo V. D. Políticas de solos no planeamento municipal. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

MIRANDA, João. A dinâmica jurídica do planeamento territorial: a alteração, a revisão e a suspensão dos planos. Coimbra: Coimbra editora, 2002.

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo III. Estrutura constitucional do Estado. 6. ed. Coimbra: Coimbra editora, 2010.

OLIVEIRA, Fernanda Paula; DIAS, José Eduardo Figueiredo. Noções fundamentais de direito administrativo. 4. ed., Coimbra: Almedina, 2015.

OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo: de um urbanismo de expansão e de segregação a um urbanismo de contenção, de reabilitação e de coesão social. Coimbra: Almedina, 2011.

SOUSA, Marcelo Rebelo; MATOS, André Salgado de. Direito administrativo geral: introdução e princípios fundamentais. tomo I. 3. ed. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2008.

 

 

Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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