Repercussões das espécies de vitimização no crime de estupro

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16/05/2021 às 16:05
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Analisa-se o histórico do crime de estupro no Brasil, e o enfoque à figura da vítima no debate no tocante a repressão do agressor, sob perspectiva jurisdicional e social, além do papel da vitimização em estágios secundário e terciário no referido crime.

1. Introdução

O crime de estupro é tipo penal que sofreu diversas modificações em sua positivação na história brasileira, sendo perene em diversas legislações de matéria penal, e que gera forte comoção em nível social, em razão da repugnância direcionada ao transgressor do referido crime. Ademais, é um crime paradoxal, já que a ojeriza lançada ao criminoso também é centralizada para vítima, em maior ou menor escala.

A vítima, suas características e seu contexto social tem especial atenção no delito de estupro, em razão da influência do patriarcado e da cultura do estupro, marcas da sociedade nacional moderna, o que converge com a criminologia e com a vitimologia e as espécies de vitimização, como forma de analisar este fenômeno, de diminuição e até mensuração da condição de vítima na conjectura do estupro.

O artigo em comento se propõe a discorrer sobre as repercussões negativas que as espécies de vitimização, primária, secundária e terciária, desencadeiam na vítima do crime de estupro, tema que se justifica tendo em vista a quantidade estarrecedora do referido delito no país, do desrespeito e afronta direcionado as vítimas em ambiente pré-processual, processual, comunitário e virtual.

O objetivo geral é analisar o impacto dos estágios de vitimização na vítima do crime de estupro, e ainda, examinar o crime de estupro no Brasil, considerando histórico e positivação, discorrer sobre criminologia, vitimologia e vitimização, e analisar as espécies de vitimização secundária e terciária aplicadas no crime de estupro.

Na primeira seção se discute o histórico da positivação do crime de estupro nas legislações brasileiras, com enfoque na diferença de punição endereçada ao transgressor em razão da pessoa da vítima, e sua modificação normativa à evolução do Direito.

Na segunda seção se elucida o papel da criminologia como matéria interdisciplinar como meio de estudo do crime a partir da integração de conhecimentos, e entre seus ramos de estudo se destaca a vitimologia, que se divide no sub-ramo da vitimização, que se divide em estágio primário, secundário e terciário.

Na terceira seção há a integração do estudo da vitimização, com atenção especial aos estágios secundário e terciário, com o tipo penal do estupro, em virtude do estigma social endereçado a sua vítima, geralmente pessoa do sexo feminino, que sofre com o julgo de autoridades e de ordem social, perpetrando traumas que estendem o constrangimento inicial desencadeado pelo agressor.

O trabalho em tela é de revisão, com a utilização do método indutivo, com enfoque bibliográfico, a partir do estudo de livros, trabalhos científicos, monografias, dissertações de mestrado, artigos publicados em revistas, matérias disponíveis em bibliotecas virtuais, sobre a temática, além da análise de letra de lei e de projeto de lei. Ademais, tem por público alvo o operador do direito.


2. Crime de Estupro no Brasil: Histórico e Positivação

O Direito é chave reguladora das relações sociais, uma vez que permite e delimita a vida em comunidade, e por razões meramente didáticas é seccionado em ramos a fim de facilitar a sua assimilação. O Direito Penal se verifica como medida ultima ratio de proteção de bens jurídicos de imprescindível proteção para a harmonização da conjectura coletiva, assegurando a defesa à vida, à incolumidade pública, à ordem social, bem como a dignidade sexual, este último sendo gênero que acolhe a criminalização do crime de estupro.

Sohaila Abdulali (2019) ao falar sobre a temática proclama que o estupro seria como a figura de um dementador, personagem fictício de J. K. Rowling na série de livros e filmes de sucesso Harry Potter, que ao adentrarem em um recinto são responsáveis por sugar tudo o que é positivo neste, consequentemente, drenam a luz, assim como o estupro, já que absorve a luz da vida da vítima.

O crime de estupro é presente em legislações de diversos países, compreendendo a preocupação de caráter mundial com o referido delito, consta em passagens medievais, representações em esculturas e pinturas, e sua presença é quase que constante com o desenvolvimento da sociedade, entretanto, a violência sexual contém um aspecto peculiar, aonde a vítima é inserida em uma conjectura de culpabilização, diferente a reservada ao criminoso e a outra figura típica.

Bitencourt (2018) elucida que:

Os povos antigos já puniam com grande severidade os crimes sexuais, principalmente os violentos, dentre os quais se destacava o de estupro. Após a Lex Julia de adulteris (18 d.C.), no antigo direito romano, procurou-se distinguir adulterius e stuprum, significando o primeiro a união sexual com mulher casada, e o segundo, a união sexual ilícita com viúva. Em sentido estrito, no entanto, considerava-se estupro toda união sexual ilícita com mulher não casada. Contudo, a conjunção carnal violenta, que ora se denomina estupro, estava para os romanos no conceito amplo do crimen vis, com a pena de morte (BITENCOURT, 2018, p. 49).

Deste modo, a tipificação do estupro foi busca perene dentro da positivação de normas de cunho punitivo, e com destaque a condição civil da vítima, que seria levada em consideração no momento de aplicar sanção ao transgressor. Outro ponto de ressalva é a punição reservada ao delito, que seria de pena de morte, o que demonstra a gravidade do impacto da referida transgressão dentro do ambiente social.

Manchini (2018) sugere que a violência sexual é problemática que segue a humanidade, uma vez que desde as primeiras civilizações a que se tem notícia compreendem o conceito básico do crime de estupro, com a presença de punições atrozes, como a pena de morte, todavia, a vítima deveria se encaixar em um padrão pré-estabelecido, como ser honesta, virgem e morar com os pais. É uma transgressão marcada pela dominação de força masculina, assim, as vítimas são geralmente mulheres, e eram apenas elas respaldadas pelas legislações antigas, o que foi modificado com o tempo, a fim de proteger toda o ofendido por violência sexual.

O motivo que indica a tendência da ordem social de depreciar a vítima pode ser explicada em razão de que o sujeito passivo do crime de estupro que via de regra é mulher, o que associado a um contexto de machismo institucional e patriarcado, inclina-se quase que de forma “natural” a culpabilização da mulher. A violência sexual é meio de expressão de força e domínio, a fim de subjugar o ofendido.

A violência sexual é uma ferramenta de demonstração de dominação. No Brasil, de passado escravocrata, houve a submissão de mulheres negras, indígenas, e pobres ao contexto do estupro, bem como associado a uma imagem de corpos sexualizados e carentes de humanidade. A população brasileira é fruto de miscigenação, deste modo, é compreendida como democracia racial, e é decorrência, também, de estupro de mulheres negras e indígenas a contar do período colonial (SILVA, 2019).

O delito de estupro, além de ser crime tipificado no ordenamento penal nacional hodierno, foi figura presente em legislações domésticas de longa dada, a constar do começo da positivação do direito brasileiro, sobre influência da nação colonizadora de Portugal, e em normas posteriores, que denotam o pensamento e conduta do povo brasileiro, e adaptação legislativa com o passar do tempo.

O primeiro registro sobre a criminalização do delito de estupro de aplicação no Brasil consta das Ordenações Filipinas, documento de forte influência religiosa, onde a mulher que denunciasse que havia sido estuprada deveria ser retirada da casa de seu genitor e ser deixada na casa de um homem bom ou mesmo um dos juízes, a fim de que não fosse difamada. Cabe destacar que a punição variaria em razão da figura da vítima, se esta fosse casada, religiosa, moça virgem, honesta ou viúva, a sanção reservada ao transgressor era a de morte, sem asseguração de qualquer benefício. Além disso, no caso em que a vítima fosse escrava ou prostituta, não se executaria a pena até que o transgressor soubesse o motivo da execução, e por meio de mandada (MANCHINI, 2018).

Bitencourt (2018) elucida que as Ordenações Filipinas tipificavam a sodomia, além dos toques considerados pela lei como desonestos e de natureza torpe, ressalta-se que as condutas descritas seriam punidas independentemente de serem praticados com o emprego ou não de violência. Ainda, a sanção para a prática de dormir forçosamente com qualquer mulher era punida com a pena de morte, o que só foi atenuado com a publicação de lei posterior genuinamente brasileira.

O Código Criminal do Império de 1830 também abarcou a figura do estupro, em seu art.222, com a adoção da expressão “cópula carnal”, que era caracterizado pela utilização do emprego de violência ou ameaça, com pena variável em relação a figura da vítima da ofensa, compreendendo duas categorias: mulher honesta; e sanção menor quando a ofendida era prostituta (SILVA; MADRID, 2017).

Ressalta-se que os crimes sexuais, dentro do Código Criminal do Império, se inseriam no título resguardado aos crimes contra a segurança da honra, havia divisão de condutas quando praticadas com o fito de deflorar mulher virgem menor de dezessete anos, seduzir mulher honesta menor de dezessete anos, mantendo com esta cópula carnal, ademais, havia a figura da ofensa pessoal para fim libidinoso, diverso da conjunção carnal, onde se inseriam a felação e o coito anal. Ainda, era previsto a extinção da punibilidade do transgressor pelo casamento (PASCHOAL, 2014).

Importante destacar que nas primeiras legislações brasileiras sobre o delito do estupro a condição de vida e conjectura social da vítima era de essencial demonstração para a punição do transgressor, uma vez que a escravas e prostitutas era assegurado tratamento diferido àquelas mulheres consideradas honestas e de importe social, apesar de não terem contribuído de forma alguma para o cometimento do delito, demonstrando que a vítima de estupro é assegurado tratamento diferenciado e depreciativo de cunho social, e antes até mesmo legal, o que se perfaz em incoerente em face da falta de participação do ofendido para a consumação do delito.

Paschoal (2014) elucida que o Código Penal de 1890 inovou no ordenamento pátrio ao inserir que o crime sexual poderia ser praticado contra homem, e prevendo a figura da presunção de violência. Em relação ao estupro, abordou o delito em seu art. 268, tendo por definição a conduta em que o homem abusa, com o emprego de violência, da mulher, seja esta virgem ou não, assegurando que poderia ser praticado contra mulher honesta, virgem ou não, mulher pública ou prostituta, e também era marcado por pena significantemente menor quando o delito era praticado contra mulher pública e prostituta.

O Código de Direito Penal vigente, publicado em 1940, define em seu art. 213, como a prática de estupro:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2o Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (BRASIL, 1940, p. online)

Assim, comete estupro aquele que constrange alguém, com a utilização do emprego de violência ou grave ameaça, com o fito de lograr êxito na prática de conjunção carnal bem como de ato libidinoso, com a qualificação da pena em caso de resultado de lesão corporal grave a vítima, e quando o ofendido tem entre quatorze e dezessete anos, já que vítimas menores de quatorze anos são abarcadas pela figura do art. 217-A do CP (estupro de vulnerável), e no caso de a ofensa resultar em morte. Não há distinção entre o sexo da vítima, que também poderá ser homem.

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O texto atual do art. 213 do CP não é a redação original aprovada em 1940, e sim resultado da aprovação da Lei nº 12.015/2009, que unificou o crime de atentado violento ao pudor ao crime de estupro, indicando que o tipo é misto alternativo, já que tanto a prática de conjunção carnal bem como a/ou de outro ato libidinoso contra a mesma vítima e na mesma conjectura resulta na prática de crime único (NUCCI, 2020).

Jesus (2020) explana que o supracitado dispositivo penal visa salvaguardar a liberdade sexual das pessoas, sem distinção de gênero e sexo, protegendo seu direito de dispor de seu próprio corpo e sua autonomia em decidir com quem praticar ato carnal ou outro ato libidinoso, ademais, e se perfaz em crime hediondo, conforme o mandamento do art. 1º, V, da Lei nº 8.072/90.

Conjunção carnal é definida como a cópula vagínica, compreendida como a penetração completa ou até mesmo incompleta entre homem e mulher, já ato libidinoso é aquele ato carnal que é direcionado pela concupiscência sexual, tendo por fito a produção de excitação e de prazer sexual em um sentido mais amplo, incluindo, também, a conjunção carnal. Têm-se por exemplo de ato libidinoso: a sodomia e a fellatio in ore (BITENCOURT, 2018).

O sujeito ativo e passivo o crime de estupro podem ser qualquer pessoa, deste modo é crime comum, o objeto material é a vítima que sofre o constrangimento, o objeto jurídico é a liberdade sexual da pessoa humana, o elemento subjetivo do crime é o dolo (não há modalidade culposa dentro do crime de estupro), ademais, é comissivo, instantâneo, unissubjetivo e plurissubsistente (NUCCI, 2020).

Ademais, a Lei nº 13.239/15 sistematiza a oferta e a realização, através do Sistema Único de Saúde (SUS), de cirurgia plástica reparadora de sequelas causadas por condutas resultantes de práticas de violência contra a mulher. Além disso, a Lei nº 13.718/18 foi responsável pela alteração da natureza da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual, antes a disposição legal proclamava que via de regra os referidos crimes seriam de ação pública condicionada a representação, o que se modificou em 25 de setembro de 2018, com o advindo do art. 225, passando a ser de ação pública incondicionada (JESUS, 2020).

Isto posto, verifica-se a mudança da tipificação do crime de estupro dentro do contexto do ordenamento jurídico pátrio, onde a vítima antes poderia ser apenas mulher, e hoje o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, contudo, a mulher continua sendo a vítima padrão do delito. Para parâmetros legais hodiernos não é levado em consideração conceitos arcaicos como mulher honesta ou a profissão do ofendido para fins de aplicação de pena.

Contudo, a previsão legal de que todos podem ser vítimas do delito constante do art. 213 do CP, infelizmente não é suficiente para impedir o julgamento social resguardado ao ofendido do crime, é comum ouvir-se em círculos sociais a invalidação de posição de vítima do referido delito em razão das roupas em que a pessoa estava trajando, em razão do consumo de álcool por esta, ou até mesmo o ambiente que estava inserida no momento do delito.

Sohaila Abduli (2019) ), escritora e vítima de estupro, complementa:

Para quem acha que se sentiria mais bem preparado se houvesse uma fórmula de prevenção ao estupro, ofereço a minha:

Fique em casa; evite estranhos. Saia; evite a família. Mostre-se feroz. Mostre-se dócil. Seja assertiva. Seja delicada. Sorria. Não sorria. Seja amistosa. Não seja amistosa. Seja forte. Seja serena. Seja jovem. Seja velha. Tranque sua vagina. Tranque seus filhos. Tranque seus pensamentos. Desarme-se. Desapareça. Morra. (Sohaila Abduli, 2019, p. 226/227).

A autora demonstra em tom de sarcasmo que não há formula correta e fechada para a prevenção do estupro que possa ser seguida à risca pela vítima a fim de evitar o cometimento do crime, uma vez que para a consumação do estupro é apenas necessário a presença do estuprador na equação, e o “guia” da escritora é somente uma maneira irônica de informar isto.

A tipificação do crime de estupro é trama constante na construção de ordenamentos jurídicos, e de legislações de âmbito criminal pelo mundo, o que não foi diferente no Brasil, fruto de dominação colonizatória e passado escravocrata, que desde o berço da legislação nacional se afligiu com a problemática, primeiro com distinções quanto a vítima do delito, que poderia ser apenas mulher e com punição variante a depender do status social da ofendida. O delito de estupro hoje é positivado no ordenamento jurídico doméstico por meio do art. 213 do CP, podendo ser perpetrado por meio de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, e ainda, se perfazendo em crime comum, podendo ser praticado contra qualquer pessoa, ademais, contém uma característica peculiar em razão da tendencia social de depreciação da vítima. No próximo tópico será abordado o estudo criminológico da vítima, e sua importância para a contemplação do crime.


3. Criminologia, Vitimologia e Vitimização

A Criminologia é ciência voltada para o estudo dos aspectos que envolvem a perpetração de um delito, não apenas os valores concernentes a sua tipificação, mas também fatores diversos que ensejaram a prática de um ato transgressor. É matéria interdisciplinar empírica de pouca discussão fora do meio acadêmico e envolve conceitos como a análise da figura do transgressor, fatores sociais e da vítima.

A criminologia é sapiência com base na observação e experiência, interdisciplinar, por conta da influência de diversas outras ciências, que tem por fito o exame o crime, a personalidade do sujeito ativo do comportamento delitivo, da vítima, e o controle social das condutas criminosas, alimentando a definição de crime como problema comunitário (FILHO, 2020)

Um dos objetos de estudo da criminologia é a vítima. Têm-se por vítima aquele que veio a sofrer dano, podendo ser de natureza individual, coletiva, física, emocional, econômica. Ademais, sob enfoque penal, o ofendido é aquele que sofre ação ou omissão do delinquente. O estudo da vítima se justifica pela sua importância na concepção do delito, e na compreensão do criminoso, já que a vítima é sua dupla penal, o entendimento de sua figura pode servir como meio de proteção ao sujeito passivo do delito, evitando demais ações transgressoras (PAULA, 2018).

A Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução 40/34 de novembro de 1985, pontua:

Entendem-se por "vítimas" as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder. (UNIDAS, 1985, p. online).

Assim, vítima é aquela que tem um bem jurídico ofendido, de maneira individual ou coletiva, podendo ser lesão de natureza material, moral ou prejuízo a direito fundamental, ou ainda, fruto de prática de abuso de poder, como consequência de conduta perpetrada por transgressor ou transgressores que violam lei previamente positivada e em vigência em um Estado soberano.

A ciência que se ocupa ao estudo da vítima dentro da criminologia é a vitimologia, que adentra em aspectos como a sua personalidade, características, relações com o delinquente e da função que este assumiu dentro do desenrolar do delito, deste modo, é disciplina que se encarrega da análise do comportamento da vítima na gênese do crime e do criminoso. (GONZAGA, 2018).

O advogado romeno Benjamim Mendelsohn, é considerado o fundador da vitimologia, publicou trabalhos no ramo da sociologia jurídica que destacavam a necessidade de estudo da figura da vítima sob enfoque interdisciplinar, como pela análise sob análise do ramo do direito penal, psicologia e psiquiatria. No ano de 1956, o advogado lançou a obra “A Vitimologia”, exposta na Revista Internacional de Criminologia e de Polícia Técnica, onde classificou a vítima conforme sua atuação ou provocação no delito, enfatizando a indispensabilidade do estudo vitimológico (BARBOSA; FERRAZ; SANTANA, 2017).

Filho (2020) elucida que o ofendido recebe destaque dentro do sistema processual penal a partir da década de 1950, e esclarece que o estudo da vítima é dividido em três fases de estudo: Idade de ouro, época da vingança privada, onde a vítima era atribuído poder de revide e de agressão na mesma intensidade perpetrada anteriormente a ela; Neutralização, aqui o monopólio da jurisdição penal passa ao Estado, em que a vítima é relegada a segundo plano; e a Revalorização, que teve levante com a Escola Clássica do Direito Penal, que contemplou a macrovitimização.

A vítima é objeto de estudo de pensadores e escritores de diversos ramos acadêmicos, em que sua análise, tanto de personalidade, características, provocação ou até participação no ato delituoso é de suma importância para a compreensão do evento transgressor e também do fenômeno social do delito, seu estudo por meio da ciência da vitimologia se ratifica como meio hábil de assimilação de proteção da ordem social.

Sob o enfoque jurídico, a vítima pode ser classificada de acordo com sua participação no cometimento do delito, conforme divisão de Mendelsohn, em: vítima completamente inocente ou ideal, aquela que não provoca, bem como não colabora para a realização do delito; vítima de culpabilidade menor ou por ignorância, que se perfaz quando por um impulso não voluntário do ofendido no crime; vítima voluntária ou tão culpada quanto o infrator, onde ambos podem ser criminoso ou a vítima; vítima mais culpada que o infrator, aqui estão as provocadoras e as que agem por imprudência; vítima unicamente culpada, é a infratora, simuladora ou imaginária. (BARBOSA; FERRAZ; SANTANA, 2017).

Gonzaga (2018) esclarece que, tendo por fundação os ensinamentos da Criminologia, o Direito Penal concebeu a causa de diminuição de pena no crime de homicídio privilegiado em virtude da violenta emoção logo após a injusta provocação da vítima, considerando-se o comportamento do ofendido em sede de dosimetria da pena. Além disso, destaca-se o art. 59 do CP, modificado pela reforma penal de 1984, em que foi acrescentado o comportamento da vítima como elemento do crime a ser mesurado no momento da fixação da pena.

Do ponto de vista legal, a apreciação da participação ou provocação por parte da vítima na persecução de delito é de essencial importância para fins de dosimetria da pena, é com base no comportamento do ofendido que se pode mesurar a sanção destinada ao transgressor, o que poderá ser analisado em diferentes fases de fixação da pena conforme mandamento regularmente positivado no ordenamento pátrio.

Destarte, apesar da vítima ser apenas a receptora, em termos gerais, do ato delituoso, perpetrado pelo transgressor, a esta são manejados tratamentos diferentes pela sociedade, pode-se dizer que alguns ofendidos são mais aceitos como sujeitos passivos dignos de atenção coletiva que outros, existe a construção social de uma vítima, uma vez que há padrões que atraem atenção ao contexto comunitário, como sua vulnerabilidade, sua respeitabilidade, sua responsabilidade em uma conjectura de consumação ou tentativa de delito, e até a existência de relação prévia ou não com o criminoso contam sob prisma social (ROEBUCK; STEWART, 2018).

O interesse social pode variar em relação a vítima, em razão de padrões coletivos pré-estabelecidos mesmo que não transcritos diretamente em texto de lei. Por exemplo, cita-se os crimes que empregam uso de violência que tendem a atrair atenção pública especial, como nos casos de homicídios e estupros, que resguardam relevância, a tocar nível pessoal, como nos cometidos contra crianças ou os considerados vulneráveis (SERENY, 2019).

A valorização social da vítima tem realce no momento da produção probatória, apesar de não ser mandamento positivado em texto legal, é realidade percebida por vítimas que tiveram variados bens jurídicos ofendidos, e que ganha maior relevância quando combinado a um cenário de crimes perpetrados contra a dignidade sexual e machismo institucional ao qual o Brasil se instala.

Lucas e Reis Júnior (2018) complementam:

No contexto da produção probatória, a idoneidade da palavra da vítima decorre de sua manifestação de forma ampla, integral e sem nenhum elemento que a vicie, dada sua importância para o deslinde da persecução criminal a um resultado útil e justo. Em um crime sexual, as informações proferidas pelo ofendido são dotadas de maior relevância, visto o crime ocorrer, normalmente, em locais ermos e sem a presença de testemunhas (LUCAS; JÚNIOR, 2018, p. 30).

Deste modo, a valorização social da vítima ganha especial magnitude na conjectura de crimes sexuais, uma vez que, geralmente, sua palavra é a única fonte probatória hábil no caso de instalação de processo penal, em face da dificuldade de comprovação por outros meios do que foi alegado pelo ofendido. Contudo, não é a resposta social percebida por vítimas pelo Brasil e pelo mundo, culminando nas fases de vitimização.

Outrossim, uma das linhas de pesquisa da vitimologia é o estudo da vitimização, que é o processo-produto que envolve a prática de ofensa, seja de natureza moral ou física endereçada à vítima. Em resumo, este sub-ramo se refere as consequências negativas resultantes de um acontecimento traumático, em especial, a repercussão de um delito. (PAULO; ROQUE, 2019).

A criminologia separa a vitimização (não se confunde com vitimologia, pois é a condição própria de vítima em face da realização e uma infração penal) em espécies, especificadamente três, recorrentes na sociedade: primária, secundária e terciária. A primária é o resultado do ato ou omissão perpetrados pelo transgressor diretamente na vítima, danos de caráter tanto físicos, materiais quanto psíquicos. A secundária é sentida pela atuação das instituições estatais a frente de um delito, se percebe quando o lesado procura auxílio estatal diante do cometimento de infração penal contra ele, é realizada pelos controles sociais formais, como autoridade policial, membro do ministério público, e componentes do poder judiciário. (GONZAGA, 2018).

É importante ressaltar que no momento em que a atuação judiciária é delimitada por ranços discriminatórios ocorre a perpetuação de desigualdades dentro do sistema punitivo, com o consequente enfraquecimento da tutela jurídica, uma vez que ao refletir estigmas socias no meio penal o Direito falha em resguardar os direitos das vítimas, gerando um novo processo de violência, a institucionalizada, que é a vitimização secundária. (PRADO; NUNES, 2016).

Destaca-se que a Lei 13.344/2016, que dispõe sobre a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas, em seu art. 6º, determina que a salvaguarda e o atendimento a vítima do tráfico de pessoas compreendem a metodologia de prevenção à revitimização (vitimização secundária) no atendimento e nos mecanismos investigatórios e judiciais. Delimitando a necessidade de combate a práticas de vitimização secundária por parte das autoridades de controle formal. (BRASIL, 2016).

Gonzaga (2020) explica que a vitimização terciária se verifica na prática de isolamento imposta pela sociedade à vítima, em face do cometimento de crime contra ela, que é observado frequentemente no caso de estupro, onde é costumeiro que a vítima seja observada com ressalvas e preconceitos, além de ser avaliada e alijada por membros de seu convívio social, chegando até a atribuir parcela de culpa pelo ato delituoso ocorrido à vítima.

Sobre os grupos de vitimização, Penteado Filho (2020) pontua:

Vitimização primária: é normalmente entendida como aquela provocada pelo cometimento do crime, pela conduta violadora dos direitos da vítima – pode causar danos variados, materiais, físicos, psicológicos, de acordo com a natureza da infração, a personalidade da vítima, sua relação com o agente violador, a extensão do dano etc. Então, é aquela que corresponde aos danos à vítima decorrentes do crime; Vitimização secundária: ou sobrevitimização; entende-se ser aquela causada pelas instâncias formais de controle social, no decorrer do processo de registro e apuração do crime, com o sofrimento adicional causado pela dinâmica do sistema de justiça criminal (inquérito policial e processo penal); Vitimização terciária: falta de amparo dos órgãos públicos às vítimas; nesse contexto, a própria sociedade não acolhe a vítima, e muitas vezes a incentiva a não denunciar o delito às autoridades, ocorrendo o que se chama de cifra negra (quantidade de crimes que não chegam ao conhecimento do Estado). (FILHO, 2020, p. 119).

A vitimização, portanto, é dividida em três espécies: primária, que é entendida como a extensão de dano correspondente a prática de um crime, compreendendo lesões materiais, físicas, psicológicas, etc.; secundária, resultado da atuação desastrosa das instâncias formais de controle social; e terciária, consequência da carência de apoio social as vítimas, que se vê isolada do contexto comunitário, que por conta disso, deixam de denunciar o ato delituoso as autoridades, e por resultado inflam as cifras negras.

Asliani (2019) ressalta que a proteção legal a nível estatal e comunitário é essencial para o equilíbrio de grupos sociais e proteção dos indivíduos, e ainda, a proteção de vítimas de crimes é medida de salvaguardada não só a nível unitário, como também de proteção do ambiente público, e podem ser realizados através de diversas medidas, como desde a simples demonstração de confiança no sofrimento das vítimas, bem como prestação de informações sobre o funcionamento do processo.

A criminologia é ciência interdisciplinar que se ocupa a integrar os aspectos do crime, entre seus objetos de estudo se destaca a vítima, fonte do conhecimento da vitimologia que se encarrega da sapiência que envolve a vítima e sua influência na prática de um delito, é conhecimento de digna importância para a compreensão da infração penal, dentro da vitimologia se depreende a vitimização, dividida em três espécies: primária (decorrente do ato criminoso), secundária (resultado da atuação desleixada dos controles formais sociais) e terciária (repercussão negativa do abandono de órgãos estatais e sistema social ao amparo a vítima). Logo após, serão aplicados os conceitos aprendidos no tópico em tela na conjectura do crime de estupro.

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Sobre a autora
Eleusis Britto

Pós-Graduanda em Ciências Criminais – Escola Superior de Advocacia do Piauí.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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