RESUMO:O presente artigo visa demonstrar a relevância, para o ordenamento jurídico brasileiro, da evolução dos negócios jurídicos processuais, em razão do advento do Novo Código de Processo Civil. Para tanto, realizar-se-á um breve estudo acerca da cláusula geral dos negócios jurídicos processuais, prevista no artigo 190 do CPC/15, bem como as limitações das declarações de vontade das partes, diante de normas fundamentais do processo. Em seguida, seguiremos o estudo dos negócios jurídicos na seara da execução, elencando-se algumas hipóteses de potenciais negócios jurídicos processuais atípicos, finalizando com a análise do Projeto de Lei 2.359/2020.
Palavras-chave: Cláusula geral. Execução. Negócio jurídico processual. Novo Código de Processo Civil. Princípios. Projeto de Lei 2.359/2020.
ABSTRACT: This article has the objective of presenting the relevance for the Brazilian Legal Order, the evolution of procedural legal affairs, because of the advent of the “Novo Código de Processo Civil”. For that, a brief study was made, regarding the general clause of the procedural legal affairs, foreseen in the article 190 from the CPC/15, as well as the limitations of the declaration of the will of the parties, against the fundamental norms of the procedure. Right after, we’re going to follow the study of the procedural legal affairs in the field of execution, listing some hypothesis of potential atypical legal procedures, and finishing with the analysis of the bill 2.359/2020.
Keywords: General clause. Execution. Procedural legal affairs. New Civil Procedure Code. Principles. Bill 2.359/2020.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Negócios Jurídicos Processuais no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2.1 Evolução dos negócios jurídicos processuais no CPC de 2015 perante o CPC de 1973. 2.2. Cláusula geral dos negócios jurídicos e suas espécies. 2.3. Limites às convenções processuais: validade e restrições legais. 2.4 Princípios do devido processo legal, do autorregramento da vontade, da cooperação e da celeridade processual. 2.5 Controle judicial de validade dos negócios jurídicos processuais. 3. Negócios processuais na execução. 3.1. Ação de execução fundada em título executivo extrajudicial por negócios jurídicos atípicos. 3.2 O Projeto de Lei 2.359/2020: Executividade de documento particular assinado digitalmente sem a presença de testemunhas. Conclusão. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo busca demonstrar a evolução dos negócios jurídicos processuais no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente quanto às inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 em relação ao Código de Processo Civil de 1973, dentre as quais aumentaram-se as possibilidades quanto às convenções a partir dos negócios jurídicos processuais anteriormente permitidas. Tais novidades se dão em razão da inovação da cláusula geral dos negócios jurídicos - art. 190, do CPC/15, que possibilita às partes plenamente capazes “estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais”, seja antes ou durante o processo, desde que o processo, leia-se lide ou controvérsia, verse sobre direitos que admitam a autocomposição.
Nesse aspecto, ressalta-se que o negócio jurídico processual é o instituto de direito que possibilita às partes a flexibilização de determinados aspectos processuais de acordo com as vontades ou necessidades. Assim, aborda-se as espécies dos negócios jurídicos processuais típicos e atípicos, sendo que o primeiro se refere aquelas convenções típicas previstas no texto da lei, e o segundo, àquelas previstas de forma genérica na legislação, vez que fica à cargo da autonomia das partes o seu conteúdo.
Prosseguindo, ainda no segundo capítulo, destaca-se que, a abrangência quanto às possibilidades às convenções de negócios jurídicos processuais, somente se deu em virtude dos vários princípios que permitem às partes maior liberdade e amplitude dentro de um procedimento, seja ele judicial ou não. Dentre eles, abordam-se, com base nas conceituadas doutrinas de Humberto Teodoro Júnior[1] e Fredie Didier Júnior[2], os princípios do devido processo legal, do autorregramento da vontade, da cooperação e da celeridade processual.
O princípio do devido processo legal, é caracterizado, em suma, pela garantia do Estado-juiz a uma prestação jurisdicional assegurada de todas as etapas previstas em lei e todas as garantias constitucionais; (ii) o princípio do autorregramento da vontade, que privilegia o respeito à liberdade das partes, dentro do procedimento devido, tendo em vista à obtenção de um ambiente processual em que o direito fundamental de autorregular-se possa ser exercido sem restrições irrazoáveis ou injustificadas; (iii) e os princípios da cooperação e da celeridade processual, uma vez que quando as partes cooperam entre si, seja na fase pré-processual ou processual, a solução mais adequada e justa ao caso concreto se dá de forma mais célere.
O terceiro capítulo da pesquisa tem como objeto o conteúdo central do presente estudo, versando acerca dos negócios jurídicos processuais na execução, desde o seu conceito, objeto, meios executórios, as espécies dos títulos executivos extrajudiciais e ainda a criação de títulos executivos extrajudiciais por negócios jurídicos atípicos.
Por fim, a título exemplificativo da importância do instituto dos negócios jurídicos processuais na execução no ordenamento jurídico brasileiro, ressalta-se o Projeto de Lei nº 2.359/2020, que versa sobre a possibilidade de previsão como título executivo extrajudicial o documento particular assinado digitalmente pelo devedor, independentemente de assinatura de testemunhas.
Diante do exposto, tem-se que a pesquisa é desenvolvida pelo método hipotético-dedutivo, uma vez que as pesquisadoras pretendem eleger um conjunto de proposições hipotéticas, as quais acreditam serem viáveis e adequadas para analisar o objeto estudado, com o fito de comprová-las ou rejeitá-las argumentativamente.
Para tanto, a abordagem do objeto desta pesquisa jurídica é necessariamente qualitativa, porquanto as pesquisadoras pretendem se valer da bibliografia pertinente à temática em foco, analisada e presente na fase exploratória da pesquisa, para sustentar a presente tese.
2. NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O ordenamento jurídico brasileiro é um sistema de normas, regras e princípios, cujo objetivo é manter a ordem social, dando à coletividade maior segurança jurídica, seja em casos mais complexos que exijam a interferência estatal, por meio do seu poder-dever de jurisdição, exercido pelo Estado-juiz, seja em casos de menor complexidade, nos quais a própria sociedade, sem a necessidade de interferência de terceiros, soluciona suas oposições.
Nas palavras de Norberto Bobbio o ordenamento consiste na dimensão hierárquica das normas (regras e princípios) do direito, dotada de unidade, coerência e completude[3].
Assim, dentre as formas que complementam esse sistema, pode-se enumerar a legislação em geral (Constituição Federal, legislações infraconstitucionais, decretos, atos normativos, portarias, resoluções), as jurisprudências, os princípios, as doutrinas e até mesmo os costumes, sendo que alguns se sobrepõe a outros.
Os maiores mecanismos manipuladores desse sistema de normas são os três poderes, quando o Poder Legislativo as elabora, o Poder Executivo as administra e o Poder Judiciário as aplica, através do poder estatal de Estado-juiz, diante de um processo devido jurisdicionado. Assim, de fato, percebe-se o poder de ingerência da máquina estatal no ordenamento jurídico, principalmente quanto aquele que o aplica perante o caso concreto.
Não obstante, à princípio, a única forma que a sociedade possuía como meio de solução de conflito era a jurisdição, elementar função do Estado. Atualmente, diante da evolução do ordenamento jurídico, como forma de solucionar suas oposições, além do poder judiciário, o cidadão tem à sua disposição os métodos adequados de solução de conflitos, dentre eles a conciliação, mediação, arbitragem e negociação. E ainda, diante desses métodos o cidadão tem a possibilidade de estipular mudanças, alterar ou adaptar o procedimento da melhor forma que lhes convém, por meio dos negócios jurídicos processuais, dentro dos limites estabelecidos, de forma que o Estado-juiz não mais se figura, unilateralmente, como o imperativo da decisão da controvérsia.
Nesse sentido, será visto adiante que a evolução dos negócios jurídicos processuais, seja ele típico ou atípico, através da cláusula geral prevista no Código de Processo Civil de 2015 (Lei n.º 13.105/2015), consiste no avanço da autonomia, liberdade e autorregramento das partes dentro do procedimento resolutório judicial ou extrajudicial.
2.1. Evolução dos negócios jurídicos processuais no CPC 2015 perante o CPC 1973
Apesar da inovação legislativa trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, as convenções processuais já existiam sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, todavia de forma limitada, visto que as partes não possuíam liberdade e autonomia para ajustar qualquer tipo de procedimento, mas somente aqueles expressamente previstos em lei.
Segundo o Professor José Carlos Barbosa Moreira[4], a expressão “convenções processuais” se apresenta como a mais adequada para o presente tema, após numerosas terminologias utilizadas pela doutrina, tais como “contratos processuais”, “avenças processuais”, “convênios processuais” e “acordos processuais”, justificando o autor que, “a essas maneiras de dizer, parece-nos preferível a locução convenções processuais, de cunho mais técnico e, sobretudo, mais aderente à linguagem do Código.
Embora não sejam, em regra, percebidos pelos operadores do direito, há dispositivos no Código de Processo Civil de 1973 que admitiam expressamente a figura das convenções processuais, mesmo que de modo reduzido, podendo-se citar como exemplo a eleição convencional do foro (art. 111), redução ou prorrogação dos prazos dilatórios (art. 181), suspensão do processo (arts. 265, II, e 792), distribuição do ônus da prova (art. 333, p.u), o adiamento da audiência (art. 545, §1º), divisão do prazo entre litisconsortes para sustentar em audiência (454, § 1º), administração do estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, semoventes, plantações ou edifício em construção penhorados (art. 677, § 2º), indicação de depositário de bens sequestrados (art. 824, I), alienação de bens em depósito judicial (art. 1.113, § 3º).[5]
Nesse sentido, Leonardo Carneiro da Cunha[6], elencou as principais possibilidades de negócios jurídicos processuais típicos até então existentes, como por exemplo: (i) desistência do recurso (art. 158; art. 500, III); (ii) convenções sobre prazos dilatórios (art. 181); (iii) desistência da ação (art. 267, § 4o; art. 158, parágrafo único); (iv) convenção de arbitragem (arts. 267, VII, art. 301, IX); (v) desistência da execução ou de medidas executivas (art. 569); (vi) escolha do foro competente pela fazenda Pública na execução fiscal (art. 578, parágrafo único); (vii) opção do exequente pelas perdas e danos na execução de obrigação de fazer (art. 633); (viii) desistência da penhora pelo exequente (art. 667, III).
Assim, entende-se que ficou consolidado, à época, que o Código de Processo Civil de 1973 teria se omitido quanto à possibilidade de celebração de convenções atípicas pelas partes, concluindo a doutrina pela sua impossibilidade, em virtude da ausência de prévia autorização e regulamentação dada pelo legislador.
Nas palavras de Daniel Assumpção Amorim, os negócios jurídicos processuais no CPC/1973 se operava “apenas em sua forma típica, limitada, considerando que as partes não tinham a liberdade de ajustar sobre todo e qualquer tipo de procedimento, senão nas hipóteses expressamente previstas na lei de regência, a citar a cláusula de eleição de foro e as convenções sobre o ônus da prova.”.[7]
Por sua vez, o Novo Código de Processo Civil de 2015, que se consolidou no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei nº 13.105/2015, ampliou significativamente o rol das convenções ou dos negócios processuais típicos, dentre os quais podem ser citados, a instauração do juízo arbitral (art. 42), definição de calendário processual (art. 191), redução dos prazos peremptórios pelo juiz com a devida anuência das partes (art. 222, § 1º), a renúncia de uma das partes ao prazo estabelecido em sua benesse (art. 225); a distribuição diversa do ônus da prova por convenção das partes, antes ou durante o processo (art. 373, §§ 3º e 4º); a nomeação de perito (art. 471); convenção sobre a liquidação por arbitramento da sentença (art. 509, I); desistência do processo, recurso e a renúncia ao direito de recorrer (arts. 998 e 999).
Ao contrário do que ocorria no CPC/1973, o novo Código de Processo Civil buscou a simplificação do processo através de uma diminuição do excessivo protagonismo do juiz, concedendo um papel ativo e efetivo às partes do processo, a partir do momento em que autorizou a elaboração de convenções processuais atípicas, surgindo assim a possibilidade de adequação do procedimento à vontade das partes com o objetivo de prestigiar a eficiência e celeridade da tutela jurisdicional.
A novidade trazida no novo CPC não se caracteriza como a criação de um novo instituto, mas sim no alargamento de suas possibilidades, posto que as convenções a serem firmadas pelas partes não mais precisam estar pré-estabelecidas pela legislação processual, de forma a permitir às partes maior amplitude e liberdade em relação ao conteúdo, ao procedimento e aos métodos a serem adotados para a resolução de determinada controvérsia, como se passa a demonstrar a seguir.
2.2. A cláusula geral dos negócios jurídicos e suas espécies
A cláusula geral tem como principal objetivo permitir às partes a formulação de negócios processuais atípicos, adequando o procedimento à realidade da causa, sendo certo que estas não mais se encontram adstritas à literalidade da norma ou dos negócios jurídicos tipificados.
A cláusula geral, prevista no art. 190 do CPC/2015, dispõe que “Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.”.
Nesse sentido, Rodrigo de Lucca[8] sustenta que, a partir dessa disposição “as partes possuem a mais ampla liberdade para negociar alterações no procedimento para adequá-lo aos seus interesses, suprimindo atos e alterando inclusive ônus, faculdades, deveres e poderes processuais. ”
Nas palavras de Alexandre Freitas Câmara[9], “trata-se da genérica afirmação da possibilidade de que as partes, dentro de certos limites estabelecidos pela própria lei, celebrem negócios jurídicos através dos quais dispõem de suas posições processuais”.
Isso porque, a ideia introduzida através dessa cláusula não consiste na mera permissibilidade de formulação de negócios jurídicos, mas sim na possibilidade de formulação de negócios genéricos (atípicos) sobre o processo.
E é exatamente a partir da inauguração dessa cláusula, que diversas espécies de negócios jurídicos atípicos podem surgir, pois, em que pese constar o verbo “convencionar” no caput do dispositivo e no parágrafo único, a cláusula geral permite negócios processuais como gênero de que as convenções processuais são espécies[10]. Nesse sentido que os negócios jurídicos processuais atípicos ganham força e visibilidade entre as partes processuais.
A despeito disso, os negócios atípicos permitem que as partes convencionem mudanças no procedimento, as quais não se encontram previstas no ordenamento jurídico, autorizando-as a celebrarem mudanças sobre dois objetos do procedimento: (i) às situações jurídicas processuais, tais como ônus, faculdades, deveres e poderes; ou (ii) ao próprio processo, a partir da redefinição de sua forma ou da ordem de encadeamento dos atos, por exemplos.[11]
Tais possibilidades tratam-se de objetos autônomos, de forma que o acordo celebrado entre as partes, antes ou durante o processo, pode recair apenas sob as situações jurídicas processuais, apenas sob o procedimento ou em ambos simultaneamente, mas nunca sob o objeto litigioso.[12]
Nesse sentido, a título exemplificativo, veja-se alguns negócios processuais atípicos permitidos pelo art. 190 do CPC/2015: o acordo de impenhorabilidade, acordo de instância única, acordo de ampliação ou redução de prazos, acordo para superação de preclusão, acordo de substituição de bem penhorado, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo da apelação, acordo para não promover execução provisória, acordo para dispensa de caução em execução provisória, acordo para limitar número de testemunhas, acordo para autorizar intervenção de terceiro fora das hipóteses legais, acordo para decisão por equidade ou baseada em direito estrangeiro ou consuetudinário, acordo para tornar ilícita uma prova, etc.[13]
2.3. Limites às convenções processuais: validade e restrições legais
Apesar de a cláusula geral permitir às partes a convenção de negócios atípicos, além da vontade das partes e dos pressupostos de validade gerais de todo negócio jurídico previstos no art. 104 do Código Civil – agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei – faz-se necessário que tais convenções respeitem os pressupostos de validade específicos às convenções processuais.
Os limites se comportam como importantes demarcadores às convenções, pois ao mesmo tempo que permitem as partes amplitude quanto aos negócios processuais, as norteiam quanto a extensão dessa vontade, deixando-as em posições de equivalência.
O art. 190 e seu parágrafo único, ambos do CPC/15, estabelecem quatro requisitos para que as convenções processuais se configurem como válidas, sendo eles: (i) possibilidade de autocomposição dos direitos versados no processo; (ii) capacidade plena das partes; (iii) inexistência de imposição abusiva da convenção em contratos de adesão; e (iv) inexistência de vulnerabilidade de uma das partes.
O condicionamento da validade das convenções à disponibilidade do direito faz com que as partes, de certa forma, tenham maior liberdade para convencionar sobre determinadas prerrogativas. Isso porque, ao ampliar a possibilidade de celebração das convenções processuais, o legislador permite às partes convencionarem tanto nas causas que versem sobre os direitos disponíveis, quanto nas causas que versem sobre direitos indisponíveis que admitam autocomposição, tal como exemplo: a ação de investigação de paternidade que, apesar de versar sobre direito indisponível, permite ao réu o reconhecimento voluntário, judicial ou extrajudicial, da paternidade.[14]
Por outro lado, é de se questionar o motivo da limitação à direitos que admitam autocomposição material, quando nos próprios termos do Enunciado nº 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis “a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual.”. Para Rodrigo Ramina de Lucca, “tem feição autoritária a suposição de que o titular do direito indisponível seria incapaz de celebrar um negócio jurídico que lhe coloque em uma posição mais favorável no processo.”[15]
Nesse sentido, há doutrinadores que acreditam que a possibilidade mais adequada seria a vinculação da convenção processual que envolvam direitos indisponíveis e que não admitam autocomposição à anuência prévia e expressa do Ministério Público, como custus legis, sem prejuízo que o Estado-juiz a recuse caso constatada alguma limitação quanto o direito materialmente indisponível.
O segundo pressuposto de validade diz respeito a celebração das convenções por partes plenamente capazes, ponto este divergente entre a doutrina. Isso porque, há quem diga que a capacidade a que se refere a cláusula geral é a capacidade processual, isso é, basta que a parte possua capacidade de atuar como parte e de estar em juízo para figurar-se nas convenções. Em contrapartida, a doutrina majoritária defende tratar-se da capacidade civil, sendo que somente aqueles maiores de dezoito anos ou emancipados possuiriam capacidade plena para a prática de tal ato.
Sob o ponto de vista ainda da doutrina majoritária, não há que se falar em capacidade processual, quando este já se caracteriza como um dos requisitos processuais, sob pena de intimação para regularização ou extinção do feito, nos termos do art. 76 do CPC/15. Pois, se assim o fosse, estaria a lege ferenda cometendo pleonasmo.
A despeito do pressuposto de inexistência de imposição abusiva da convenção em contratos de adesão, o legislador tem por objetivo coibir que os negócios jurídicos celebrados nos contratos de adesão possuam cláusulas abusivas que favoreçam uma das partes, deixando-as em posições de desigualdade, em posição desfavorável contra a sua vontade.
Todavia, deve-se frisar que isso não impede que os contratos de adesão contenham convenções processuais, ao contrário, a proibição se dá em razão de uma eventual abusividade das cláusulas[16]. Em última análise, trata-se de um alargamento em relação ao art. 424, do Código Civil, que dispõe: “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.”.
E justamente nesse sentido é a previsão do último pressuposto de validade, o qual proíbe a convenção “em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.” Tal requisito tem como finalidade impedir que as convenções que coloquem uma das partes em situação de vulnerabilidade processual perante a outra.
2.4. Princípios do devido processo legal, do autorregramento da vontade, da cooperação e da celeridade processual
Além dos requisitos acima elencados, e do dever de observância às posições processuais ocupadas (eis a impossibilidade de disposições sobre ônus, faculdades, poderes, deveres e direitos de terceiros), é necessário, ainda, a obediência das partes às normas fundamentais do processo, respeitando os princípios basilares do procedimento, dentre eles o do devido processo legal, do autorregramento da vontade das partes, da cooperação e da celeridade processual.
O princípio do devido processo legal é caracterizado, em suma, pela garantia do Estado-juiz a uma prestação jurisdicional assegurada de todas as etapas previstas em lei e todas as garantias constitucionais. Nas palavras de Fredie Didier Jr.[17], trata-se de “uma garantia contra o exercício abusivo do poder, qualquer poder.”. E sob essa égide surgiria o questionamento sobre a possibilidade de os negócios atípicos violar esse princípio fundamental do processo.
Ao contrário do que muito se questiona, Peixoto Macedo[18] entende que o negócio jurídico processual é medida que afirma o devido processo legal, confiram-se:
Com efeito, quando a celebração do negócio jurídico estiver nos limites do propósito do Estado, que é resolver conflitos e afirmar o ordenamento jurídico, e for desejado e pactuado de forma livre pelos sujeitos parciais, a sua realização, ao contrário de confrontar o devido processo legal, é medida que o afirma e, mais do que isso, leva a um regime de colaboração entre os sujeitos processuais que reforça verdadeira corresponsabilidade no processo.
E no mesmo sentido é o entendimento de José Roberto dos Santos Bedaque, ao entender que: “Liberdade não significa insegurança para as partes, nem arbítrio do juiz. Representa, simplesmente inexistência de rigidez e previsão legal de padrões flexíveis, segundo as especificidades da situação sem que isso implique violação às garantias do devido processo constitucional.”.
Para além do devido processo legal, há o princípio do autorregramento da vontade das partes, que privilegia o respeito à liberdade das partes, dentro do procedimento devido, tendo em vista à obtenção de um ambiente processual em que o direito fundamental de autorregular-se possa ser exercido sem restrições irrazoáveis ou injustificadas[19]. Ou seja, tal prerrogativa permite às partes ampla liberdade de atuação no procedimento e a garantia de um processo devido e legal e, ao mesmo tempo, moderado.
Nas palavras de Fredie Didier Jr.[20], “o princípio do devido processo legal deve garantir, ao menos no ordenamento jurídico brasileiro, o exercício do poder de autorregramento ao longo do processo. Um processo que limite injustificadamente o exercício da liberdade não pode ser considerado um processo devido.”.
Assim, em que pese ser um princípio fundamental, é necessário limitar o autorregramento da vontade para que os negócios jurídicos não sejam invalidados nos casos em que houver uma possível imoderação em relação aos princípios e preceitos constitucionais e às normas de ordem pública, de forma a afastar o caso concreto do processo devido. O autorregramento da vontade no processo certamente é um direito, no entanto, não pode ser exercido de forma abusiva[21].
Na mesma percepção, os princípios da cooperação (previsto no art. 6º, do CPC/15) e da celeridade processual têm o condão de permitir que as partes possuam mais liberdade no procedimento, desde que respeitadas determinadas limitações, uma vez que quando as partes cooperam entre si, seja na fase pré-processual ou processual, a solução mais adequada e justa ao caso concreto se dá de forma mais célere.
Nesse sentido, o Enunciado 06 do Fórum Permanente de Processualistas Civis estabelece que: “O negócio jurídico processual não pode afastar os deveres inerentes à boa-fé e à cooperação.”. Isso porque, a observância a esses pressupostos é medida que se impõe, eis que, uma vez respeitados estarão os sujeitos processuais diante de um propício ambiente processual, de mútuo reconhecimento das posições e vantagem que cada um se encontra, sem rivalidades, nem autoritarismos, mas no espírito construtivo do processo mais justo possível e da consequente solução mais adequada possível da causa[22].
Assim, cabe aos sujeitos processuais a convenção de negócios atípicos em respeito aos pressupostos e princípios processuais e constitucionais, pois poderá o juiz considerar nula a convenção sempre que entender abuso de poder das partes quando do exercício do direito de modificar o procedimento e suas posições jurídicas. Sob essa égide que passa-se a analisar a posição do Estado-juiz diante das convenções processuais.
2.5 Controle judicial de validade dos negócios jurídicos processuais
De plano, faz-se importante ressaltar que o juiz não é um estranho às convenções, – em que pese ser possível o acordo processual antes mesmo de existir processo – afinal, trata-se o processo de um ramo do direito público, no qual, a despeito a autonomia das partes seja assegurada, poderão as convenções surtir efeitos no processo e, inevitavelmente, impactar a atuação do juiz. Tudo isso, claro, nas relações pós instauração processual, já que não há que se falar em juiz antes do processo.
Sob esse viés surgem as indagações acerca do que cabe ou não ao juiz realizar diante de uma convenção. Alguns dos principais pontos a serem observados são: (i) se o juiz pode ser considerado parte do acordo; (ii) se o juiz se vincula às disposições pactuadas; e (iii) se deve o juiz homologar as convenções previamente, ou exercer um controle posterior de validade e adimplemento[23].
Há quem diga que a vontade do juiz, somada a das partes, se caracteriza como elemento essencial para a celebração da convenção. Por outro lado, contrariamente a essa tese, a doutrina majoritária, seguindo o entendimento de Kelsen quanto a capacidade negocial de as partes produzirem normas jurídicas individuais a partir das normas gerais, da autonomia e da liberdade, entende que a função negocial não é própria do Estado-juiz.
Seguindo a ideia de Carnelutti ilustrada na obra Sistema di Diritto Processuale Civile, Antonio do Passo Cabral afirma que “no negócio jurídico, o poder de praticá-lo é exercitado no interesse de quem o desempenha. O Estado-juiz, pelo seu distanciamento dos interesses dos litigantes (tanto materiais, quanto processuais), não poderia praticar atos em favor de nenhum interesse próprio.”.
Assim, em razão da nítida disparidade quanto aos interesses materiais e processuais de cada agente processual (litigantes e juiz), não pode o Estado-juiz figurar como parte e controlador dos negócios jurídicos, tão menos praticar atos ou convenções em favor do interesse próprio, ou especificamente de uma das partes, sob pena de ferir o princípio da imparcialidade[24].
Nesse sentido, para Gerhard Wagner, afirmar que o Estado-juiz não é parte da convenção, não significa dizer que não fique vinculado a elas[25]. Enquanto os sujeitos se obrigam voluntariamente através da autonomia e da liberdade, o Estado-juiz se vincula incidentalmente, através dos atos e das formalidades do processo, ainda que se exista convenção definida por meio da autonomia privada. Isso se dá pelo dever do juiz de aplicar a norma convencional, seja quando a convenção diz respeito ao procedimento, seja para dar cumprimento às avenças ou mesmo para aplicar a norma em sentido estrito.
No que tange as funções do juiz, há de se destacar duas características precípuas: a de incentivar e a de controlar. A primeira está diretamente ligada aos deveres que os princípios do contraditório e da cooperação impõem ao juiz, já que deve o Estado-juiz fomentar as partes ao uso de instrumentos autocompositivos, não só nas convenções processuais, mas em qualquer ato processual.
A segunda e principal função, a de controlar ou fiscalizar, diz respeito ao dever do juiz de analisar a validade das convenções processuais, controlando a extensão da vontade das partes sobre o procedimento estatal, valendo-se do equilíbrio entre os interesses privados e os interesses públicos envolvidos[26]. Aqui, nos termos do caput do art. 190 do CPC/15, o papel do juiz se limita a verificar se as partes extrapolaram os limites que o ordenamento jurídico lhes atribui para atuar, salvaguardando pelos interesses públicos. Vale lembrar que, a despeito do dever de fiscalizar, não cabe ao judiciário apreciar a conveniência da celebração.
Neste aspecto, para Antonio do Passo Cabral[27], “a tarefa de controle não deve ser compreendida como um freio ou negação à liberdade das partes, mas sim como um respeito à sua autonomia (que compreende intrinsecamente limitações).”.
Por isso, é que a doutrina majoritária entende pela desnecessidade de homologação judicial ou deferimento prévio, já que os negócios jurídicos processuais decorrerem diretamente da autonomia da vontade das partes, da possibilidade de serem celebrados antes mesmo do processo, além do fato de os atos negociais produzirem efeito desde o momento da celebração, nos termos do art. 200 do CPC/15.
Nesse sentido, verifica-se que a submissão dos negócios jurídicos pré ou pós-processuais ao controle judiciário seria incabível. Primeiro pelo fato de tal ato lesar diretamente a prerrogativa da autonomia da vontade das partes. Segundo, pelo fato de tornar-se inviável, tanto às partes quanto ao judiciário, a participação do juiz em toda e qualquer negociação, já que, a convenção que a princípio teria o condão de preservar o princípio da cooperação e dar destaque ao princípio da celeridade, estaria fadada ao insucesso, esbarrando-se na morosidade, diante do atual cenário do judiciário brasileiro que se encontra assoberbado de demandas litigiosas.
Assim, é que se deve frisar que, a homologação ou o deferimento prévio não devem ser considerados pressupostos para a eficácia dos negócios processuais. A regra é que as convenções independem de qualquer atuação judicial. As exceções se encontram nos casos que a lei expressamente prevê o controle judicial prévio (vale lembrar que a necessidade de homologação não constitui pressuposto de constituição válida, mas apenas uma condição de eficácia).
Dentre aqueles que possuem a homologação como condição de eficácia citam-se: (i) a necessidade de homologação da convenção que escolhe o administrador e disciplina a forma de administração de empresa ou semoventes penhorados – art. 862, §2º do CPC/15; (ii) a homologação da autocomposição obtida no curso do processo, com a finalidade de interromper a litispendência – art. 515, inciso II do CPC/15.